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A interpretação judicial

23 de maio de 2013

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O Estado não institui o Direito “por la pura complacencia de ver qué hacen con él los jueces” (Sebastián Soler, “Las Palabras de la Ley”, Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1969, p. 159).

1. Interpretação judicial. O elemento subjetivo

Parafraseando Buffon, o intérprete é o homem (mulher), de modo que o juiz é a pessoa e suas circunstâncias (história de vida, convicções e sentimentos, mas também preconceitos e vaidades).

O ponto de partida da interpretação judicial, portanto, é subjetivo. Atividade cognitiva, sim, mas sob o influxo de uma personalidade, a interpretação sofre a influência de quem a faz.

Há uma boa coleção de tipos de juízes: a) o funcionário, para quem seu ofício consiste em aplicar a lei da maneira mais fácil e simples, porque a justiça é coisa do legislador; b) o burocrata, que não tem aptidão para processar ações e proferir sentenças, e prefere posicionar-se em corregedorias e conselhos; c) o justiceiro, aquele ser imaturo ou psicopata, que vive no universo de suas fantasias; d) o estrela, sempre empenhado em ser notícia diária, e nisso tem sucesso graças a suas surpreendentes decisões; e) o político, quem no exercício do cargo se presta a ser instrumento dos interesses dos partidos políticos – mas também; f) o justo, esclarecido o suficiente para saber que a tarefa do juiz não consiste só em aplicar a lei mas em fazer justiça de acordo com a lei e inclusive apesar da lei e até na ausência de lei, embora nunca contra ela (Alejandro Nieto, “El Desgobierno Judicial”, Editorial Trota, Madrid, 2005, 2ª edição, 85/94).

Acrescentem-se a estes estereótipos o do juiz: g) bom, sem qualquer compromisso com o ordenamento jurídico, que desconsidera a lei à maneira de Magnaud (o juiz francês que na última década do século 19 foi presidente do Tribunal de Chateau-Thierry), e faz favores com recursos alheios (frequentemente os da Fazenda Pública), e o do juiz; h) individualista, que a pretexto de independência funcional, exercita um mega ego anárquico, com desprezo à  jurisprudência dos tribunais.

Cada um desses tipos fará uma interpretação conforme suas limitações (funcionário, burocrata, justiceiro, estrela, político, bom) ou superpoderes (justo) – e superpoderes são exigidos quando se reclama dos juízes que profiram sentenças justas à vista de todos e conforme ao Direito (capazes de dar a quem está vinculado à lei soluções justas apesar dela … ). Quem conhece a história do velho, do menino e do burro não pode acreditar nisso. A sabedoria de Salomão não está ao alcance dos juízes a todo o tempo, e salvo o episódio das mães que disputavam a criança não parece que a justiça possa ser racional ou emocionalmente reconhecida por todos de um só jeito. Parece mais humano pensar  que o juiz pode ser um conjunto desses tipos, ora funcionário, ora justiceiro, ora, quem sabe, justo.

2. Interpretação judicial. O elemento objetivo

“Quando eu uso uma palavra” – diz Humpty Dumpty, personagem em Do Outro Lado do Espelho – “ela significa exatamente o que quero que signifique, nem mais nem menos” (Lewis Carrol, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2002, p. 2004).

Na base dessa pretensão, está a premissa de que há uma só maneira de dizer e uma só maneira de ouvir. Mas as coisas não acontecem assim. As palavras podem ter mais de um significado, e o sentido apreendido por quem escutou pode não ser aquele pretendido por quem falou.

A interpretação, aquela que tem como objeto a lei, está sujeita a esse descompasso, até mesmo quando as normas jurídicas estão redigidas em boa linguagem, porque, contextualizadas no sistema de que fazem parte, podem assumir sentido diverso do que isoladamente aparentam ter; que dizer, então, daquelas que padecem de imperfeições semânticas, de impropriedades sintáticas e até de inconsistências lógicas.

Por isso, os métodos de interpretação coexistem desde sempre com as normas.

3. Interpretação judicial. O elemento confiança

A norma jurídica, diferentemente da norma moral – ensinou  Sebastián Soler – tem dois destinatários: aquele, natural, de quem se exige a conduta e aquele, oficial, que, à míngua da conduta exigida, é chamado a sancionar a omissão, quer dizer, o próprio Estado (“Las Palabras de la Ley”, Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1969, p. 24/25). O elemento confiança impõe ao juiz uma interpretação que corresponda à expectativa do destinatário natural. Porque a norma jurídica orienta a ação humana, a melhor interpretação não é aquela genial, e sim aquela que pode ser esperada por quem agiu no pressuposto de que lhe era lícito fazê-lo. “Juízes têm que se precaver contra construções rígidas e conclusões forçadas; pois não há tortura pior que a tortura das leis” (Francis Bacon, “Ensaios de Francis Bacon”, Editora Vozes, Petrópolis, 2007, p. 170).

4. Interpretação judicial. O elemento responsabilidade

Há um elemento que diferencia a mera interpretação e a interpretação judicial. Ele reside no fato de que o juiz interpreta e aplica a lei. A interpretação descompromissada com a aplicação da lei pode identificar vários sentidos numa norma jurídica, mas – tantos que sejam – não têm qualquer repercussão prática até que um deles seja adotado pelo juiz. Ao aplicar a lei, o juiz transforma o mundo, ao contrário do que Marx observou em relação ao esforço dos filósofos. Depois que o juiz decide, o réu pode ser preso ou não; a propriedade pode ser mantida ou perdida; os litígios familiares são resolvidos de um modo ou de outro; enfim, a vida pode ser melhor ou pior para quem está sujeito ao resultado do processo judicial, mas também para a sociedade à sua volta.

5. Interpretação judicial. O elemento ético

O valor ético da norma jurídica está na certeza de que ela vale para todos (Lopes de Oñate, “La Certeza Del Derecho”). O juiz não pode dar um sentido para a norma num caso (v.g., sim), e outro sentido no seguinte (v.g., não). Com certeza há uma interação entre norma e fato, e o fato induz a uma melhor compreensão da norma. Mas os temperamentos dados à interpretação de uma norma devem estar justificados por situações específicas. O juiz, portanto, deve estar seguro, na primeira interpretação, de que realmente estudou suficientemente a norma para dela extrair o melhor resultado. A regra de justiça exige uma solução universal, a que estejam sujeitos todos os casos da mesma espécie.1

6. Interpretação judicial. O elemento compromisso

O ordenamento jurídico é um valor em si, porque indispensável à segurança de cada um e de todos. O Judiciário é o poder encarregado de velar pela sua integridade, e os respectivos membros, ao se investirem na autoridade da magistratura, assumem o compromisso de cumprir e fazer cumprir a Constituição e as leis do País. Esse compromisso não se esgota na aplicação das leis pertinentes ao caso sub judice. Vai mais além; é um compromisso com o bom funcionamento do sistema judicial. A independência que o juiz tem de interpretar a lei segundo a sua consciência deve se compatibilizar com o modo como o Poder Judiciário está organizado. O nosso sistema judicial está estruturado no pressuposto de que a Constituição e as leis têm uma só interpretação, aquela dada pela última instância (Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunais de Justiça, conforme o caso). O juiz que ignora a jurisprudência dos tribunais não tem compromisso com a funcionalidade do sistema judicial e, portanto, com a efetividade do ordenamento jurídico.2

7. Interpretação judicial. O elemento prático

A atividade do juiz tem como base o Direito, mas seu foco é a vida como ela se desenvolve em sociedade. Esse mundo é complexo, e o juiz deve percorrê-lo passo a passo, porque seu ofício é prático. O caso que está sob seu julgamento não é uma oportunidade que deva aproveitar para  articular uma teoria geral do Direito. É um caso que ele tem a obrigação de decidir à luz das circunstâncias que lhe são peculiares. Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, assim contrastaram a atitude lógica e a atitude prática: “A atitude lógica pressupõe que se consiga aclarar suficientemente as noções empregadas, especificar suficientemente as regras admitidas, para que os problemas práticos possam ser resolvidos sem dificuldade mediante simples dedução. Isto implica, aliás, que o imprevisto foi eliminado, que o futuro foi dominado, que todos os problemas se tornaram solucionáveis tecnicamente. A essa atitude opõe-se a do homem prático, que só resolve os problemas à medida que eles se vão apresentando, que repensa suas noções e suas regras consoante as situações reais e as decisões indispensáveis à sua ação. Será essa, contrariamente à dos teóricos, a atitude dos homens da prática que não desejam envolver-se mais do que o preciso, que desejam conceder-se, o tempo que for possível, toda a liberdade de ação que as circunstâncias lhes permitem, que desejam poder adaptar-se ao imprevisto e à experiência futura. É normalmente a atitude do juiz que, sabendo que cada uma das suas decisões constitui um precedente, procura limitar-lhe os alcance o quanto puder, enunciá-las sem ultrapassar em seus considerandos o que é necessário dizer para fundamentar sua decisão, sem estender suas fórmulas interpretativas a situações cuja complexidade poderia escapar-lhe” (Tratado da Argumentação, “A Nova Retórica”, Martins Fontes, São Paulo, 1996, p. 224/225).

8. Interpretação judicial. O elemento época

Uma norma jurídica pode ser aplicada hoje de modo diferente do que foi outrora, porque algumas leis assumem significados novos no decorrer do tempo (v.g., o reconhecimento das relações familiares entre homossexuais). Não há novidade nisso, e é salutar. Mas a época, no sentido de ambiência de pressão, pode influir negativamente na interpretação judicial. Opinião pública, e às vezes a mera opinião publicada, influenciam o juiz mais do que se acredita. “As leis são as muralhas da cidade”, disse Heráclito. Dos juízes espera-se que sejam soldados a defendê-las.

9. Interpretação judicial. O cotidiano do juiz brasileiro

O juiz brasileiro enfrenta duas espécies de causas: as do varejo e as do atacado, ambas numerosas. Por causas do varejo, entendam-se aquelas idiossincráticas. As causas do atacado são aquelas que se repetem. Ordinariamente, as relações de família dão origem a causas do varejo, mas podem ativar também causas do atacado, v.g., aquelas que resultaram na Súmula nº 277 do Superior Tribunal de Justiça, in verbis: “Julgada procedente a investigação de paternidade, os alimentos são devidos a partir da citação”. Isso acontece em outros ramos do Direito. Com maior frequência, as causas do atacado no Direito Público se manifestam no Direito Tributário e no Direito Administrativo; no Direito Privado, o fenômeno se dá, com intensidade, no âmbito do Direito do Consumidor.

No nosso ordenamento jurídico, “O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito” (Código de Processo Civil, art. 126).

No varejo, seu roteiro parece ser aquele relatado pelo Juiz Bernard Botein: “El juez indaga primero en los hechos, luego indaga en el derecho y por último escuadriña su alma. Si las tres pesquisas apuntan en la misma dirección, su tarea será fácil, pero si divergen, no podrá ir muy lejos. Las leyes no están hechas para ser violadas por los jueces, pero en manos sensibles ellas poseen una cierta tolerancia elástica que les permite ceder para hacerse cargo de una situación especial. La ley rebotará (snap back) si es apretada demasiado por un juez insensible que la maneje con violencia. Puede ser deformada por un juez impulsivo. El juez experto conformará la ley dentro del ámbito de tolerancia de ella, para adecuarla a los perfiles del caso particular. El juez preciso y minucioso no verá esos perfiles, cegado por la rígida serveridad de su plomada” (citado por Alf Ross, “Sobre el Derecho y la Justicia”, Editorial Universitaria de Buenos Aires, Segunda edición, 1970, p. 146).

No atacado, o juiz só cumprirá verdadeiramente sua função se conformar sua sentença aos precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Este  deve ser o efeito do julgamento realizado pelo regime dos arts. 543-A, 543-B e 543-C do Código de Processo Civil.3

Notas ______________________________________________________________________

1 A súmula 343/STF, editada antes da Constituição de 1988, tem origem na doutrina (largamente adotada à época, inspiradora também da súmula 400/STF) da legitimidade de interpretação razoável da norma, ainda que não a melhor, permitindo assim que a respeito de um mesmo preceito normativo possa existir mais de uma interpretação e, portanto, mais de um modo de aplicação. 2. Ao criar o STJ e lhe dar a função essencial de guardião e intérprete oficial da legislação federal, a Constituição impôs ao Tribunal o dever de manter a integridade do sistema normativo, a uniformidade de sua interpretação e a isonomia na sua aplicação. O exercício dessa função se mostra particularmente necessário quando a norma federal enseja divergência interpretativa. Mesmo que sejam razoáveis as interpretações divergentes atribuídas por outros tribunais, cumpre ao STJ intervir no sentido de dirimir a divergência, fazendo prevalecer a sua própria interpretação. Admitir interpretação razoável, mas contrária à sua própria, significaria, por parte do Tribunal, renúncia à condição de intérprete institucional da lei federal e de guardião da sua observância. 3. Por outro lado, a força normativa do princípio constitucional da isonomia impõe ao Judiciário, e ao STJ particularmente, o dever de dar tratamento jurisdicional igual para situações iguais. Embora possa não atingir a dimensão de gravidade que teria se decorresse da aplicação anti-isonômica da norma constitucional, é certo que o descaso à isonomia em face da lei federal não deixa de ser um fenômeno também muito grave e igualmente ofensivo à Constituição. Os efeitos da ofensa ao princípio da igualdade se manifestam de modo especialmente nocivos em sentenças sobre relações jurídicas de trato continuado: considerada a eficácia prospectiva inerente a essas sentenças, em lugar da igualdade, é a desigualdade que, em casos tais, assume caráter de estabilidade e de continuidade, criando situações discriminatórias permanentes, absolutamente intoleráveis inclusive sob o aspecto social e econômico. Ora, a súmula 343 e a doutrina da tolerância da interpretação razoável nela consagrada têm como resultado necessário a convivência simultânea de duas (ou até mais) interpretações diferentes para o mesmo preceito normativo e, portanto, a cristalização de tratamento diferente para situações iguais. Ela impõe que o Judiciário abra mão, em nome do princípio da  segurança, do princípio constitucional da isonomia, bem como que o STJ, em nome daquele princípio, também abra mão de sua função nomofilácica e uniformizadora e permita que, objetivamente, fique comprometido o princípio constitucional da igualdade. 4. É relevante considerar também que a doutrina da tolerância da interpretação razoável, mas contrária à orientação do STJ, está na contramão do movimento evolutivo do direito brasileiro, que caminha no sentido de realçar cada vez mais a força vinculante dos precedentes dos Tribunais Superiores (REsp nº 1.026.234, DF, relator Ministro Teori Zavascki, DJ, 11.6.08).

2 “O presente incidente visa a ver declarada a inconstitucionalidade do Decreto-lei nº 1.910, de 1981, cuja validade o Supremo Tribunal Federal já reconheceu. A reapreciação do tema, nesta instância menor, parte da convicção de que aquela Corte julgou mal. E o respectivo pressuposto é o de que o erro pode ser evitado na espécie. O fato enseja uma indagação, de ordem geral, a respeito de como os Juízes devem se comportar frente aos Tribunais a que estão vinculados; de como estes Tribunais devem encarar os precedentes dos Tribunais Superiores; finalmente, de como todos eles devem se posicionar ante os julgados do Supremo Tribunal Federal. Historicamente, os juízes – incluídos os dos Tribunais – estão vinculados apenas à lei. São independentes, na medida em que o Poder Executivo não lhes pode limitar as decisões per meio de decretos, e em que, também, não se sujeitam a ordens dentro do âmbito do próprio Poder Judiciário. A lei, como a interpretam, constitui seu único critério de julgamento. Diferentemente do Poder Executivo, organizado à base da hierarquia, em que é explícita a relação de subordinação, o Poder Judiciário se estrutura sob a égide da coordenação. Na Administração Pública, os agentes respectivos dão e cumprem ordens nos limites de suas atribuições. No Judiciário, as decisões do juiz resultam de seu entendimento a respeito do que signifique a norma legal. O provimento judicial pode ser reformado por via de recurso, é certo, mas só no caso concreto, sem repercussões em processos futuros. Em linha de princípio, o Juiz pode perseverar indefinidamente julgando segundo o que lhe pareça conforme a lei. Daí se vê que, tecnicamente, nada inibe o Juiz na manifestação de seu ponto de vista. O limite dele é a lei, no modo como a vê, isto é, com mais ou menos conhecimentos, experiências e preconceitos. O que é quase uma maneira de dizer que ele pode tudo no âmbito de sua competência. Há exemplos desse individualismo na função judicial, mas o comum é a observância dos precedentes jurisprudenciais, porque o valor da norma jurídica está na sua certeza. Se o Juiz decide contra a orientação do Tribunal, a reforma de sua sentença é uma questão de tempo. Salvo se ela ofendê-lo em suas convicções éticas, o mais razoável é que no futuro se afeiçoe aos mesmos critérios. A não ser assim, sua independência, que foi instituída para proteger as partes, apenas faz por lhes retardar a reparação do direito lesado. Por esse motivo, a tendência dominante é a da adesão dos juízes de 1º grau ao direito ditado pelos Tribunais. No último quarto de século, a influência do direito norte-americano se projetou no nosso sistema judicial no que se refere aos Tribunais. A criação das Súmulas, inspiradas no stare decisis, consolidou a exigência de que cada Tribunal fosse uniforme e estável nas suas decisões. Enquanto não modificados, os enunciados obrigam os respectivos membros. O juiz do tribunal, portanto, pode manifestar reserva a respeito das súmulas que lhe desagradem, mas está impedido de contrariá-las, em voto, antes que, pelo procedimento próprio, sejam revisadas. Limitando embora seus juízes, o Tribunal de 2º grau de jurisdição pode afrontar a jurisprudência do Tribunal Superior. Quando isso acontece, o inconveniente é  aquele já denunciado em relação às práticas individualistas dos Juízes de 1º grau de jurisdição: a reforma de seus julgados é uma questão de tempo, atrasando o reconhecimento do direito postulado. A situação é basicamente idêntica quando Juiz de 1o grau contraria a jurisprudência do Tribunal de 2º grau e quando este afronta o entendimento de um Tribunal Superior, nesse sentido de que ambos exercem competência que só se diferencia pelo nível em que a decisão é tomada. Diversamente se passa quando um ou outro destoa do que, em matéria constitucional, o Supremo Tribunal Federal deliberou. Todos os Juízes e tribunais têm o compromisso de zelar pela observância da Constituição. Mas ao Supremo Tribunal Federal, na forma do art. 102 do texto básico, compete, “precipuamente, a guarda da Constituição”. Quer dizer, a nova ordem jurídica fez por transformar o Supremo Tribunal Federal em Corte Constitucional. Nesse mister, seus provimentos valem nos dois sentidos, isto é, tanto para reconhecer a validade da lei quanto a sua invalidade. Ofendem, do mesmo modo, o provimento do Supremo Tribunal Federal: (a) a decisão que dá foros de constitucionalidade a uma lei que ele declarou inconstitucional; e (b) a decisão que reconhece a inconstitucionalidade de lei que ele proclamou constitucional. Assim dimensionada essa função, é preciso saber se os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal decorrem da autoridade deste ou do valor dos argumentos neles articulados. Quem quer que tenha experiência no âmbito judicial sabe que a sentença, mesmo a mais medíocre, vale porque é a manifestação de um órgão estatal, pouco importando o que os mais eminentes juristas tenham dito, em eruditos pareceres e memoriais, a respeito da causa. E, se bem que o paralelo seja impróprio, porque os julgados do Supremo Tribunal Federal sempre são da melhor qualidade, o efeito vinculativo de suas decisões resulta da preeminência que a Constituição lhes assinou. Os juízes e tribunais, por isso, não podem ceder à tentação de fazer ciência do direito. A interpretação razoável, mas respeitada, é melhor, do ponto de vista social, do que outras mais geniais, sempre novas. A segurança jurídica depende do grau de previsibilidade das decisões judiciais. Nessa linha não se pode esperar dos Juízes e Tribunais menos do que se quer do homem comum, isto é, o respeito às decisões do Supremo Tribunal Federal. Se, no caso, ele já deu por encerrada a controvérsia sobre a constitucionalidade do Decreto-lei nº 1.910, de 1981, que razões poderiam recomendar que um tribunal regional viesse a rediscutir a matéria? E seriam tamanhas a ponto de vencer esse óbice adicional de que se trata de texto há muito tempo revogado, cujas consequências se reportam ao passado? A resposta está intimamente vinculada à noção do que cada juiz e tribunal faz do seu ofício. Aqueles que entendem que há um momento em que as controvérsias devem cessar, sob pena de o direito falhar na sua função precípua de dar segurança às partes, estão comprometidos com a autoridade do Supremo Tribunal Federal. Diferentemente das partes, que veem nos julgados deste a última instância de decisão, o juiz e o tribunal devem reconhecer neles o primeiro degrau de suas deliberações, como o direito já desvelado, pronto para ser aplicado nos casos futuros. A declaração de inconstitucionalidade de lei, se diferencia, quanto à natureza, se proferida por um Tribunal ou pelo Supremo Tribunal Federal. Um tribunal só enfrenta questão constitucional, e como incidente, quando a causa não pode ser resolvida de outro modo. O Supremo Tribunal Federal faz esse exame no exercício rotineiro de sua competência, como último intérprete da Constituição. Não é a palavra final, porque a exegese pode ser alterada, e o Regimento Interno daquela Corte prevê o procedimento próprio para esse efeito. Agora, a iniciativa de outro tribunal nesse sentido é impertinente, na medida em que, observando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não impede que a parte a ele recorra através do recurso próprio. Enfatize-se: a aceitação da autoridade dos julgados do Supremo Tribunal Federal não impede que este venha a conhecer da questão constitucional; a rejeição provoca a instabilidade que, em época agitada da Suprema Corte dos Estados Unidos da América do Norte, o juiz Roberts criticou, ao dizer que os julgamentos estavam gravitando ‘em torno de uma mesma classe, como um bilhete de estrada de ferro que só valesse para aquele dia e para aquele trem’ (in Edward S. Corwin, “A Constituição Norte- Americana e seu Significado Atual”, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1959, p. 177) – Arguição de Inconstitucionalidade na MAS nº 89.04.18646-3, RS, julgado em 12 de dezembro de 1990 – Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região nº 6, p. 51/54.

3 “O Poder Judiciário só terá funcionalidade se, aceito o pressuposto de que ao final prevalecerá a decisão de última instância, os tribunais locais fizerem por antecipá-la em seus acórdãos. Este não é apenas um reclamo da economia processual, mas um antídoto contra o efeito iatrogênico dos julgados que estimulam causas inviáveis, comprometendo, em razão do congestionamento dos foros, a prestação jurisdicional em demandas verdadeiramente importantes, que se arrastam nos cartórios por anos e anos. A não ser assim, o remédio se transforma em veneno, desesperando as partes que litigam quer nas boas causas (assim entendidas, aquelas em que há incertezas a serem dirimidas), quer naquelas cujo desfecho já era previsível à data em que foram propostas” (trecho do prefácio, de minha autoria, ao Código Ibero-Americano de Ética Judicial, Conselho da Justiça Federal, Brasília, 2008, p. 5/6).