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A figura do “amicus curiae”

5 de janeiro de 2005

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A interferência do amigo da corte nas ações de inconstitucionalidade do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais de Justiça

Há algo de novo na Justiça brasileira ou, mais precisamente, nos processos em curso perante o Supremo Tribunal Federal e os Tribunais de Justiça dos Estados: refiro-me à figura do amicus curiae (permitam-me chamá-lo de “o amigo da corte”), cuja intervenção em processos de controle abstrato de constitucionalidade assumiu especial relevo com a edição da Lei N° 9.868/99.

É bem verdade que a Lei n° 6.385, de 7 de dezembro de 1976, no seu artigo 31, já previa a intervenção da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), na qualidade de amicus, em processos entre partes privadas nos quais se discutam questões de direito societário sujeitas, no plano administrativo, à competência daquela entidade. Aliás, o próprio Supremo, muito antes da edição da Lei n° 9.868/99, já admitia, por influência do direito americano, a apresentação informal de memoriais por amici curiae nas ações diretas de inconstitucionalidade.

O que há de novo e alvissareiro, todavia, é a forma pela qual a intervenção do amicus agora se institucionaliza no país. Enquanto a intervenção da CVM era de natureza neutra, destinada a colaborar com sua expertise para uma prestação jurisdicional tecnicamente informada, a intervenção do amicus curiae em processos de controle abstrato de constitucionalidade tem escopo bem mais abrangente. Com efeito, segundo o artigo 7°, parágrafo 2° da Lei n° 9.868/99, tendo em conta a relevância da matéria e a representatividade do postulante, o relator da ação direta de inconstitucionalidade poderá admitir a manifestação formal de órgãos e entidades no processo. Aqui, ao contrário da CVM, o órgão ou entidade se habilitará para apresentar a sua visão da questão constitucional em discussão, oferecendo à corte a sua interpretação, como partícipe ativo da sociedade aberta de intérpretes da Constituição Federal.

O propósito da inovação é claramente o de pluralizar o debate constitucional, permitindo que o tribunal venha a tomar conhecimento, sempre que julgar relevante, dos elementos informativos e das razões constitucionais daqueles que, embora não tenham legitimidade para deflagrar o processo, serão destinatários diretos ou mediatos da decisão a ser proferida. Visa-se, ademais, a alcançar um patamar mais elevado de legitimidade nas deliberações do tribunal constitucional, que passará formalmente a ter o dever de apreciar e dar a devida consideração às interpretações constitucionais que emanam dos diversos setores da sociedade.

Imagine-se que, contra uma lei que tenha proibido a comercialização de determinado produto, uma ação direta de inconstitucionalidade tenha sido ajuizada por um partido político perante o Supremo Tribunal Federal. Antes, no modelo autoritário de jurisdição constitucional, a questão seria decidida pela corte, com audiência apenas do legislador, do advogado-geral da União e do procurador-geral da República. Ou seja: os maiores interessados – as empresas do setor envolvido e os consumidores do produto – eram simplesmente ignorados.

Hoje, no entanto, diante da relevância da matéria, qualquer entidade representativa da categoria econômica ou dos consumidores poderia postular a sua intervenção formal no processo para sustentar suas razões acerca da constitucionalidade da lei. Ainda melhor que isso: o Supremo, recentemente, decidiu que, além da apresentação de peças escritas, os amici curiae, por intermédio de seus advogados, estão autorizados a realizar sustentações orais nas sessões de julgamento. Tal possibilidade é especialmente relevante porque os julgamentos do Supremo são televisionados para todo o país, contribuindo as sustentações orais para incrementar o grau de racionalidade e controlabilidade social de suas decisões.

É ainda de se anotar que a possibilidade da atuação do amicus se estende às Representações por Inconstitucionalidade de competência dos Tribunais de Justiça dos Estados. Isto porque a regulação desta atuação (na já citada Lei n° 9868/98) é norma de direito processual, de competência exclusiva da União (art. 22, I da Constituição), aplicando-se, inclusive, pela sua própria natureza, às Representações por Inconstitucionalidade em curso.

Em um país que confere a última palavra sobre a interpretação da Constituição a um colegiado de juízes não eleitos, é salutar que as decisões de tal colegiado sejam precedidas de um amplo debate público envolvendo os diversos setores da sociedade civil. A participação ativa dos amici curiae em processos de controle abstrato de constitucionalidade se erige, assim, em importante condição de legitimação social das decisões proferidas em controle de constitucionalidade abstrato. E o amicus, mais do que um amigo da corte, se convola em um verdadeiro amigo da democracia.