Edição 80
A inserção dos consumidores de baixa renda ao sistema elétrico
31 de março de 2007
Luiz Antonio Sanches Diretor Jurídico da Associação Brasileira das Concessionárias de Energia Elétrica – ABCE
O espaço urbano, após o advento da Revolução Industrial, deixou de se restringir a um conjunto limitado de edificações para significar, de maneira mais ampla, a predominância da cidade sobre o campo. Periferias, subúrbios, distritos industriais, estradas e vias recobrem e absorvem zonas agrícolas em um movimento incessante de urbanização. No limite, este movimento tende a ocupar todo o espaço, transformando em urbana a sociedade como um todo. A universalização dos serviços públicos essenciais tem sido um dos principais instrumentos para a consecução desse fato.
O grande paradigma que se coloca nos países em desenvolvimento é exatamente a dinâmica econômica e a estrutura jurídica que podem proporcionar uma inserção crescente e eficaz de pessoas na utilização da infra-estrutura. Ou seja, quanto, como e em qual velocidade o Brasil pode arcar para integrar a população localizada à margem desse processo.
O modelo institucional do setor elétrico proposto pelo Ministério de Minas e Energia (MME) no início da atual década tem objetivado, dentre suas linhas mestras, promover a inserção social no setor elétrico, em particular por intermédio dos programas de universalização do sistema elétrico e com o aprimoramento dos critérios de suprimento dos clientes de baixa renda. Por sua condição privilegiada em relação aos consumidores finais, as concessões de serviço público de distribuição de energia elétrica são o grande instrumento jurídico que o Estado detém para fazer chegar aos cidadãos os benefícios ditados pelas políticas públicas, por serem, os distribuidores, a ponta do sistema à qual os consumidores, em sua grande maioria, estão conectados. Em regra geral, é por meio das distribuidoras que o setor elétrico se capitaliza, seja para remunerar todos os serviços realizados desde a geração, seja para promover novos investimentos.
No que concerne às condições de fornecimento de energia elétrica pelos distribuidores, os conflitos relacionados à suspensão do fornecimento foram superados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Atualmente, admite-se como possível a suspensão no fornecimento dos serviços públicos essenciais, remunerados por tarifa, quando houver inadimplência, como previsto no artigo 6º, § 3º, inciso II, da Lei 8.987, de 1995, desde que seja precedido por aviso, não acarretando tal procedimento ofensa ao Código de Defesa do Consumidor, nem descontinuidade na prestação do serviço. Antes da decisão, houve um amplo debate na sociedade sobre a pertinência ou não da suspensão, sendo aceita a tese de que a suspensão do fornecimento de energia elétrica permite que os distribuidores disponham de um forte mecanismo de recuperação financeira e os consumidores adimplentes detenham, na gestão das perdas comerciais dos distribuidores, o argumento necessário para impedir o repasse integral da inadimplência para a tarifa.
Em regiões com alta densidade demográfica, elevado número de unidades consumidoras e de fiscalização com maior grau de complexidade, há a possibilidade de aprimorar e implantar mecanismos de medição que possibilitem a utilização de energia elétrica faturada de forma pré-paga, ou com limitador de demanda por usuário. Tal mecanismo de faturamento não é uma novidade na sociedade brasileira.
Os aparelhos telefônicos móveis, popularmente deno-minados “celulares”, começaram a ser disponibilizados no Brasil, em 1998, com essas características e passaram a representar rapidamente a maioria dos celulares já em 2004, com mais de 80% dos aparelhos sendo comercializados nessa condição. A principal vantagem do celular pré-pago é a ausência de comprometimento dos usuários com uma conta mínima mensal. De acordo com a disponibilidade financeira, o usuário adquire créditos com foco no controle de gastos. Concluiu-se, com isso, que o baixo crescimento do número de telefones fixos no país está atrelado a dificuldades financeiras da população, que não se dispõe a alocar recursos próprios para arcar com uma conta mínima mensal estipulada pelas companhias de telefonia fixa.
O mesmo paradigma enfrentado pelas companhias de telefonia fixa atravessa o horizonte das concessionárias de distribuição de energia elétrica. Por serem monopólios naturais, a estrutura de custos dessas empresas enfrenta problemas em manter a disponibilidade da prestação do serviço sem um índice mínimo de usuários que justifique os investimentos no sistema. Existe tecnologia testada e segura no mercado para ser utilizada no setor elétrico para possibilitar o emprego do sistema pré-pago.
Para implementar esse sistema com o objetivo de aprimorar os mecanismos de controle de combate à fraude e ao furto, que provocam perdas de energia que podem chegar a 25% na rede de distribuição, seu emprego em larga escala depende de eliminação de lacunas na regulamentação por parte da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), tais como a forma de venda dos créditos de energia, as formas de suspensão no suprimento de energia elétrica e sobre quem deve recair a opção de adesão ao serviço, se esta será compulsória mediante determinados critérios, ou partirá de uma livre decisão do usuário.
A universalização do fornecimento de energia elétrica, por sua vez, pode ser conceituada como o atendimento gradual e contínuo a todos os pedidos de fornecimento de energia elétrica realizados pelos responsáveis pela unidade consumidora, com enfoque em áreas de baixa densidade populacional, independentemente da capacidade financeira dos potenciais clientes, por meio de subvenção econômica. Cabe à Aneel estabelecer as regras para sua consecução, com base na lei e vistas ao interesse público subjetivo, de forma a produzir igualdade de oportunidades por intermédio do tratamento isonômico dado aos consumidores.
A atual forma de subsidiar a universalização do forneci-mento de energia elétrica foi introduzida pela Lei 10.438/02, com a redação dada pela Lei 10.848/04, que dispõe, no artigo 13, sobre a criação da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), visando à promoção da universalização no sistema interligado em todo o território nacional, bem como ao desenvolvimento energético dos estados e a competitividade da energia produzida a partir de fontes eólica, pequenas centrais hidrelétricas, biomassa, gás natural e carvão mineral nacional. De acordo com o § 1º do mesmo artigo, os recursos da CDE serão provenientes dos pagamentos anuais realizados a título de uso de bem público, das multas aplicadas pela Aneel aos agentes setoriais e, desde 2003, das quotas anuais pagas por todos os agentes que comercializem energia com o consumidor final.
Assim, como em diversos outros casos em que o Poder Concedente impõe a cobrança de encargos para viabilizar determinados benefícios para inclusão social de parcela significativa da população, em que pese ter como efeito reverso o agravamento direto ou indireto das condições tarifárias, ou das faturas, das classes econômicas mais privilegiadas, tal conceito está alicerçado na proteção à dignidade da pessoa humana e na erradicação da pobreza como objetivo fundamental.
A tarifa social a clientes de baixa renda corresponde à opção política de promover variação na tarifa em função da ausência de recursos de determinado grupo de usuários, sem que estes percam o direito de acessar os serviços públicos. A fixação de tarifas sociais significa ausência de pagamento correspondente ao montante economicamente necessário para assegurar a rentabilidade da exploração ou a manutenção da equação econômica e financeira por parte dos agentes setoriais.
Com o advento da Lei 8.631/93, houve a necessidade de se uniformizar os critérios de classificação de baixa renda, fato ocorrido apenas em 2002, no artigo 1º da Lei 10.438. Tal norma define baixa renda como aquele que, atendido por circuito monofásico, tenha consumo mensal inferior a 80 kwh/mês ou cujo consumo situe-se entre 80 e 220 kwh/mês. Para a primeira hipótese, foi publicada a Resolução Aneel 246/02 que, orientada pela estrutura normativa, previu que as unidades consumidoras atendidas por circuito monofásico e com média de consumo dos últimos doze meses inferior a 80 kwh passariam, automaticamente, a ser consideradas de baixa renda.
Ante a segunda hipótese, foi publicado o Decreto 4.336 em agosto de 2002, que, em seu artigo art. 4º, estabeleceu que, a fim de regulamentar os critérios para clientes de baixa renda, a Aneel observará os mesmos critérios socioeconômicos estabelecidos no art. 3º do Decreto 4.102/02. No mesmo mês, houve nova regulamentação da agência, consubstanciada na Resolução 485/02, que definiu que o responsável pela unidade consumidora deve estar inscrito no Cadastramento Único dos Programas Sociais do Governo Federal, ou estar inscrito ou ser potencial beneficiário dos programas Bolsa Escola, Bolsa Alimentação e Auxílio Gás.
Tal postura do Governo Federal acabou por majorar consideravelmente o número de clientes que passaram a ser considerados como baixa renda. Com isso, houve uma seqüência de dificuldades para que o Poder Concedente atingisse seu objetivo de admitir um volume maior de subsídios para cidadãos que, anteriormente, eram considerados como capazes de arcar com o custo real da prestação do serviço.
Atualmente, cerca de 17,8 milhões de unidades consumidoras estão enquadradas na Subclasse Residencial Baixa Renda, segundo relatório da Aneel que recomenda a aprovação da Resolução Normativa 211/06. Destas, em 2,4 milhões de unidades consumidoras (13,2%), o responsável possui inscrição no Cadastro Único. Do total de unidades consumidoras enquadradas na Subclasse Residencial Baixa Renda, 3,8 milhões de unidades consumidoras (21,7%) se enquadram nos critérios da Resolução 485/02, com consumos entre 80 e 220 kwh. Para efeito de comparação, o Bolsa Família atingiu sua meta, com 11 milhões de famílias.
Em que pese não haver impactos nas revisões tarifárias das concessionárias de distribuição, pois os custos destas políticas públicas são custeados por subvenção econômica, a pesada estrutura de encargos atualmente existente no setor elétrico brasileiro recai, em última análise, sobre os ombros dos clientes adimplentes, que concomitantemente arcam com um estado de bem-estar social das populações consideradas mais carentes junto a uma estrutura tributária que possibilita aos estados-membros cobrarem até 30% de ICMS da energia consumida.
Assim, em um momento em que a carga tributária brasileira, junto aos encargos, atingiu 43,7% do valor da fatura de energia elétrica em 2005, segundo dados da PriceWaterhouseCoopers, muitas vezes, pela não observância do princípio da seletividade em face da essencialidade do bem denominado energia elétrica, há um grande questionamento se a capacidade contributiva dos clientes adimplentes não estaria comprometida, de forma a aumentar a inadimplência dos clientes sob o argumento de incluir clientes considerados de baixa renda. Nesse sentido, não basta haver uma política de inserção social por meio do setor elétrico, seguindo a lógica linear de aumentar os custos para os clientes com maior capacidade contributiva, de forma a subsidiar aqueles menos afortunados. É ne-cessário mais. É imprescindível responder como o setor elétrico pode contribuir para uma efetiva inserção social da população efetivamente marginalizada.
Como exemplo de contribuição do setor para uma maior homo-geneidade social, podem-se estruturar diferentes opções tarifárias para aumentar o gradiente de formas de subvenção econômica, utilizando, assim, mecanismos isonômicos em prol de uma maior justiça social. Dentro desse aumento de opções tarifárias, as medições pré-pagas teriam um papel fundamental, principalmente por terem mostrado enorme contribuição no setor de telecomunicações, tanto em relação à universalização do serviço quanto no gerenciamento da inadimplência e no aumento do direito de escolha dos consumidores. Outra forma de melhoria dos custos setoriais seria ter um maior envolvimento dos estados na discussão da modicidade das faturas de energia elétrica, pois praticamente metade do valor a ser pago pelos clientes decorre de impostos e encargos.
Uma discussão ampla entre as entidades governamentais no sentido de diminuírem impostos, concomitante ao aumento do gradiente de classes tarifárias para refletir necessidades diversas de obtenção de encargos sociais, certamente, reduziria custos no setor e possibilitaria uma maior clareza no emprego dos encargos em objetivos sociais relevantes.