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A Magistratura não estará desamparada

5 de junho de 2003

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Discurso de posse do ministro Mauricio Correa no Supremo Tribunal Federal

“Assumo nesta data tão significativa e histórica para mim a presidência do Supremo Tribunal Federal.

Assumi-la por si só já se constitui galardão que ultrapassa os limites do que jamais imaginei pudesse atingir.

Advogado que fez da primeira instância trincheira diária de luta, com reduzida atuação perante esta Corte, minha chegada ate aqui se revelou acontecimento que somente os desígnios do destino podem explicar.

Sem jamais, e por isso mesma em qualquer instante de minha vida haver pensado em seguir a carreira da magistratura, malgrado tudo de bela e encantador que possa encerrar, dela não fiz planos do que me havia proposto realizar.

Traído, assim, pelos fatos, mas a eles certamente acumpliciado pela trama humana, lá se foram por água abaixo os projetos de continuidade na vida política e a tão sonhada retomada das antigas atividades na advocacia.

Nesse conluio interativo, pelo menos em termos de maquinação terrena, um artífice responsabilizou-se pelo ato: o Presidente Itamar Franco, homem Integro, de passado e presente intemeratos, de cuja amizade mantemos mutua e fraterna convivência, que o tempo cada vez mais solidifica e amadurece.

Foi ele que teve a ousadia de enviar mensagem ao Senado Federal, aprovada com invulgar e inusitada rapidez, em tempo, que eu saiba, ainda não superado, mercê da generosidade de meus eminentes pares de então, gesto de que nunca poderei esquecer-me.

Servidor público, advogado, Presidente do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil, Senador, Ministro da Justiça, Ministro do Supremo Tribunal Federal e agora seu Presidente, por esses títulos e por muitas conquistas auferidas política, social e profissionalmente, rendo gratidão eterna a Brasília e a seu povo.

De tudo que dela obtive como resposta ao reconhecimento de que lhe sou devedor, outra coisa não posso dizer senão que procurei sempre cumprir fielmente meus deveres, e assim continuarei a agir.

Com a experiência vivida e, pois, com passagem pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, creio estar apto a entender com uma visão mais ampla 05 diversos ângulos da administração pública e os problemas do quotidiano que a cercam.

Entusiasmados com o que vinha de um mundo que se transformava ao redor de nós, mas imperceptível ainda para muitos, dentre os quais me incluía como Constituinte, elaboramos uma Constituição descritiva, pormenorizada, conceptiva de uma variada definição de institutos e regras, não nos dando conta da estonteante e avassaladora transformação que já estava a comprometer todo o Planeta, sem que nos apercebêssemos dessa realidade.

Embora julgássemos ter elaborado a mais moderna de todas as Constituições, bastou-nos pouco tempo para que a realidade provasse que de fato havíamos criado direitos e não fomos capazes de estimar suficientemente as Fontes necessárias para honrá-los.

Além da constatação dessa melancólica evidencia, o Brasil e o mundo estavam sendo engolfados, célere e inexoravelmente, pelo cerco que a universalização da economia, voraz, atéia e apátrida, passou a ditar.

Veio a primeira emenda, mais outra e outra, e hoje são 40 já incorporadas ao Texto Constitucional.

Muitas ainda seguramente virão.

Algumas delas, com a urgência que a situação econômica do Brasil requer.

Errado? Não.

Ninguém poderá ignorar que se impõe sejam tomadas medidas de contenção do déficit produzido pela descompensação de uma operação de elementar simplicidade: se ganho duzentos e cinqüenta reais por mês não posso gastar trezentos, senão vou a bancarrota.

Incontáveis países já se encontram vivendo esse desespero.

O princípio de que trata o artigo 2° da Constituição é taxativo: os Poderes da União são independentes e harmônicos entre si. Isso significa que devem trabalhar em harmonia a fim de produzir resultados, respeitada a independência de cada um.

Nessa perspectiva, não pode o Poder Judiciário alhear-se a gravidade do momento por que passa a nossa economia, a ele também cabendo a permanente disposição de contribuir para que se criem no Pais mecanismos de proteção e salvaguarda das conquistas políticas e sociais até aqui obtidas.

De que modo?

Promovendo no que estiver ao alcance de cada um o que for possível, sem jamais furtar-se a esse dever.

A contribuição que possa dar o Poder Judiciário, entretanto, esta atrelada a sua função jurisdicional.

O Juiz e o Estado enquanto exercita a jurisdição. Se o tema e a aplicação da lei não há como transigir, porque do contrario seria imiscuir-se na atuação do próprio Estado, representado pelo Magistrado, ou de outra forma, ingressar na consciência de quem tem a tarefa constitucional e intransferível de distribuir a Justiça.

Por isso o Juiz e sempre neutro com relação as partes.

Nesses limites, o Supremo Tribunal Federal, que tem como objeto precípuo o resguardo da Constituição e das leis do Pais, e conseqüentemente de seu povo, como acabei de jurar, está aberto ao dialogo, que espero e tenho certeza de que reciprocamente haverá, para a compatibilização dos móveis que representamos e de cujos mandantes somos delegatórios, sejam eles os do Poder Judiciário com relação ao Legislativo e Executivo, tanto quanto desses com relação a nós.

Situada a questão nesse cenário, foi o Congresso Nacional recentemente instado a pronunciar-se sobre dois temas de capital importância, além de tantos outros que perante ele ora tramitam.

Pelas características específicas das propostas encaminhadas ao seu exame, duas, pelos menos, revestem-se de relevância e magnitude consensuais. Uma delas, como afirmam os agentes responsáveis pela guarda dos gastos e despesas, confrange-se pela falta de recursos, prenunciando caos e falência do sistema. A outra cuida exatamente da forma pela qual se poderá evitar que o pior possa acontecer, desde que tomadas a tempo medidas saneadoras, não só no que diz respeito diretamente aos compromissos sociais da União, mas também os dos Estados e Municípios.

A freqüência com que a União Federal e os Estados-membros ajuízam ações diretas de inconstitucionalidade perante esta Corte, relacionadas com matérias pertinentes a previdência social e a ordem tributária e, nesse tema, recorrem das decisões que lhes são desfavoráveis nas diversas instancias do Poder Judiciário, dão o tom do agônico quadro de um sistema que, pelo visto, sob o ângulo do Estado, está a exigir reformulas;ao de fato imediata.

Permito-me não fazer prospecções, por ora, nesse terreno. Estou convencido de que nossos legisladores saberão encontrar os melhores rumos para uma resposta a essas necessidades sem, contudo, perder de vista a situas;ao dos segurados da Previdência Social, ativos e inativos, e a dos contribuintes, já com uma avantajada carga de responsabilidades tributarias que pesam sobre os seus ombros.

Seria, entretanto, omisso se não deixasse expressa, aqui e agora, a preocupação que me assalta a propósito das profundas modificações que se pretende introduzir no regime remuneratório e previdenciário da magistratura nacional, que passariam a ter parâmetros distintos do que ate aqui estabelecidos.

Assim como os militares, que se constituem servidores públicos especiais, da-se o mesmo com o juiz. Impedido pela Constituis;ao de exercer outras atividades, senão uma de magistério, vive essencialmente de seus subsídios.

O momento, repito, e crucial e não mais admite postergação. Ninguém em sã consciência nega a necessidade e urgência das adequações constitucionais. Devem ser adotadas, entretanto, sem atropelos, sem idéias mágicas e mirabolantes que muito já nos prejudicaram e, principalmente, sem arranhar o Estado de Direito Democrático que construímos com tanto esforço e sacrifício.

Devidamente informado das conseqüências que a nova sistemática poderá provocar, e meu dever consignar o grau de ansiedade e insegurança que grassa no meio da magistratura nacional de todos os níveis. Tem chegado ao meu conhecimento a estimativa de milhares de pedidos de aposentadorias que se avizinham tão-logo aprovado o novo regime. Por outro lado, poderá haver um desestimulo ao ingresso na carreira, cujos concursos são sempre realizados com criteriosa seleção e que, por isso mesmo, nem sempre as vagas aberras se preenchem na sua integralidade.

A prevalecer a regra proposta, receio que cada vez mais aumentara a carência de juízes, sobretudo nas inúmeras comarcas esparramadas pelo Brasil afora.

Fique, porém, a Magistratura tranqüila, que ela não estará desamparada!

Senhores, permitam que agora me dirija aos representantes do Poder Judiciário e aos membros da Magistratura nacional de todos os níveis.

Partindo do pressuposto do que acima mencionei, Ínsito a regência do princípio da harmonia entre os Poderes, tanto mais quando se cuida de alterar conceitos há muito vigentes na atual, e em certos pontos, na antiga ordem constitucional, e sem querer, como antes disse, antecipar posições subjetivas, convoco para um grande debate dos temas propostos, aqui no Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, para as 10 horas do próximo dia 17 do mês em curso, em face da urgência imposta a tramitação das emendas, todos os Presidentes dos Tribunais Superiores; dos Tribunais Regionais Federais e do Trabalho; dos Tribunais de Justiça e de Alçada dos Estados.

Convido, ainda, os Presidentes das associações de classe representativas da magistratura brasileira, para somar conosco esforços na busca de contribuições que possam converter-se em posição institucional uniforme do Poder Judiciário, e que deverão ser levadas a apreciação das autoridades responsáveis pelas mudanças já submetidas a discussão e votação no Congresso Nacional, visando conformar as nossas serias ansiedades com os elevados objetivos das inovações em causa.

Extraído desse e de outros encontros o pensamento do Poder Judiciário, qualquer negociação que eventualmente possa ser discutida com os agentes políticos envolvidos, repito, sempre do ponto de vista institucional, devera ser conduzido pessoalmente pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, de modo que não haja a intermediação de interlocutores dispersos e dispares, tornando fragilizada a unidade que se exige prevaleça entre nós, e de cuja liderança, pelo título que ora me foi conferido, não abro mão.

Penso poder, ao menos quanto a Reforma do Poder Judiciário, que urge seja realizada, quiçá com a mesma celeridade imposta as da Previdência e Tributária, tecer algumas considerações.

Generalizadas são as queixas de que a Justiça e morosa. Com isso estamos todos de acordo. A realidade, porém, não decorre da ineficiência da instituição ou de seus membros, mas dos problemas do sistema vigente, que se pretende aprimorar, nada obstante, e cerro, os desvios de conduta que, felizmente, são raros e isolados, e que, de resto, acontecem também em outros segmentos da vida pública e privada.

Relativamente a lentidão dos julgamentos, causas diversas provocam-na. Como todos sabemos, ninguém pode atropelar as regras de processo, de observância obrigatória, sob pena, em muitos casos, de nulidade dos atos a praticar. O amplo direito de defesa, o contraditório e o devido processo legal, são instrumentos inerentes a garantia constitucional e não podem ser desrespeitados. Não há como impedir que se recorra. Aí estão os recursos cujo número ultrapassa os limites do razoável. As partes tem direito de dispor plenamente deles. Há, no entanto, uma incontestável industria de recursos protelatórios, que põe mesmo em xeque a efetividade da prestação jurisdicional, fato que não pode ficar a margem da reforma.

Lembro apenas estes tópicos. Poderia arrolar muitos outros. Não é hora.

Fala-se, também, na fiscalizas;ao do Poder Judiciário. Iremos discução Creio, no entanto, que pré-requisito para enfrentá-la e conhecer os deveres e encargos que recaem sobre os ombros do juiz.

Quando advogado e depois Senador, não podia entender cerras garantias da magistratura, ridas injustamente como privilégios. Como dizia antes, a visão integrada com a minha atual missão deu-me a justa explicação. O juiz trabalha sem limites, e embora dispense dedicação exclusiva, não é um super-homem capaz de atender suficientemente a descomunal demanda de processos. Os magistrados brasileiros, em geral, entregam-se ao exercício de sua função judicante ate a extenuação, abdicam do convívio familiar, dos finais de semana, do lazer, e muitos até mesmo da própria saúde. A responsabilidade de julgar, a necessidade de pensar, refletir, fazer e refazer o esboço de seu voto ou sentença, e o volume de feitos, tudo isso faz da carga de trabalho do juiz algo desumano. Afirmo-o sem medo de errar.

Vejamos, a guisa de exemplo, o que acontece conosco aqui nesta Corte. São tantos os processos distribuídos a cada um de nos que o Tribunal se acha praticamente inviabilizado. Os números dão bem o senti do dessa caótica e amarga situação, que nos coloca ante o dilema de dar preferência ao julgamento para que ele seja rápido ou zelar pela qualidade da decisão, o que exige tempo, impondo ao magistrado a escolha entre a rapidez e a reflexão, quando ambas deveriam caminhar lado a lado.

Em 1988, ano em que entrou em vigor a atual Constituição, que alargou a via de acesso a Justiça, esta Corte recebeu cerca de 21.000 processos, o que correspondia a uma média de 1.000 por ano para cada Ministro e cerca 100 por mês de trabalho. Esses números de 1988 já superavam em muito os patamares do início dos anos 70 e 80, quando o Tribunal recebeu um total de 6.300 e 9.500 processos, respectivamente.

Passados 14 anos de vigência da Constituição, porém, tivemos um movimento processual, em 2002, da ordem de 160.453 processos, distribuídos também para onze Ministros, o que significa um aumento absurdo de quase 800% no numero de feitos submetidos a deliberação da Corte. Apenas para mensurar o que isso significa, são mais de 14.500 processos para cada ministro ou 1.450 por mês, numero esse superior ao volume de todo o ano de 1988.

No último mês passado, para falar apenas de um Ministro, julguei 1848 processos, o que implica o irracional volume de 88 feitos decididos em cada dia útil de serviço. Por melhores que sejam os nossos assessores – é aqui registro por justiça o alto nível do quadro de pessoal desta Corte – e sobre humano o trabalho de cada um de nos, que está obrigado a ler todos os processos, meditar, estudar, pesquisar e decidir fundamentadamente, pressionados de maneira implacável pela premência do tempo e pelo peso da responsabilidade da função.

Essa realidade é absolutamente incompatível com as funções da Suprema Corte. Apenas para ilustrar, em 2001, ano em que julgamos quase 110.000 processos, a Suprema Corte Americana julgou cerca de 88 casos. O Tribunal Constitucional da Espanha, embora tenha recebido quase 7.000 processos, não admitiu 5.360 e julgou 250. A Corte Constitucional Portuguesa julga em media 800 processos por ano, e o Conselho Constitucional Frances julgou cerca de 340. Com todas as diferenças entre esses países e o Brasil, tanto sob o prisma jurídico e judiciário quanto territorial e sócio-econômico, a disparidade aviltante dos números bem demonstra que e preciso repensar não apenas no Poder Judiciário mas em todo o sistema de prestação jurisdicional pátrio.

Essa situação caótica, observe-se, não é exclusividade do Supremo Tribunal Federal e se repete em quase todas as Varas e Tribunais do País. A morosidade da Justiça e fato incontestável, mas a responsabilidade por ela, repito, não pode ser atribuída apenas ao Poder Judiciário, aos Juízes e Tribunais, mas a todo um contexto vigente, que exige mudanças estruturais amplas e consistentes.

Por isso mesmo, a Reforma do Poder Judiciário não pode ter solução em um só dos Poderes, dado que pelas suas peculiaridades deve ser compartilhada por todos eles, sem perder de vista a experiência de quem, como nos, lida com o problema no seu dia-a-dia.

Enquanto a tão sonhada reforma não vem, dando continuidade ao que meus antecessores nesse campo já realizaram, procurarei fazer o possível para tentar racionalizar as atividades do Tribunal, implementando uma política de desburocratização responsável e possível das rotinas e do seus procedimentos e a utilização plena dos avanços tecnológicos, em especial dos sistemas computacionais.

Pretendo, com a colaboração e a anuência dos colegas, promover a revisão e atualização das 621 Súmulas de nossa jurisprudência, assim como aprovar e publicar mais de 100 já formuladas e outras tantas em fase de discussão, criação essa de insuperável lucidez e tirocínio jurídico e administrativo do saudoso Ministro Victor Nunes Leal, hoje conduzida com extrema dedicação e competência pelo Ministro Pertence, seu reconhecido discípulo.

Outras vias de atuação por onde penso incursionar são a reavaliação do nosso Regimento Interno, procurando modernizá-lo e assim facilitar o desenvolvimento dos trabalhos judiciários da Corte, o aperfeiçoamento dos sistemas de tramitação processual interna e a adoção de procedimentos destinados a assegurar maior rapidez na publicação dos acórdãos.

Certamente surgirão idéias e projetos que serão bem recebidos. Para isso conto com a colaboração de todos, em particular dos novos Ministros que integrarão esta Corte, escolhidos com extrema felicidade, e que certamente trarão novas luzes ao Tribunal.

Deixo patente, do mesmo modo, a intenção de investir na melhoria e consolidação da TV JUSTIÇA, esse espetacular veículo de comunicação que vem permitindo a aproximação do Poder Judiciário junto da comunidade e a desmistificação da Justiça, além de assegurar ainda mais transparência e publicidade aos julgamentos.

Presto aqui minhas homenagens ao Ministro Marco Aurélio, por essa iniciativa e outras tantas, que bem demonstram a eficácia de sua gestão. A propósito, quero agradecer-lhe a forma cortes e profissional com que conduziu a transição da sua para a minha administração, pautando-a pela mais absoluta disponibilidade e colaboração.

Enfim, neste mandato picado que vou exercer, prometo trabalho e só trabalho.

É hora de parar.
Do contrario nada faço.
O tempo conspira contra mim.
A compulsória esta chegando.
Muito obrigado.”