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A ética do afeto

17 de janeiro de 2022

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Apesar de a razão de existir da sociedade e do próprio Estado seja a de proteger as pessoas, de modo escancarado, há determinadas posturas que afrontam anseios e sentimentos de quem quer somente ver assegurado o seu direito de ser feliz. 

No mais das vezes, a lei tenta impor pautas comportamentais como forma de  controlar a organização social, mas acaba excluindo do âmbito da tutela jurídica um punhado de vínculos afetivos pelo só fato de escaparem do parâmetro aceito pela sociedade como sendo o único possível. Um modelo que todos devem cegamente seguir e cumprir.

Os resultados são perversos, pois condenam à invisibilidade a vida como ela é. Os exemplos são muitos. E assustadores. 

Em face da influência conservadora de origem religiosa, a lei sempre buscou preservar e proteger exclusivamente as famílias constituídas pelos “sagrados laços do matrimônio”. Tudo o que pudesse comprometer a paz familiar era sumariamente descartado.

Havia toda uma classificação dos filhos, que recebiam rótulos para lá de pejorativos. Somente eram reconhecidos os frutos das famílias matrimonializada, os demais não. Os filhos havidos fora do casamento – rotulados de “ilegítimos” – não tinham o direito à própria identidade. Não podiam ser registrados com o nome do genitor. Pelo jeito, não tinham sequer o direito de viver, uma vez que não percebiam alimentos e nem lhes era assegurado direitos sucessórios. O filho era penalizado, quando ilegítima havia sido a conduta do pai, que descumpriu o dever de fidelidade e cometeu adultério.  Ainda assim ele era beneficiado, pois não lhe era imposta qualquer obrigação por ter se envolvido em uma aventura extramatrimonial. 

Como o casamento era indissolúvel, as pessoas só podiam casar uma vez. Deviam ficar juntas até a morte, mesmo na doença, na pobreza e na tristeza. O chamado “desquite” não dissolvia a sociedade conjugal. Esta marginalização, de nítido caráter punitivo, tinha por objetivo obrigar as pessoas a permanecerem casadas. 

Os vínculos afetivos constituídos fora do casamento não eram considerados uma família. Independente do tempo de convívio, do número de filhos, ficavam à margem do Direito das Famílias e das Sucessões. Tais uniões – com o nome de “concubinato” – eram consideradas meras sociedades de fato. Via de consequência, não existia direito a alimentos, previdenciários ou sucessórios. Exclusões que vinham sempre em prejuízo da mulher.

Ainda que os tempos tenham mudado e se esteja vivendo sob a égide de uma Constituição encharcada de princípios, que asseguram respeito à dignidade das pessoas, persistem posturas excludentes. 

Basta atentar às pessoas LGBTQIA+. Rejeitadas pela sociedade, sempre foram obrigadas a viver dentro do armário. Sem direito de constituírem família, terem filhos. Seus relacionamentos eram invisíveis. Uma vida inteira de vida em comum nada garantia. 

Diante da omissão do legislador – que sempre resiste em editar leis que desagradem a maioria do seu eleitorado e possam comprometer sua reeleição – acabou a Justiça suprindo esta lacuna. E foi assim que, no ano de 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu as uniões homoafetivas como entidade familiar. Não demorou para o Superior Tribunal de Justiça assegurar acesso ao casamento. Até que o Conselho Nacional de Justiça impediu que fosse negado o direito ao casamento, ao reconhecimento da união estável e sua conversão em casamento. Com isso, o Brasil se tornou o primeiro País do mundo a admitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, por decisão judicial e não por meio da lei.

Mas há outras realidades que existem e que ainda se encontram fora da tutela do Estado. Uniões simultâneas são uma realidade. Homens conseguem a façanha de ter duas famílias ao mesmo tempo. Desdobram-se entre uma e outra casa. Vivem de cá para lá e de lá para cá. De um modo geral têm filhos com as duas mulheres e mantém ambas as famílias. Está errado? Certamente nesta receita há infidelidade, há descumprimento do dever de lealdade, há mentiras, mas estas famílias existem. 

Apesar da rejeição social, a lei não penaliza quem assim age. Ao contrário. Incentiva tal postura, ao reconhecer apenas um dos relacionamentos. Como não são impostos deveres e nem assegurados direitos com relação à outra família – pode ser mais de uma – o homem fica livre de toda e qualquer obrigação, por um agir cuja reponsabilidade é exclusivamente dele. E é a mulher quem resta punida. Induzida em erro, em um primeiro momento, acaba se conformando em dividir o amor de quem lhe jurou que seria exclusivo. Este vínculo afetivo não é reconhecido como uma entidade familiar, ainda que atenda a todos os requisitos legais para a sua configuração: relacionamento público, contínuo, duradouro que constituiu uma família.

Do mesmo modo são ignoradas as estruturas poliafetivas, em que a família é composta por mais de duas pessoas, que convivem sob o mesmo teto. Apesar de ser um vínculo mais autêntico, por assumido por todos os seus integrantes, estão eles proibidos até de firmarem escritura pública para estabelecer deveres recíprocos. Como se a falta de formalização fosse fazê-los desaparecer. Mais uma vez a solução encontrada é chancelar o enriquecimento sem causa de uns, em detrimento do direito de outros, que restam condenados à indigência.

Esta é a apertada síntese de como a lei e a jurisprudência veem as relações de conjugalidade e parentalidade. Diante deste panorama limitante e limitado é que o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) provocou uma verdadeira revolução no próprio conceito de família. Ao desvendar o afeto como elemento identificador dos vínculos familiares, atribuiu-lhe valor jurídico que impõe comportamentos éticos de seus integrantes. 

Instalou-se assim uma nova ordem jurídica, a ponto de ser alterado o próprio nome deste ramo do Direito. Passou a ser chamado Direito das Famílias. 

Reconhecida a existência de um vínculo em que existe confiança e comprometimento recíproco, é indispensável a imposição dos deveres de mútua assistência, de cuidado. Independe da estrutura do relacionamento, da identidade dos seus integrantes ou do número de participantes. 

Não ver, dizer que uniões de diferentes conformações não existem, é incentivar comportamentos antiéticos. Sequer é necessária expressa previsão legal para que os vínculos afetivos – todos eles – sejam enlaçados pelo Direito, com a imposição de responsabilidades recíprocas. Basta atentar que a Constituição da República elenca um rol imenso de direitos individuais e sociais, como forma de garantir a dignidade de todos. Apesar de não utilizada a palavra afeto, está consagrado o princípio da afetividade. Pode-se até dizer que houve a constitucionalização do afeto, no momento em que a união estável foi reconhecida como entidade familiar, merecedora da tutela jurídica. Como a união estável se constitui sem necessidade da chancela estatal, isso significa que é a afetividade que une e enlaça as pessoas, a ponto de merecer reconhecimento e a inserção no sistema jurídico. 

O Código Civil também não utiliza a palavra afeto, mas o consagra. Basta atentar que a posse de estado de filho gera relação de parentesco. Nada mais do que o reconhecimento jurídico do vínculo de afetividade. Até que, finalmente, o legislador definiu família como uma relação íntima de afeto (Lei Maria da Penha/ Lei nº 11.340/2006, art. 5.º, II). Conceito este que estende a todo o sistema jurídico.

A comunhão de afetos é incompatível com um único modelo. A família se transformou e os vínculos afetivos precisam gerar responsabilidades recíprocas. Despontam novos modelos de família mais igualitárias nas relações de sexo e idade, mais flexíveis em suas temporalidades e em seus componentes, menos sujeitas à regra e mais ao desejo. 

Como diz o saudoso João Baptista Villela, as relações de família, formais ou informais, indígenas ou exóticas, ontem como hoje, por mais complexas que se apresentem, nutrem-se, todas elas, de substâncias triviais e ilimitadamente disponíveis a quem delas queira tomar afeto, perdão, solidariedade, paciência, devotamento, transigência, enfim, tudo aquilo que, de um modo ou de outro, possa ser reconduzido à arte e à virtude do viver em comum. A teoria e a prática das instituições de família dependem, em última análise, de nossa competência em dar e receber amor. 

Talvez nada mais seja necessário dizer para evidenciar que o elemento fundante do Direito das Famílias é o princípio da afetividade, que diz com o direito fundamental à felicidade. 

Notas_________________________

1 STJ – ADI 4.277 e ADPF 132, Rel. Ministro Ayres Britto, j. 05/05/2011.

2 STJ – REsp 1.183.378-RS, 4.ª Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, j. 25/10/2011.

3 CNJ – Resolução 175/2013.

4 PERROT, Michelle. “O nó e o ninho”. Revista Veja 25 anos: reflexões para o futuro, São Paulo, Abril, 1993, p. 81.

5 VILLELA, João Baptista. “As novas relações de família”. Anais da XV Conferência Nacional da OAB, Foz do Iguaçu, set. 1994, p. 645.