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A Igualdade e as Ações Afirmativas

15 de abril de 2002

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As Constituições brasileiras sempre versaram sobre o tema da isonomia. Entretanto a igualdade permaneceu, ao longo dos anos, no campo simplesmente formal. E o que se depreende, por exemplo, da Carta de 1824, na qual apenas se remetia o legislador a equidade, ou da Constituição republicana de 1891, quando se previu simplesmente que todos seriam iguais perante a lei. Na Carta popular de 1934, acresceu-se que não haveria privilégios por diversos motivos, ressalva esta retirada na Constituição outorgada de 1937, talvez por não se admitir a discriminação. Editaram-se, sob a égide dessa Carta, a Consolidação das Leis do Trabalho e o Código Penal de 1940, mostrando-se ambos os diplomas insuficientes para corrigir as diferenças. Já na progressista Carta de 1946, reafirmou-se o principio da igualdade e rechaçaram-se propagandas preconceituosas, o que fez surgir indiretamente no cenário jurídico a lei do silencio, inviabilizando-se de modo mais incisivo a repressão as manifestações de intolerância. Com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, começou-se a reconhecer a real situação do Brasil em relação ao problema, vindo a balha, em 1951, a primeira lei penal sobre a discriminação – tipificada, a época, como mera contravenção penal -, ressaltando-se, na justificativa do diploma, que a postura do Estado deve servir de exemplo ao cidadão comum, haja vista o racismo então verificado em carreiras civis, como a da diplomacia, e militares. Em 1964, o Brasil subscreveu a Convenção n° 111 da Organização Internacional do Trabalho, na qual definida a discriminar;;ao: “Toda distinção, exclusão ou preferência, com base em raça, cor, sexo, religião, opinião política, nacionalidade ou origem social, que tenha o efeito de anular a igualdade de oportunidade ou de tratamento em emprego ou profissão”. Na Carta de 1967, deu-se um passo a mais, ao constitucionalizar­se a punição do preconceito, mas as leis ordinárias continuavam insuficientes ao fim almejado. Com a Lei da Imprensa, em 1967,o racismo passou a ser crime, e a Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil em 1968, dispôs que não seriam consideradas discriminação medidas especiais – e começamos a adentrar aqui o campo das ações afirmativas – “tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, a manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam ap6s terem sido alcançados os seus objetivos”. Na Emenda Constitucional n° 1, de 1969, repetiu-se o texto da Carta anterior, proclamando-se, pedagogicamente – e esse trecho encerra a principiologia -, que não seria tolerada a discriminação.

Esse foi o quadro de igualização simplesmente formal notado pelos Constituintes de 1988, a evidenciar a necessidade de correção de rumos. Na Constituição atual, adotou-se, pela primeira vez, um preâmbulo, em que se dizia da opção por uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. A Lei Maior inicia-se com o artigo que lhe revela o alcance: constam, como fundamentos da Republica, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Do artigo 3° vem-nos luz suficiente ao agasalho de uma ação afirmativa, a percepção de que o único modo de se corrigir desigualdades e colocar o peso da lei, com a imperatividade que ela deve ter, a favor daquele que e tratado de modo desigual. Nesse preceito, são objetivos precípuos da Republica: primeiro, construir – preste-se atenção a esse verba ­uma sociedade livre, justa e solidaria; segundo, garantir o desenvolvimento nacional ­novamente o verba esta a conduzir a uma posição ativa; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e, por ultimo, no que nos interessa, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Passou-se, assim, de uma igualização estática, negativa – no que proibida a discriminação -, para uma igualização eficaz, dina mica, já que os verbos “construir”, “garantir”, “erradicar” e “promover” denotam ação. Não basta não discriminar. E preciso viabilizar as mesmas oportunidades. Ha de ter-se como ultrapassado o sistema simplesmente principiologico. A postura, mormente dos legisladores, deve ser, sobretudo, afirmativa. o fim almejado por esses dois artigos da Carta e a transformar;;ao social, com o objetivo de erradicar a pobreza – uma das formas de discriminação – visando-se, acima de tudo, ao bem de todos. No âmbito das relações internacionais, a Constituição de 1988 estabelece que prevalecem as normas concernentes aos direitos humanos. No artigo 4°, inciso VII, repudia-se o terrorismo, colocando-se no mesmo patamar o racismo. Encontramos aqui, mais do que princípios, verdadeiras autorizações para uma ação positiva. No campo dos direitos e garantias fundamentais, enfatizou-se a igualização, ao preceituar-se, no artigo 5°, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, assegurando-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade do direito a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade. Seguem-se 77 incisos, cabendo destacar o XLI, consoante o qual “a lei punira qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”; o inciso XLII, a prever que “a pratica do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei”. Nem a passagem do tempo, nem o valor “segurança jurídica” suplantam o realce dado pelo constituinte ao odioso crime racial. Mais ainda: conforme o § 1° do artigo 5°, “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata”, cumprindo aos responsáveis pela supremacia do Diploma Maximo buscar meios para torna­-ló efetivo. Alem disso, de acordo com o § 2° desse artigo, os direitos e garantias constitucionais não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, e, aqui, passou-se a contar com os denominados direitos e garantias implícitos ou insertos nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Vigora também a Lei n° 7.716/89, na qual capitulados como crimes certos procedimentos, que se encontram a margem da Carta. Falta-nos, então, para afastarmos do cenário as discriminações, uma mudança cultural, uma conscientização maior dos brasileiros; urge a com preensão de que não se pode falar em Constituição sem levar em conta a igualdade, sem assumir o dever cívico de buscar o tratamento igualitário, de modo a saldar dividas históricas para com as impropriamente chamadas “minorias”, ônus que e de toda a sociedade.

Consideremos, agora, o principio da realidade: e necessário par em pratica o que esta no papel. No Direito do Trabalho, esse principio e acionado no dia-a-dia, sobrepondo­se ao texto do contrato firmado pelo tomador e prestador de serviços. A pratica comprova, por exemplo, que, diante de currículos idênticos, prefere-se a arregimentação do branco e que, sendo discutida uma relação locatícia, da-se preferência aos brancos. Nas lojas de produtos sofisticados, raros são os vendedores negros, raríssimos os gerentes. Em restaurantes, sérvios que impliquem contato direto com o cliente geralmente não são feitos por negros. Nos locais em que ha a presença maior de negros, estes atuam como manobrista, leão-­de-chacara etc.

Há exceções, felizmente, pois já contamos com algumas grandes empresas que procuram equilibrar essa equação; uma delas começou com essa política em 1970, mas mesmo assim, ate aqui, só conseguiu compor o quadro funcional com 10% de negros. Iniciativas semelhantes servem para escancarar o problema, para abrir nossos olhos a esse impiedoso tratamento que resulta numa discriminação inaceitável.

É preciso buscar-se a ação afirmativa. A neutralidade estatal mostrou-se um fracasso. Ha de se fomentar o acesso a educação; urge um programa voltado aos menos favorecidos, a abranger horário integral, de modo a tirar-se meninos e meninas da rua, dando-se-lhes condições que os levem a ombrear com as demais crianças. E o Poder Publico, desde já, independentemente de qualquer diploma legal, deve dar a prestação de serviços por terceiros uma outra conotação, estabelecendo, em editais, quotas que visem a contemplar os que tem sido discriminados. O setor publico tem a sua disposição, ainda, as funções comissionadas que, a serem preenchidas por integrantes do quadro, podem e devem ser ocupadas pelas ditas minorias. Exemplo vivo deu-nos ha pouco o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Não se ha de cogitar que esse procedimento conflita com a Constituição, porque, em ultima analise, objetiva a efetividade da própria Carta. As normas proibitivas são ineficazes para afastar do nosso cenário a discriminação. Precisamos contar com normas integrativas. No momento, tramita no Senado Federal o Projeto PLS n° 650, de iniciativa do senador Jose Sarney, sobre quota para a população negra no acesso aos cargos e empregos públicos, a educação superior e aos contratos do fundo de financiamento ao estudante do ensino superior, quota que, diante do total dessas minorias – e apenas são minorias no tocante as oportunidades -, mostra-se singela: 20%. Essa legislação deve ser imperativa, ante a necessidade de o Estado intervir para corrigir desigualdades, e de nada adiantaria tal intervenção se as normas de proteção se emprestasse a eficácia dispositiva. Deve-se reafirmar: toda e qualquer lei que tenha por objetivo a concretude da Constituição não pode ser acusada de inconstitucional.

Entendimento divergente resulta em subestimar ditames maiores da Carta da Republica, que agasalha amostragem de ação afirmativa, por exemplo, no artigo 7°, inciso XX, ao cogitar da proteção de mercado quanta a mulher e da introdução de incentivos; no artigo 37, inciso III, ao versar sobre a reserva de vaga – e, portanto, a existência de quotas -, nos concursos públicos, para os deficientes; nos artigos 170 e 227, ao emprestar tratamento preferencial as empresas de pequeno porte, bem assim a criança e ao adolescente. No campo da legislação ordinária, a Lei n° 8.112/90 fixa a reserva de 20% das vagas, nos concursos públicos, para os deficientes físicos; a Lei eleitoral n° 9.504/97 dispõe sobre a participação da mulher como candidata e estabelece também o mínima de 30% e o Maximo de 70% de candidatos de cada sexo. A proteção aqui concorre também em beneficio dos homens. Talvez o legislador haja receado uma interpretação apressada, levando em conta um suposto conflito com a Carta, ao prever, como ocorreu anteriormente, uma quota especifica para as mulheres. Já a Lei n° 8.666/93 viabiliza a contratação, sem licitação, mas pelo preço de mercado, de associações, sem fins lucrativos, de portadores de deficiência física. No sistema de quotas, devera ser considerada a proporcionalidade, a razoabilidade, dispondo-se, para tanto, de estatísticas. Tal sistema ha de ser utilizado para a correção de desigualdades. Assim, deve ser afastado tão logo eliminadas essas diferenças. O Judiciário pode contribuir, e muito, nesse campo, como o fez a Suprema Corte dos Estados Unidos da America, apos a Segunda Guerra Mundial. Ate então, só o legislador atuava. Percebeu aquela Corte que precisava, realmente, sinalizar para a população, de modo a que prevalecessem, na vida gregária, os valores básicos da Constituição americana. Diante de um conflito de interesses, cumprira ao juiz ter sempre presente o mandamento constitucional de regência da matéria. Só teremos a supremacia da Carta quando implementarmos a igualdade. A ação afirmativa evidencia o conteúdo democrático do principio da igualdade jurídica. A correção das desigualdades é possível. Por isso, façamos o que esta ao nosso alcance, o que esta previsto na Constituição Federal, porque, na vida, não ha espaço para arrependimento, para acomodação, para o misoneismo. Mãos a obra, a partir da confiança na boa índole dos brasileiros e nas instituições pátrias.