A lei Maria da Penha

25 de julho de 2011

Eliana Calmon Ministra aposentada do STJ

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(Artigo originalmente publicado na edição 107, 06/2011)
 

I. Introdução
A desigualdade formal, conquistada com a Revolução Francesa de 1789, foi o paradigma da legislação do mundo civilizado no curso do século XIX e por quase todo o século XX.
 
Ao final da Segunda Guerra, o Mundo Ocidental despertou para uma nova realidade: de nada valia a outorga de direitos pelo Estado se não tinham os titulares formais desses direitos condições de acesso a eles. Para a real aquisição dos direitos outorgados pelo Estado era preciso criar condições de acesso, tarefa que não poderia ser deixada para solução ao Estado do laissez-faire, laissez-passer. Era preciso criar mecanismos que levassem à igualdade substancial de direitos.
 
Assim, despertou-se ao final do século XX para a identificação de grupos fragilizados em razão de fatos adversos por questão de gênero, raça, nacionalidade, credo, etc., ao tempo em que se deu início às políticas públicas identificadas como ações afirmativas, que são, em verdade, a discriminação protetiva de grupos sociais com dificuldade de acesso aos direitos constitucionalmente estabelecidos.
 
Dentre os grupos minoritários de maior expressão social está o discriminado por gênero, não se ignorando que a história da mulher é marcada por uma condição de inferioridade em todos os povos e civilizações, minorada após a Revolução Francesa, mas ainda gritante no século XX.
 
A desigualdade feminina fez nascer na sociedade brasileira, o que não se apresenta como peculiaridade única, sendo uma constante em diversos países, com maior ou menor intensidade, uma cultura de violência oriunda da própria posição de superioridade social do homem, incentivada por razões de poder na divisão do mercado de trabalho e de predominância política e, por fim, pelo silencioso consentimento social, seja das vítimas, seja de terceiros pela cultura de inferioridade da mulher.
 
A violência contra a mulher tornou-se, então, invisível aos olhos da sociedade, tolerante e, por isso mesmo, no exercício de um surdo pacto de silêncio, traduzido em ditados populares que bem expressam o comportamento social: “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”; “roupa suja se lava em casa”; “a mulher casada está em seu posto de honra e da rua para fora nada lhe diz respeito”.
 
Graças aos movimentos feministas, a partir de 1910, tornaram-se públicas as discussões sobre a independência da mulher, para superação da sua pseudoinferioridade, anotando-se, a partir dos diversos embates, a gravidade da violência doméstica.
 
A discussão pública sobre o tema ficou mais evidente na década de 70 e, nos anos 90, com mais veemência, veio à baila o tema, quando os movimentos feministas incipientes mais atuantes fizeram nascer as ONGs e as associações, com militância constante e competente, direcionando-se para um objetivo comum: envolver o Estado por via de políticas públicas e sociais no sentido de acabar com a violência contra a mulher.
Ao final do século XX, podemos dizer que houve uma quebra de paradigma, refletida nas chamadas ações afirmativas em favor da mulher, a partir do objetivo de eliminar a violência doméstica ou social contra a mulher.
 
No decorrer dos estudos em direção ao objetivo da igualdade, chegou-se à conclusão que o ponto de partida para a construção de uma política eficiente seria a coleta de dados estatísticos, possibilitando tais números ao traçado de um diagnóstico e, depois, à implantação de um sistema de prevenção eficiente, afastando-se as verdades e mentiras que sempre povoaram o imaginário social.
 
Quando o Brasil foi convidado para participar do Congresso Internacional de Mulheres, realizado em Beijing, em 1995, despertou para a dificuldade em traçar as metas a serem discutidas pela ausência de dados estatísticos sobre a atuação da mulher brasileira. Ainda hoje ressente-se a Nação de precisão numérica de dados. Dispomos apenas dos dados obtidos do IBGE, dos recenseamentos de
1988 e 2001, de pesquisas isoladas procedidas pelas Secretarias de Segurança Pública dos Estados e de uma única pesquisa direcionada, realizada pela Fundação Perseu Abramo, em 2001.
 
A partir daí, passou a ser a meta prioritária dos movimentos feministas a produção de dados e indicadores atualizados. Graças a esta consciência, veio a lume a Lei 10.778/03, diploma que torna obrigatório aos hospitais e clínicas médicas preencher questionário específico de informação sobre atendimento médico à mulher que chega aos hospitais e clínicas com sinais de agressão física ou psíquica. Lamentavelmente, passados quatro anos, a lei mencionada ainda não foi regulamentada, nem sequer implantada.
 
II. A legislação
A Constituição Federal de 1988 instituiu como um dos princípios fundamentais do Estado a “dignidade da pessoa humana”, dentro da garantia de que todos são iguais, sem distinção alguma, proibindo, inclusive, diferença salarial, diferença de critérios de admissão por motivo de sexo, dispositivos que deixam clara a posição de combate à discriminação.
 
A conquista maior veio com a Lei 9.099/95, diploma que instituiu os Juizados Especiais, possibilitando maior celeridade e eficácia às punições de delitos de baixo potencial ofensivo, classificando-se como tais os casos mais comuns de violência doméstica contra a mulher.
 
Lamentavelmente, a realidade mostrou-se inteiramente diferente da ideia conceitual dos que lutaram pela aprovação da Lei dos Juizados. Em pouco tempo, chegou-se à conclusão de que o diploma legal serviu para a legalização da “surra doméstica”. Sem flagrante, sem fiança e com a possibilidade de acordo, ainda na fase policial, impunha como condenação o pagamento de uma multa, a entrega de cestas básicas ou a prestação de serviço à comunidade, apagando por completo a acessão perpetrada.
 
A suavidade da pena e o desaparecimento da culpa do agressor pelas tratativas procedimentais levavam à reincidência, ou seja, outra surra, outra agressão, acompanhada de coação, para que a vítima não usasse o suporte legal nos próximos embates.
 
III. Peculiaridades
A Lei 11.340/06, chamada de Lei Maria da Penha, inaugurou uma nova fase na história das ações afirmativas em favor da mulher brasileira.
 
Não se pode deixar de registrar o motivo que levou o legislador a nominar o novo instituto. Sim, porque a Lei Maria da Penha é mais do que um diploma legislativo. Trata-se de uma lei que congrega um conjunto de regras penais e extrapenais, contendo princípios, objetivos, diretrizes, programa, etc., com o propósito precípuo de reduzir a morosidade judicial, introduzir medidas despenalizadoras, diminuir a impunidade e, na ponta, como desiderato maior, proteger a mulher e a entidade familiar.
 
Maria da Penha é uma professora universitária de classe média, casada com um também professor universitário, que protagonizou um simbólico caso de violência doméstica contra a mulher. Em 1983, foi vítima, por duas vezes, do marido, que tentou assassiná-la. A primeira vez com um tiro, que a deixou paraplégica, e a segunda, por eletrocussão e afogamento. A punição pela Justiça só veio vinte anos depois, por interferência de organismos internacionais. Maria da Penha transformou dor em luta, tragédia em solidariedade, merecendo a homenagem de todos dando nome à lei que é, sem dúvida, um microssistema de proteção à família e à mulher.
 
Como principais inovações temos a admissibilidade das prisões em flagrante e preventiva, obrigatoriedade do inquérito policial e a só possibilidade de desistência, por parte da vítima, em juízo, acompanhada de advogada e ouvido o Ministério Público. Pelos tópicos, verifica-se a absoluta alteração da sistemática procedimental, impondo-se dificuldades para arquivamento de uma denúncia de agressão, a fim de evitar a coação. Daí a necessidade de participação de todos os atores processuais: juiz, advogado e Ministério Público.
 
A autoridade policial também fica mais fortalecida na fase repressiva, podendo efetuar a prisão em flagrante ou representar pela prisão preventiva.
 
Têm os doutrinadores questionado o seguinte: aplicava-se ao crime de violência doméstica, com ou sem lesões corporais, a Lei 9.099/95 — Lei dos Juizados Especiais —, diploma que exigia a representação para o procedimento do crime de lesões corporais dolosa de natureza leve.
 
Revogada a aplicação da Lei 9.099/95 pela Lei Maria da Penha, fica a indagação: continua-se a exigir a representação ou passa-se à  categoria dos crimes de ação pública? Sem referência jurisprudencial ainda tem-se a voz autorizada do Professor Damásio de Jesus, entendendo que continua a se exigir, para a espécie, a representação.
 
É interessante anotar que a lei em comento se refere à violência contra a mulher, perpetrada no âmbito da unidade doméstica, entendendo-se como tal o espaço de convivência permanente de pessoas com ou sem vínculo familiar, abrangendo, inclusive, os esporadicamente agregados.
 
Uma grande inovação do diploma aqui analisado é a explicitação das formas de violência, discriminadas no art. 7º (violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral), sendo definidas cada uma delas.
 
Mantidas as penas constantes do Código Penal, e que vão de um a três anos de detenção, afastaram-se a pena pecuniária, a  transação penal e a  competência dos juizados especiais.
 
Há na lei um ponto que está a causar perplexidade por destoar inteiramente do foco de maior repressão: o parágrafo 9º do art. 121, depois de ter o acréscimo da qualificação, pela Lei 11.340/06, sofreu diminuição da pena máxima cominada, passando  de seis para três meses de detenção. Para uns, houve equívoco do legislador; para outros, diferentemente, a intenção foi sistematizar a pena para as hipóteses de lesões leves.
 
Muito mais do que um diploma repressivo, a Lei Maria da Penha é um conjunto sistêmico de medidas protetivas, daí a prescrição de medidas acautelatórias, tais como: suspensão do porte de arma, afastamento do lar, proibição de contato do agressor com a vítima, alimentos provisionais, etc..
 
A Lei 11.340/06, para funcionar e produzir os efeitos desejados, está a exigir do aparelho estatal, especialmente do Poder Judiciário, um esforço concentrado, a partir da implantação imediata dos Juizados de Violência Doméstica, os quais deverão ter funcionamento diferenciado. A previsão de uma equipe multidisciplinar de atendimento de nada servirá se aos processos judiciais não se der diferenciado tratamento no sentido de dinamizar, descomplicar e, sobretudo, entender-se o drama familiar que se esconde atrás de  cada um dos processos. O desafio maior, portanto, é o de treinamento adequado.
 
IV. Questionamentos
Como não poderia deixar de ser, doutrinariamente, não são poucos os questionamentos em torno do novo diploma. Primeiro, pela novidade; segundo, pela ousadia legislativa; e, terceiro, pela falta de hábito, ainda, no trato com as ações afirmativas. Daí a adjetivação à lei, tida por alguns como preconceituosa por partir da ideia de desigualdade, o que é  de absoluta intolerância para as feministas.
 
A lei, efetivamente, reconhece a desigualdade de gênero e vem, por isso mesmo, com o intuito de proteger não apenas a mulher, mas também a família. Trata-se de um instrumento identificado como de ação afirmativa.
 
Para outros, a lei em análise deforma o sistema prisional e traz, em consequência, um grave problema social, na medida em que, sem a possibilidade de livrar-se solto do processo, como ocorria antecedentemente, colocar-se-á na prisão, durante o curso do processo, um pai de família, um homem com baixa agressividade, no meio de marginais perigosos e praticantes de delitos de alto potencial ofensivo.
 
Entendo que o sistema prisional brasileiro já está inteiramente deformado e não será a Lei Maria da Penha mais um instrumento de aprofundamento do caos reinante.  A avaliação não é por esse prisma, e sim pela constatação de que talvez tenhamos uma lei avançada demais para um país que iguala os segregados pelo Estado, colocando todos no mesmo patamar, sem estabelecer gradações, ou discriminação, pelo tipo do crime perpetrado. Não temos sistema prisional, e sim depósito de presos, o que precisa de correção urgente, urgentíssima.
 
Alega-se também que a Lei Maria da Penha está na contramão da história, porque defasada da nova orientação do Direito Penal, de caráter eminentemente preventivo, enquanto o grau de repressão da Lei 11.340/06 é a tônica. A alegação é inteiramente leviana, na medida em que o conteúdo penal do diploma analisado é mínimo. Como já afirmado, trata-se de instrumento legislativo que alberga um microssistema de proteção à família e, por via de consequência, à mulher, com alguns dispositivos de forte repressão.
 
A mais radical crítica à lei é no sentido de taxá-la de inconstitucional, pela quebra do princípio da igualdade. Ora, se levarmos em conta, em termos absolutos, o princípio da igualdade formal, todas as ações afirmativas padeceriam de inconstitucionalidade.
 
Afinal, ninguém ignora o grave quadro de inferioridade do gênero, conforme demonstram os poucos dados estatísticos existentes. A título exemplificativo, com números de maio de 2006, temos que a cada quinze segundos uma mulher é espancada ou violentada; a cada vinte e quatro horas nove ocorrências policiais são registradas; uma em cada cinco mulheres já foi agredida; mais de cinquenta por cento das agredidas não procuram ajuda; trinta e três por cento das mulheres já sofreram algum tipo de agressão física; setenta por cento dos incidentes acontecem dentro da unidade familiar e o agressor é o próprio marido; mais de quarenta por cento das agressões resultam em lesões corporais graves; o Brasil perde dez por cento do seu PIB em decorrência da violência contra a mulher, considerando-se os gastos da rede de saúde, a interrupção do mercado de trabalho pela paralisação da atividade da mulher agredida e o gasto com a mobilização do aparelho estatal repressivo, polícia e Justiça.
 
V. Conclusões
Independentemente da valorização da mulher, em política que tenha por escopo a igualdade do gênero, não se pode deixar de reconhecer que no Brasil, como em quase todos os países do mundo ocidental, a  mulher continua sendo alvo de uma sociedade machista e desigual, em preconceito muitas vezes silencioso, velado e, lamentavelmente, socialmente consentido. O silêncio da vítima e a indiferença da sociedade são, sem dúvida, o combustível mais poderoso para a continuidade da violência.
 
Não se pretende aqui fazer uma apologia à mulher, mas é preciso, ao falar de uma específica forma de violência, a doméstica, lembrar do que ocorre fora do âmbito familiar, nos empregos, e que hoje merece a reprimenda penal com o tipo do artigo 216-A do Código Penal; do que faz a sociedade de consumo com as mulheres, que hoje vivem submetidas aos ditames da ditadura da beleza, que exige juventude, corpo esquálido e hábitos que sustentem a rica indústria de cosméticos, de cirurgias plásticas e da moda prêt-à-porter, sem preocupação alguma com o destino existencial da mulher.
 
Ao falar-se da Lei Maria da Penha, estar-se-á restringindo a análise a uma espécie, a mais drástica e grave sob o ângulo pessoal da vítima e da sociedade: a violência doméstica.
 
A Lei 11.340/06 só pode ser interpretada como diploma que pretende resgatar de forma principiológica a política pública de proteção à família e de combate à desigualdade, sem espaço para alegação de inconstitucionalidade.
 
Constituindo-se a Lei Maria da Penha em uma quebra de paradigma, só funcionará, efetivamente, se pelo Estado houver a implementação dos serviços multidisciplinares previstos no microssistema criado. Por parte dos atores do processo, dentre os quais juízes e membros do Ministério Público, espera-se que vençam a tradicional morosidade do Judiciário, mediante a aplicação da norma de maneira inteiramente nova, sem burocracias e sem formalismo.
 
Enfim, no combate à desigualdade é preciso que cada um cumpra o seu papel.
 

 
Eliana Calmon
Ministra do STJ