Edição 70
A esquerda no poder
31 de maio de 2006
Ives Gandra da Silva Martins Membro do Conselho Editorial, Professor emérito das universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e CIEE
As ideologias conformam a maneira de pensar dos que a elas aderem. Seus militantes são, quase sempre, fanáticos seguidores dos pseudovalores nelas contidos. Comumente, a ideologia é a negação da “verdade real”, pela adoção de uma “verdade ideal”, cujo ponto de chegada exigiria algo diferente do que a natureza humana é capaz de produzir.
Por esta razão, as ideologias são de fácil defesa e de impossível implementação, porque dependem, exclusivamente, do “homem ideal” e, como dizia, Montesquieu, o homem não é confiável no poder. Desta convicção do mestre francês é que surgiu a mais bem concebida teoria da partição de poderes desde a Antiguidade clássica. Atenas já conhecera tal forma de partilha. O mestre francês, todavia, a partir das lições de Locke, concebeu, tendo em vista a fragilidade de seus detentores, uma teoria que permitia ao “poder controlar o poder”.
Lord Acton, notável por sua variada experiência investigatória e reflexiva, com mais realismo, declarou que “o poder corrompe sempre e o poder absoluto corrompe absolutamente”.
Isto porque quem deseja o poder deseja, mais do que servir ao povo, servir-se a si mesmo. Luta, desesperadamente, para mantê-lo e apenas se houver sobras orçamentárias é que passa a servir à sociedade, por “efeito colateral”.
Das diversas ideologias, de longe as múltiplas facetas da esquerda exteriorizam uma utopia admirável e uma realidade degradante. Aqueles que as têm defendido, em todos os espaços geográficos e períodos históricos, tendem a regimes de exceção, à confusão do dinheiro público com o privado, a perseguir os que pensam diferentemente, inclusive com eliminação dos adversários, e a não promover o verdadeiro bem social (patrocinam um medíocre assistencialismo), mas o bem para si mesmos. A Rússia de Stalin, a Cuba de Fidel, a Romênia de Ceausescu, a Hungria, a antiga Checoslováquia, a Alemanha Oriental e muitos outros países viveram a ascensão da esquerda, a ditadura, o assassinato institucionalizado, com o intuito de manobrar o poder, com fuzilamentos sem julgamento de adversários e uma brutal eliminação de liberdades, do respeito a direitos fundamentais, tudo coberto por uma fantástica propaganda oficial, para anestesiar a consciência popular.
É que, para a esquerda, os fins justificam os meios, mas, como os meios são os únicos instrumentos de que dispõem, no tempo, se transformam nos próprios fins.
No Brasil, a esquerda assumiu o poder. Não entro a discutir o assassinato não esclarecido de Celso Daniel, nem todos os eventos que o circundam. Não discuto também o assassinato do prefeito de Campinas. Caberá ao Ministério Público e à Justiça deslindarem o que efetivamente ocorreu. Não faço julgamentos precipitados.
O que me parece, todavia, de necessária reflexão é que, desde que o presidente Lula assumiu, há uma notável tentativa de calar a sociedade, felizmente, pelos anticorpos que a democracia brasileira já adquiriu, fracassada, até o presente.
Enumero, apenas, para caber dentro do espaço do presente artigo, algumas delas:
Calar os jornalistas por meio do Conselho Federal de Jornalismo, vinculado ao governo, que censuraria as matérias consideradas de risco para a estabilidade do governo;
Calar os artistas por meio da Ancinav, entidade que “reorientaria” a produção artística nacional no campo audiovisual;
Calar os advogados, mediante proposta de que, sempre que tivessem conhecimento, em função de sua profissão, de fatos presumivelmente delituosos, que denunciassem seus clientes;
Controlar a sociedade pela aplicação da quebra do sigilo bancário sem autorização da Justiça, por leis e atos complacentes, que vão muito além da – a meu ver – inconstitucional Lei Complementar 105/01;
Concentrar numa única pessoa todos os poderes arrecadatórios da Fazenda e da Previdência Social, instituindo-se a Super-Receita, entidade a ser criada nos moldes das pirâmides dirigentes dos regimes totalitários;
Tolerância máxima com o “estupro” da Constituição praticado diariamente pelo MST.
E poderia enumerar muitas outras demonstrações de que, na prática utilizada pela esquerda no poder, todos os fins que deseja são justificados pelos meios que utiliza, éticos ou não éticos.
A aceitação pelo governo Lula de um modelo econômico tido por membros do próprio PT como neoliberal é, de rigor, apenas um modelo de transição para o verdadeiro regime que deseja implantar, num segundo mandato. Se este ocorrer, Chávez, mais do que os empresários, Fidel Castro, mais do que o povo, Stédile e MST, mais do que os operadores do Direito, serão ouvidos por Lula. Como o Brasil, graças ao peso do empreguismo oficial de correligionários e aos custos administrativos acima da inflação de seu governo, tem progredido pouco, num período de estupenda expansão mundial, não excluo que, aos primeiros sinais de uma reversão econômica global, os bodes expiatórios apareçam para justificar os fracassos, e deverão ser aqueles que seu partido considera “a elite brasileira”.
Como o barco do Brasil navega por força do “efeito maré” da economia global – apesar de mais pesado do que os outros -, será o primeiro a afundar quando o “efeito maré” acabar. E nesse momento, se reeleito o presidente Lula, estou convencido de que a caça às bruxas poderá começar, pois, segundo a esquerda, o governo não erra nunca e quem deve pagar por seus erros é sempre a sociedade. Tocqueville dizia que, “quando o passado não ilumina o futuro, o espírito vive em trevas”. Se não compreendermos as lições do passado, as trevas em que vivemos preencherão o futuro.