Edição 71
A inadiável revisão constutucional
30 de junho de 2006
Ney Prado Membro do Conselho Editorial e Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia
Antes de adentrar propriamente na análise dos vícios da nossa atual Constituição, vale recordar que toda obra humana, individual ou coletiva, é passível de imperfeições e, portanto, de censura. Ainda porque, como lembrou Theodore Roosevelt: “O único homem que jamais comete erros é o homem que jamais fez alguma coisa”.
De fato, acertar e errar é uma contingência humana. Seria mera idealização, imaginar que os nossos constituintes pudessem tornar a Constituição uma obra perfeita e acabada.
Hoje, após dezoito anos de vigência, a Constituição de 1988 já recebeu abundantes apreciações e avaliações críticas de vários segmentos da sociedade brasileira e até de instituições internacionais, dando-nos um panorama razoavelmente diver-sific-ado de seus aspectos positivos e negativos.
São, com efeito, muito grandes as perplexidades suscitadas pelas inovações da Carta de 1988. Por vezes, sem precedentes na práxis de outros povos; por vezes, repetitivas de antigos preconceitos; por vezes, sepultadas na experiência dos país-es mais desenvolvidos; por vezes, im-precisas e duvidosas; por vezes, incom-pletas e in-definitórias, multi-plicam-se elas no texto, positivadas em grande quantidade, normas problemáticas, controvertidas e inexecutáveis. Essas perp-lexidades têm se refletido no Parlamento, no Executivo e nos Tribunais, bem com-o nos inúmeros seminários e congressos em que as novas instituições vêm sendo analisadas e debatidas. Há quase um geral reconhecimento que o nosso Magno Diploma Jurídico trouxe mais dúvidas do que certezas quanto à interpretação de seus inúmeros e infindáveis artigos. 1
É bom lembrar que, no plano interno, a idéia de uma nova Constituição surgiu num momento de transição, coincidentemente com o esgotamento do ciclo autoritário e os movimentos de redemocratização do País; “diretas já” e “constituinte já”!
A idéia dominante era que a nova Constituição “não exerceria apenas o papel de tradutora dos valores predominantes, mas também o de propulsora de transformações sociais. Não poderia ser igual às outras. Nem na forma, nem no estilo, nem nas afirmações e nas formulações fundamentais. O de que se tratava era fazer uma Constituição realmente libertadora de nosso povo, que pudesse garantir ao mais humilde cidadão ter seus direitos totais assegurados, inclusive o direito de simplesmente não aceitar o fato de não ter nada quando alguns poucos têm tudo”.2
Mas quando a Constituição foi promulgada em outubro de 1988 “ainda não havia clara percepção das dramáticas transformações mundiais, caracterizadas pelo colapso do dirigismo socialista. Se a gravidez constitucional tivesse prolongado por um período adicional de nove meses, os constituintes teriam percebido a enorme mudança na ecologia econômica mundial. Uma quádrupla rebelião: a primeira contra o Estado regulador, que destrói a flexibilidade necessária às sociedades industriais modernas; a segunda contra o Estado exator, que aumenta tributos sem cortar gastos e sem melhorar serviços; a terceira contra o Estado empresário, que não pode ser julgado pelos testes de mercado, por operar com monopólios e privilégios; e finalmente contra o Estado previdenciário, que agrava desnecessariamente os custos de mão-de-obra quando seus serviços poderiam ser executados com menor custo e maior eficiência pelas próprias empresas, mediante acordos fiscalizados pelos trabalhadores.”3
Nossa Constituição possui reconhecidamente vícios e virtudes.
Pode-se tudo criticar a respeito dos constituintes de 1988 e da qualidade de seu trabalho. Não obstante os defeitos que possa apresentar ela representa inegavelmente um marco importante na História do País: o fim de um ciclo autoritário e o início de uma nova experiência democrática, que se pretende duradoura. Retrata, assim, o anseio da sociedade brasileira de viver um regime de liberdade, protegido por um Estado de Direito; assume, merecidamente, o papel simbólico do regime democrático; da desejada estabilidade in-stitucional, sem a qual nenhum valor formal tem sentido.
Um dado, entretanto é recorrentemente enfocado. Emerge como uma tônica, constante em quase todas as apreciações: a Constituição de 88 é um documento provocativo, inegavelmente criativo, mas, por suas características, desestabilizador da vida nacional. Não há exageros em afirmar-se que seu advento provocou enorme in-segurança jurídica, dificultou a governabilidade, inibiu os negócios e investimentos internos e externos, sem falar nos conflitos sociais que gerou, em níveis jamais ex-perimentados entre nós.
Um dos vícios da Constituição de 1988, recorrentemente apontado, é o casuísmo, observável em todo o texto. Nele tudo se prevê ; tudo se regula. Antevêem-se todas as hipóteses e dispõe-se sobre todas as soluções. A Constituição foi transformada num variado repertório de temas, sem distinção, entre o que realmente deve ser matéria incluída na Carta Magna e o que poderá ser objeto de legislação complementar, ordinária e até regulamentar.
Aliás esse inchaço constitucional, essa colcha de retalhos, essa verdadeira enciclopédia pública, fruto da imposição de um modelo de constituição dirigente, com minudências que descem da matéria constitucional, para esgotar temas reservados à legislação ordinária e às opções administrativas regulamentares, não é, apenas, um defeito técnico muito grave da elaboração constitucional: é uma forma de totalitarismo normativo, espécie tão ou mais nociva que o totalitarismo tradicional.
Para ser democrática, uma Constituição não pode ser um elenco infindável de soluções. Seu papel é oferecer uma moldura, dentro da qual o povo poderá, durante muitos anos, continuar a buscar o seu caminho.
Para fugir ao casuísmo, a Constituição deveria ser um corpo forte, esbelto, sintético, essencial, compendiado, estrutural, nunca penosamente adiposo e extensivo.
Outro vício da constituição é a sua contraditoriedade intrínseca, tanto do ponto de vista dos valores adotados quanto das normas que ela contém.
Com efeito, de nada adiantam seus princípios, do título I e suas abundantes setenta e duas declarações de liberdades e garantias, esmiuçadas no quilométrico artigo 5º do título II, se, con-traditóriamente, elas acabam sendo anuladas pela complicada máquina do Estado intervencionis-ta e fiscalista que vem minudentemente construída nos sete Títulos restantes.
“O indivíduo, exaltado por aquelas prolixas declarações de direitos e garantias, parece ter recebido tudo e mais alguma coisa. Mas, aos poucos, a Carta decepciona e se contradiz, a medida em que o papel do Estado vai sendo detalhadamente definido na mais extensa Carta de nossa his-tória. O in-divíduo tem tudo enquanto pessoa idealizada: no momento em que dele se espera o trabalho, a iniciativa, o progresso, enfim, dele se desconfia, começa a ser penalizado, tributado e limitado”4.
Na ordem econômica, desde logo, nos deparamos com uma espantosa contradição entre o disposto no artigo 170, inciso IV, que estabelece as pilastras da economia de mercado (livre iniciativa e livre concorrência) e a grande quantidade de dispositivos de natureza interventista que se segue. Indaga-se: como realizar uma economia de mercado com mais de quarenta regras de intervenção econômica?
Na verdade, a Constituição de 88 não chegou ao ponto de estruturar um Estado Democrático de Direito de conteúdo socialista, mas pretendeu, por certo, compatibilizar a democracia política com muitos dos aspectos próprios do socialismo econômico.
Quanto à organização funcional do poder, lembra-nos oportunamente Roberto Cam-pos que o modelo inglês é o da integração dos poderes; o americano, o da separação dos poderes; o nosso modelo atual não é um nem outro. Criou-se um terceiro tipo: o da invasão dos poderes.
No dizer de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, assistimos hoje uma situação esdrúxula: “O poder executivo legisla, o poder legislativo investiga e o poder judiciário administra”. Essa anomalia tem provocado uma constante fricção entre os Poderes, agravando o quadro da ingovernabilidade.
Esse grave defeito torna impossível uma legislação coerente, uma ad-ministração coerente e, sobretudo, uma jurisprudência coerente.
O utopismo é outro vício que se pode imputar à Constituição de 1988. E o é, duplamente: porque pretende ser um instrumento de transformação social e porque se divorcia totalmente da realidade.
Os românticos da Assembléia Nacional Constituinte, in-satisfeitos com a realidade, acreditaram ser possível rejeitá-la radical-mente e modificá-la por ato de von-tade.
Ignoraram que a norma facilita ou dificulta o progresso, mais não o gera materialmente. A materialização do progresso pertence à ordem dos fatos, não à dos preceitos”.5 “Na verdade, uma Constituição não resolve problemas, apenas aponta diretrizes”.6
A Constituição de 1988 ao se divorciar da nossa realidade perdeu consideravelmente as condições práticas de reger eficazmente a vida política, econômica e social da Nação.
Dominados pelo desejo de inovar, os constituintes pretenderam produzir a mais perfeita e completa Constituição em seu gênero entre as existentes no Brasil e no mundo; algo pronto, acabado, um produto no qual tudo parece simples e coordenado, uniforme e justo. Parece ter sido escrita para um outro País, com pouca coisa em comum com o Brasil real. A impressão geral é que os constituintes quiseram apenas conceder, sem nada ex-igir, e distribuir sem tratar de criar condições de produzir.
Poder-se-ia argumentar que as medidas propostas são de cunho meramente programático e que muitas delas costumam vir inseridas em algumas constituições, tanto brasileiras como estrangeiras. Acontece, no entanto, que o utopismo do Constituinte foi muito além do esperado. Decretaram por um passe de mágica, pela crença desmedida no poder das fórmulas escritas, que todas as normas programáticas passariam a ser pragmáticas, pois sentenciaram no artigo 5, LXXVII, §2º, que: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata”.
O dado observável da nossa realidade é que a proposta constitucional gerou e exacerbou desejos, despertando novas e crescentes reinvidicações, por parte da sociedade. Como muitas delas são irrealizáveis, e outras só serão possíveis de atendimento a longo prazo, dentro das possibilidades futuras da Nação, as reivindicações não atendidas vêm provocando dramáticas frustrações.
Outro ponto negativo da nossa atual Carta Magna é que ela não eliminou as características corporativas das constituições anteriores: na verdade, agravou-as.
O brilhante ministro Nelson Jobim, parlamentar à época, bem retrata o ambiente corporativista nos trabalhos constituintes: “em 1988 nós víamos a galeria como a representação popular, como se estivesse lá o povo pelas suas organizações. Depois nós começamos a ver que o que estava na galeria não era o povo: eram as corporações de ofício, aparelhadas algumas por partidos políticos, outras não, mas todas elas visando a interesses próprios das suas corporações”.
Em termos de corporativismo, o texto constitucional é rico de exemplos: Empresas Estatais ( artigos 21, X, XI, XII; 177 I até IV ); Magistratura ( artigo 93 ); Representação Classista ( artigo 111 §3º. inciso I e §2º. ); Ministério Público ( artigo 123,§3º. e §5º. ); Procuradoria Geral da Fazenda Nacional ( artigos 131 caput e §3º. ); Polícias Rodoviária e Ferroviária Federal ( art.144 incisos II e III ); Polícia Civil ( artigo 144 § 4º. ); Médicos ( 199 § 3 º. ); Universidades Estaduais ( artigos 218 § 5º. ); Notários ( artigo 236); Fazendários ( artigo 237 ); Delegados de Polícia ( artigo 241 ); Escolas Oficiais ( artigo 242 caput ); Servidores Públicos Civis ( artigo 19 ); Ministério Público do Trabalho e Militar ( artigo 29 § 4º. ); Índios ( artigo 231 § 2º. e 3º.); Empresariado Nacional ( artigo 171 § 1º. ); Advocacia ( artigo 133 ), além de inúmeros outros.
Constata-se, da leitura dessa imensa lista que, a rigor, todos os segmentos organizados da sociedade foram aquinhoados, de alguma forma, com favores e benesses legais: desde a “tanga” até a “toga”.
Outro aspecto negativo da Constituição é o seu nítido viés estatizante. Nela os dispositivos intervencionistas, de cunho regulatório, são possivelmente mais numerosos do que em qualquer outra Constituição do planeta. O constituinte, em vez de prever os gêneros de intervenção e deixar que o legislador ordinário instituísse as espécies que considerasse necessárias, preferiu, ele próprio, desfilar dezenas de espécies constitucionais.
Lamentavelmente os constituintes não conseguiram ou não quiseram superar nosso condicionamento cultural de tudo esperar do Estado. Deveriam reconhecer e lutar contra essa distorção, mas acabaram por inserir no texto constitucional, uma série de dispositivos que aumentaram consideravelmente os encargos e as formas de intervenção do Estado.
Em magistral trabalho, Diogo de Figueiredo Moreira Neto nos mostra que chega a quarenta o total das modalidades de institutos interventivos ; vinte e oito de cunho regulatório, um concor-rencial, cinco de natureza sancionatória e seis de cunho monopolista. Comparando esses números com o total de catorze institutos da Carta de 1969 encontraremos um espantoso acréscimo de vinte e seis novas modalidades de atuação do Estado na ordem econômica, o que corresponde quase ao dobro7.
Os resultados práticos dessa forma equivocada de ver o novo papel do Estado são de fácil aferição: alimentou o populismo, estimulou o empreguismo, agigantou a burocracia, aumentou os níveis da corrupção, elevou consideravelmente a carga fiscal sobre a sociedade, desestimulou investimentos, cresceu a taxa de desemprego, aumentou a economia informal, gerou recessão e assumiu características nitidamente paternalistas.
O modelo de Estado intervecionista desenhado pela Constituição ficou mais forte e demandado. Tornou-se administrador, justiceiro, patrão, e defensor dos fracos e oprimidos, além de produtor e provedor de recur-sos. De outro lado, a sociedade ficou mais dependente e mais inerme. Foi limitado o campo de opção do brasileiro em questões importantes de sua vida e reduziu-se, enfim, a capacidade de encontrar seus próprios caminhos e de se desenvolver segundo suas próprias decisões.
O estatismo paternalista configurado no nosso atual modelo constitucional resultou da teimosa postura racionalista dos constituintes, cujo traço mais distintivo é a crença no poder das formulas escritas, na excessiva confiança na capacidade e nos bons propósitos da tecnoburocracia, no medo do exercício da liberdade e no receio da competitividade social.
O equívoco foi imaginar que bastaria colocar uma idéia no texto constitucional para transformá-lo, desde logo, em algo vivo e atuante. Ou em outras palavras: o entendimento de que ao fazer da vontade uma norma, estar-se-ia automaticamente, conformando a realidade à ordem legal. Ignorou-se a distinção entre a norma como estimuladora do progresso com a que pretenda gerá-lo independentemente dos processos reais da sociedade.
Ao invés de fortalecer a burocracia, o correto seria devolver ao homem e as entidades econômicas e sociais o seu legítimo espaço de liberdade e iniciativa.
A melhor solução para os problemas encontra-se na sociedade civil, mediante iniciativas independentes e convergentes realizadas por forças sociais espontâneas e não mediante ações burocráticas e ad-ministrativas.
O estatismo com seu inafastável viés paternalista emascula as sociedades que dominam, reduz-lhes a capacidade de encontrar seus próprios caminhos e desenvolver suas próprias soluções. Desestimula o empreendedor, quando não o pune, e leva o homem a se acostumar a esperar resignadamente do Estado a solução de todos os problemas e a despejar-lhe a cornucópia de todas as benesses.
O paternalismo está presente em quase todo o texto constitucional. Adquiriu, todavia, maior evidência quando trata dos direitos dos trabalhadores e dos chamados “direitos sociais”. “A preocupação dos constituintes não foi facilitar a criação de novos empregos e sim garantir mais direitos para os já empregados. Legislou-se para pouco mais de metade dos trabalhadores, porque os demais estão na economia informal, à margem da lei e das garantias. Nossa Constituição, sob aparência benfeitora, é , na verdade, uma conspiração dos já empregados contra os desempregados e os jovens”. 8
Na ânsia de proteger a todos os trabalhadores, indistintamente, o texto constitucional acabou por dar tratamento igual a situações desiguais. Considerou em iguais direitos tanto um próspero executivo como um simples ajudante de pedreiro. Atribuiu às empresas iguais responsabilidades, independentemente de sua natureza, porte econômico, localização, e sem levar em conta as adversidades eventuais da conjuntura.
O certo é que a Constituição estratificou as relações entre empregados e empregadores: frustrou a ambas as partes o direito de decidir sobre o futuro, arvorando-se em ditadora desse destino.
Indiferentes aos obstáculos da própria realidade, imaginaram os constituintes ser possível resolver o problema das carências humanas por meio de simples inserção no texto dos chamados “direitos sociais”. Confundiram meros anseios, com direitos. Não distinguiram o “justo” , do “possível”; desconsideraram o estádio de desenvolvimento atual do Brasil, a quantidade e a dosagem dos meios necessários à implementação das medidas assistenciais abundante e generosamente nela contempladas.
Para garantir o Welfare State, a partir de 1988, a máquina burocrática do Estado continuou a se expandir e, conseqüentemente os seus custos, exacerbando, como nunca, sua voracidade fiscal em níveis inimagináveis e insuportáveis para o contribuinte.
Não há nenhum exagero, nem recurso retórico, na afirmação de que o modelo de mega-Estado intervencionista, paternalista, assistencialista e fiscalista, adotado pelo nosso legislador constituinte, trouxe sérias implicações negativas à economia e ao desenvolvimento geral do País.
É bem verdade que a lei, qualquer lei, por si só, não cria o desenvolvimento político, econômico e social. Mas a Constituição de 1988 tem comprovado que o contrário ocorre: que a má lei pode inibir o desenvolvimento global de um País pelas reiteradas crises, de todo tipo, que provoca.
Uma conclusão parece-nos irrefutável: a atual Constituição pelo seus vícios de origem, de forma, de conteúdo e de funcionalidade, está longe de representar o instrumento jus-político que garanta ao País uma democracia estável e um desenvolvimento mais justo e auto sustentado. Daí a necessidade imperiosa e inadiável de uma Revisão Constitucional.