A essência das reformas

5 de agosto de 2003

Membro do Conselho Editorial / Professor Titular Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UniRio)

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Aurélio Wander Bastos, advogado e professor universitário, nessa entrevista a revista Justiça & Cidadania fala sobre a essência das reformas e diz que “o futuro exige que a reforma política pare para rediscutir os processos e modelos eleitorais que permitirão recolocar politicamente os grupos de representação ao alcance das propostas sociais.

J&C: No seu livro sobre Conflitos Sociais e limites do Poder Judiciário, o senhor aborda a questão do funcionamento do sistema de organizas;ao do Estado. Como vê a questão das Reformas atuais no contexto do livro?

AWB: Neste nosso livro, fundamentalmente, procuramos mostrar que os sistemas podem perder a sua capacidade decisória por diversos fatores, como, por exemplo, a desconexão com a realidade social, a desfuncionalidade interna e a corrupção de seus propósitos. No curto e médio prazos esta questão é suscetível de Reforma, mas a longo prazo, se perdurarem os problemas, a solução é sempre revolucionaria, representando rupturas abruptas com o velho sistema. Muitos estudos trataram desta questão. O estudo clássico originário e o da “Reforma ou Revolução” de Rosa de Luxemburgo, que militou na Alemanha na virada dos anos 1900/1920, quando da promulgação da Constituição de Weimar. Modernamente estes estudos adquiriram varias tendências, dentre elas desenvolveu-se a teoria de sistemas, de David Easton. Este autor entende que a desfuncionalidade suscetível de Reforma denomina-se entropia positiva (o próprio sistema ainda pode sobreviver a custa de reformas) e aqueles sistemas que não tem condições de recuperação padecem de uma entropia negativa, estes casos aproximam-se, na velha literatura, da revolução.

J&C: As reformas no Brasil tem uma história?

AWB: As reformas, assim como as revoluções, podem ser estruturais e institucionais, sendo que as reformas também podem ser de natureza conjuntural. As revoluções estruturais afetam diretamente as relações econômicas e sociais e as revoluções institucionais pretendem alterações profundas na organização do Estado, geralmente, tem uma natureza política. No Brasil, as nossas revoluções, mesmo do Império para a Republica ou em 1930, foram institucionais. As propostas de reformas no Brasil, em geral, são a de natureza institucional, especialmente porque o Estado tem se mostrado frágil para alcançar efeitos estruturais. Em principio, os processos eleitorais de grande impacto poderiam desaguar em reformas estruturais, ou seja, mudar a ordem dentro da ordem. Todavia, as resistências institucionais localizadas ou segmentadas não tem permitido estes efeitos, embora teoricamente possíveis. As experiências de reformas institucionais, no Brasil, em geral, se reduzem a reformas conjunturais de pouco impacto econômico e social. As resistências institucionais e sociais geralmente defluem ou enfraquecem as propostas reformistas, reduzindo-se em reformas conjunturais.

J&C: As reformas estruturais (ou mesmo as revoluções) não implicariam numa ampla e previa definição política ou partidária do modelo econômico que se pretende alcançar?

AWB: É verdade. Apesar das amplas discussões sobre os modelos econômicos, no Brasil, recente, tivemos uma reversão das expectativas históricas clássicas, ou seja, evoluímos (ou involuímos) de um modelo econômico de tendências estadistas (inaugurado em 1930, e consolidado a partir de 1967 / 69) cujo objetivo institucional estava voltado para o estado do bem estar social, que no Brasil adquiriu uma ampla dimensão previdenciária, para um modelo econômico neoliberal, e não, como historicamente se esperava, social-democrata ou socialista. As reformas atuais, por conseguinte, estão na rota da reestruturação neoliberal da economia (privatização) para alcançar efeitos institucionais – reformas previdenciária e tributaria. Na verdade, o que se esperava é que a discussão sobre o modelo econômico antecedesse as propostas de reformas para que se tivesse a exata dimensão de seus destinos sociais, como, por exemplo, aliviar a classe media da tributação ou viabilizar a extensão dos direitos previdenciários aos trabalhadores privados ou, por outro lado, constranger o capital bancário ou a grande propriedade rural ou a propriedade improdutiva. Na verdade, ao que parece, as reformas estruturais foram deixadas ou largadas a sociedade civil ou a seus grupos organizados, como o MST (e aos grupos de resistências). No fundo, as propostas de Estado são institucionais e as dos grupos sociais remanescentes podem alcançar efeitos estruturais. Há uma aparente confusão porque os propósitos previdenciários e tributários tem um significativo viés neoliberal, enquanto os movimentos sociais “podem” não ter esse mesmo viés. Mas, no médio e longo prazo, as ações interventivas no campo podem vir a fortalecer o mercado, ampliando a capacidade de consumo daqueles que vierem ser assentados e/ou a produzir. No fundo, interessa, também, que se alcance esses resultados sem que o Estado se envolva diretamente na questão ou apenas viabilize as expectativas sociais. Na verdade, do ponto de vista dos interesses globais ou do próprio FMI não há uma contradição entre reestruturação agrária e modernização do mercado.

J&C: Então, a questão do modelo econômico sucedera a reforma institucional?

AWB: Em principio sim, porque países como o Brasil, que não participaram do primeiro arranque do capitalismo de mercado, com a Inglaterra, França e os Estados Unidos, evoluíram economicamente a partir de iniciativas do Estado. Este modelo de desenvolvimento, inspirado na fórmula alemã de Bismarck, e conhecido como bismarquismo, ou seja, o desenvolvimento econômico ou os modelos econômicos definem-se a partir da iniciativa e proposições do Estado “reformado”. Em geral, no passado, estas iniciativas geraram modelos de capitalismo de Estado. Modernamente, ao que parece, o Estado esta evoluindo nos seus propósitos institucionais para viabilizar o mercado e não propriamente para continuar como agente do mercado como era, através de empresas estatais. Ao que parece, o Estado procurou esvaziar-se economicamente com as privatizações e estaria evoluindo para esvaziar suas obrigações sociais tradicionais como especial forma de fortalecer o mercado, ou melhor, ampliar as ofertas através da viabilização de novos empregos ou da pequena iniciativa empresarial e/ou ampliar o consumo e a capacidade aquisitiva com o realocamento de recursos do Estado.

J &C; Como o senhor vê, então, as nossas perspectivas futuras?

AWB: as editoriais desta Revista tem indicado um caminho preliminar: evitar sempre que o avanço resulte em desagregação institucional ou do Estado Democrático de Direito. Partilhamos desta opinião. Esta é a preocupação essencial. Em segundo lugar, reconhecemos a imprescindibilidade das reformas, mas reconhecemos também que elas não podem ser esvaziadas ou transformadas em meras reformas conjunturais, um arranjo aqui outro ali. A história impôs situações intransponíveis que precisam ser consideradas para avançar. Reconheço que elas estão se firmando no sentido do mercado, mas, em muitas situações, um passo atrás é uma boa forma para que no futuro se de dois passos adiante. Existem situações controversas, é verdade, mas o tempo das rupturas profundas ficou no passado. É melhor que busquemos no sistema a sua forma de auto-corrigir para mudar. Penso que o mais conveniente é mudar a ordem dentro da ordem, por isto, o futuro exige uma reforma política, para rediscutir os processos e modelos eleitorais que permitirão realocar politicamente os grupos de representação e o alcance das propostas sociais.