A independência do Judiciário

5 de janeiro de 2003

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EMENDA DE REALIZAÇÃO DE CONCURSO PARA INGRESSO NA  MAGISTRATURA, POR ÓRGÃO EXTERNO, AFRONTA A DIGNIDADE E INDEPENDÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO

O  nosso legislador, a partir da democratização do país, após o Estado Novo implantado pelo Presidente Getúlio Vargas, alçou, a questão relativa ao ingresso na magistratura de carreira, a nível constitucional, tanto que a Carta de 18 de março de 1946, em seu artigo 124, III, estabelecia que “ o ingresso na magistratura vitalícia dependerá de concurso de provas organizado pelo Tribunal de Justiça com a colaboração do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil e far-se-á a indicação dos candidatos, sempre que possível, em lista tríplice”.

Já a Constituição de 1967, em seu artigo 136, I, manteve a mesma disposição, embora aditando que “ o concurso seria de provas e títulos”, o que não foi alterado pela Emenda Constitucional no. 1, de 17 de outubro de 1969.

Após o término do período militar que se iniciara em 1964, com a deposição do presidente João Goulart e assunção ao cargo de Presidente pelo Marechal Humberto de Castelo Branco, foi promulgada a Constituição de 1988, em vigor, que, em seu artigo 93, I, voltou a consignar a forma de ingresso no quadro da magistratura, conservando o mesmo princípio, com pequenas modificações quanto à sua redação, aduzindo que lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios : “ Ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, através de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação.”

Substituiu-se, portanto, a expressão magistratura vitalícia para ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, bem como, Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil para Ordem dos Advogados do Brasil.

Portanto, desde 1946, o ingresso na magistratura sempre esteve condicionado a concurso público de provas ou de provas e títulos, realizado pelos Tribunais de Justiça, sempre com a participação da Ordem dos Advogados, o que demonstra a preocupação de todos os legisladores constitucionais em dar maior transparência aos certames, garantindo a fiscalização e objetivando que fossem realizados dentro da maior lisura e honestidade, o que vem sendo observado, bastando dizer-se que as vagas existentes, em diversos Estados da Federação, não se consegue sejam preenchidas, numa demonstração clara e insofismável de que os Tribunais, ao promoverem o concurso, têm se preocupado em manter e, cada vez mais, melhorar a reputação de seus juízes, exigindo que sejam moralmente fortes e intelectualmente preparados.

A reputação de Poder Judiciário, que todos exigem que seja cuidada e preservada, tem servido para demonstrar aos jurisdicionados, de forma nítida e cristalina, que a justiça, salvo exceções vergonhosas de alguns que a enlameiam, merece o respeito e a credibilidade de todos.

A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, encarregada de apreciar a reforma do Judiciário, votou, há alguns dias, a toque de caixa, o novo estatuto da magistratura,  pretendendo aperfeiçoar o Poder. Porém, algumas emendas, introduzidas ao projeto do relator, o eminente Senador Bernardo Cabral, não aprimoram o texto, mas, a contrário, o prejudicam.

Algumas disposições, com todas as vênias, como a que trata dos concursos para ingresso na magistratura, só serviram  para afrontar a dignidade do Poder Judiciário, na medida em que este foi colocado sob suspeição, não lhe sendo permitido organizar seus próprios concursos, que devem ser realizados por um órgão estranho ao Judiciário, sem a indicação daquele a que tal mister seria atribuído.

Como justificação da emenda, como se ouviu através da transmissão da TV Senado, o seu autor, o ilustre Senador Jefferson Péres, que é homem sério, sempre preocupado com os princípios de honestidade e de ética, asseverou que em seu Estado, Amazonas, circulavam rumores de que não teria existido lisura em concurso lá realizado, estando a matéria “sub judice” e que ele esperava, sinceramente, que tais assertivas não restassem comprovadas, pela sua improcedência.

Constata-se, pois, que a impugnação ao certame foi feita por candidatos reprovados, que não se conformaram que um ou alguns dos aprovados fossem parentes de magistrados.

A emenda foi apresentada com base em “rumores” de que, em um Estado da Federação, teria ocorrido fraude ou favorecimento, o que, com todas as vênias, é insuficiente a estender-se a pecha de desonestidade a todos os Tribunais que realizam reiterados concursos que primam pela lisura e correção.

Se fraudes ocorreram serão, por certo apuradas e seus autores responsabilizados, não se podendo partir da falsa premissa de impunidade, que de resto não vem ocorrendo, pois os Tribunais – veja-se o exemplo do Estado do Rio, dentre  tantos outros – vêm condenando magistrados que não honram a toga, que mais do que poder deve representar integridade e espírito público daquele que a veste.

A circunstância de filhos de magistrados ou parentes serem aprovados em concursos, não pode conduzir  homens de bem a imaginarem e concluírem pela ocorrência inequívoca  de fraudes.

Qualquer advogado, desde que preencha os requisitos exigidos, de probidade, de conhecimento, de tempo de experiência profissional, pode se submeter a um concurso para a magistratura e ser aprovado, ainda que seja parente de um membro do Poder, pois inexiste qualquer impedimento legal que os iniba de participar do certame, exigindo-se, isto sim, que as provas sejam elaboradas e corrigidas com presteza e em igualdade para todos.

Não se impede que filhos de médicos, advogados, dentistas, engenheiros, arquitetos, ou de outra profissão, possam escolher e trilhar a mesma carreira dos pais, o que é comum, pois são criados em ambiente que facilita o aflorar de suas vocações, indicando, às vezes, o rumo que o jovem deve seguir.

Já participei de banca examinadora. Sei, como muitos sabem, inclusive os representantes da OAB, que, se é verdade que muitos filhos de magistrados se tornam juízes, não menos verdade será afirmar-se que grande maioria, na mesma situação, é reprovada.

Para que a crítica pudesse ter algum valor, indispensável seria que os eternos inconformados também apurassem e declarassem quantos parentes de magistrados sequer ultrapassam a primeira fase do concurso.

As provas devem continuar a serem aplicadas pelos Tribunais, através de desembargadores indicados para tal mister, juntamente com representante da Ordem dos Advogados, que pela sua formação e conhecimento melhor podem aquilatar as condições e o saber do candidato, sua atualização nas coisas do direito, dos rumos da doutrina e da jurisprudência, a não ser que se queira que futuros magistrados sejam testados por órgão exterior, Deus sabe qual, através de provas de múltipla escolha,  que saibam apresentar respostas padronizadas, incapazes de demonstrar o raciocínio e a real qualidade de seus conhecimentos.

A questão, ora posta em discussão, qualquer que seja o ângulo do observador – de honestidade, de benefício ao Judiciário, de melhor recrutamento de profissionais para o exercício da árdua função de julgar – conduz ao repúdio à emenda ofertada. Isto sem mencionar o fato de ser o Brasil um país de proporção continental, com problemas e demandas de ordem geral, mas com necessidades distintas e soluções mais eficientes e eficazes se regionalizadas.

Por derradeiro, observa-se que o Ministério Público, a Defensoria Pública, as Procuradorias dos Estados e dos Municípios promovem concursos, sem qualquer participação de órgão externo, para o recrutamento de seus integrantes e só ao Poder Judiciário é imposta a restrição, presumindo-se a má fé e colocando-o em posição de suspeição.

A emenda proposta deve ser repelida, não só pelos magistrados, juristas, amantes do direito, mas, também e especialmente, pelos parlamentares de quem se espera que não se produza uma legislação tão odiosa e afrontosa a um dos Poderes da República.

A independência do Poder Judiciário é a garantia da manutenção do estado de direito e  o aniquilamento da  sua autonomia é o início do fim da liberdade e o comprometimento da democracia.