A Fenomenologia Jurídica e a atividade jurisdicional

22 de março de 2023

Maria Lúcia Gyrão Presidente da Comissão de Filosofia do Direito do IAB

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No pensamento do Brasil independente, coube ao professor Aquiles Côrtes Guimarães, nascido em 1937, em Aimorés, Minas Gerais, e falecido no dia 28 de junho de 2016, introduzir o estudo da Fenomenologia Jurídica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em outras universidades.

O magistério do professor Aquiles representa uma valiosa contribuição ao pensamento jurídico filosófico brasileiro, levando, em consequência disto, um grupo de ex-alunos a se reunir para continuar estudando, revivendo e aprofundando as suas inesquecíveis lições, entre eles o professor Jorge Câmara, que criou na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) um centro de estudos sobre Fenomenologia Jurídica.

Dentre os vários livros e artigos que o professor Aquiles escreveu, há que se destacar o intitulado “Lições de Fenomenologia Jurídica”, com base no qual este artigo está fundamentado. O mencionado livro minudencia esse método filosófico jurídico que visa à aplicação do Direito com a evidenciação da justiça.

O professor Aquiles foi um profundo conhecedor da Fenomenologia criada por Edmund Husserl (1859-1938) e veio a aplicar esta corrente filosófica ao Direito.

A Fenomenologia busca o retorno às coisas mesmas, em que se procura reler o mundo, afastando-o não só dos paradigmas impostos pelas ciências, que o artificializam, mas também o conduzindo a um esquecimento dos sentidos, da essência dos fenômenos. Foi uma reação ao Positivismo, que proclama o previsto na norma jurídica, devendo a mesma ser aplicada sem buscar o sentido do que se apresenta à consciência. Os fatos são aprisionados pelos conceitos normativos, ocorrendo, algumas vezes, a injustiça. A convivência humana, nesse caso, estaria garantida pelo ordenamento jurídico.

Para a Fenomenologia Jurídica, o Direito é um objeto cultural, ideal, sendo um conjunto de significações e sentidos concretizados nas normas. O Direito é uma criação da consciência humana. Compreender o Direito é revelar o seu sentido. A existência dos seres humanos e a coexistência entre eles constituem a essência do Direito. Daí a importância da entropatia (terminologia usada por Husserl), fenômeno que faz passar do campo da subjetividade para o da intersubjetividade. A intersubjetividade está conectada à conduta de um indivíduo, que precisa ser respeitada em face da alteridade do outro (da conduta do outro).

Husserl delega a Edith Stein, sua predileta aluna que vem a tornar-se uma famosa filósofa, o estudo da entropatia. Edith Stein, canonizada Santa Tereza Benedita da Cruz, assassinada em Auschwitz, desenvolveu o estudo da empatia, que é um fenômeno que se dá pela vivência alheia sui generis, tendo preferido o termo empatia ao de entropatia. Ela chega mesmo a afirmar que a verdadeira justiça se concretiza pelo acordo das partes em conflito, fruto da empatia, não necessitando da intervenção do Estado-Juiz. É, portanto, a idealizadora do que tem prevalecido nos tempos atuais no Direito, ou seja, o acordo, a conciliação, como sendo a melhor forma de se alcançar uma justiça célere, desafogando o Judiciário.

O objeto do Direito é a Justiça, a juridicidade, ou seja, o que é justo. Para o professor Aquiles, “a justiça é pré-categorial, independe de alguém anunciar o que vem a ser justo ou injusto”.

As normas jurídicas estão submetidas ao tempo, ao perecimento em face da temporariedade, diante dos novos sentidos descobertos pela intencionalidade intuitiva da consciência do profissional do Direito e do magistrado.

Portanto, a Fenomenologia Jurídica constitui um instrumento da construção hermenêutica que está correlacionada a compreender e a perceber o sentido do que é mostrado através da redução eidética, que consiste em se colocar entre parênteses, em se suspender provisoriamente a crença (lei, doutrina e jurisprudência) para a compreensão do que é dado em sua pureza – e a isso se dá o nome de epoké.

Em seguida, efetuar-se-á a redução transcendental, pois a essência do fenômeno é evidenciada na consciência do magistrado. No caso, há uma reflexão do julgador diante da pureza do fato, porque já houve a redução eidética, e agora, na redução transcendental, evidencia-se o que lhe é mostrado em sua pureza, buscando a norma para orientá-lo na solução do conflito de interesses.

A Fenomenologia busca a verdade através dessas duas reduções: a eidética (encontro da consciência com o mundo despojado de todos os pré-conceitos e categorias explicativas, o que interessa no fato é a essência) e a transcendental (a evidenciação do fenômeno que é mostrado ao sujeito).

Para o professor Aquiles, a Fenomenologia Jurídica é um método de compreensão, esclarecimento e interpretação do Direito pelo qual o magistrado resolve o conflito de interesses. O julgador, ao refletir, firmará um juízo em relação ao fato dado. Decidir, como afirma o professor Aquiles em “Fenomenologia e Direito”, é cindir a relação jurídica, porque uma das partes será vencedora. Ocorre, desse modo, a atividade jurisdicional, quando então o juiz pronuncia a justiça que provém do mundo da vida. Desta forma, emerge a juridicidade.

Por fim, reafirmando este artigo estar calcado nas aulas magistrais do professor Aquiles e nos ensinamentos constantes dos seus livros, a Fenomenologia leva o jurista a acreditar na possibilidade de um conhecimento puro e apodítico (demonstrativo) do Direito. O importante, para a Fenomenologia Jurídica, é a busca do significado, do sentido dos fatos em virtude de ser um método pelo qual evidencia a juridicidade, ou seja, o que é justo.

Referências bibliográficas______________________

GUIMARÃES, Aquiles Côrtes. “Fenomenologia e Direitos Humanos”. Rio de Janeiro, Editora Lúmen Júris, 2007.

________________________ “Fenomenologia e Direito”. Rio de Janeiro, Editora Lúmen Júris, 2005. Coleção Primeiros Passos na Filosofia do Direito.

________________________ “Pequena introdução à Filosofia Política: A questão dos fundamentos”. Rio de Janeiro, Editora Lúmen Júris, 2000.

________________________ “Cinco lições de Filosofia do Direito”. 2ª edição, revisada. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2001.

HUSSERL, Edmund. “Meditações cartesianas e conferências de Paris”. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

________________ “Ideias para uma Fenomenologia pura e para uma Filosofia fenomenológica: Introdução geral à Fenomenologia pura”. Aparecida: Ideias e Letras, 2006. Coleção Subjetividade Contemporânea.

________________ “Investigações lógicas”. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

STEIN, Edith. “Obras Completas II, Escritos filosóficos – Etapa fenomenológica” 2005. Ediciones El Carmen. Manuel Iradier, 2 B – 01005 Vitória. Impresión y encuadernación: “Monte Carmelo” Burgos.