“A magistratura que queremos”

8 de julho de 2019

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Novo evento sobre pesquisa da AMB reúne magistrados e juristas para debater o papel do Judiciário no atual momento da democracia brasileira

Continua a render muitas reflexões a pesquisa “Quem somos. A magistratura que queremos”, publicada em fevereiro passado pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Um dos mais recentes debates sobre o levantamento aconteceu em junho, na Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj), em Seminário que reuniu nomes como o do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux; os Ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Antonio Saldanha Palheiro, Luis Felipe Salomão e Marco Aurélio Bellizze; o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz; e os juristas Lênio Streck e Sérgio Bermudes, dentre muitas outras figuras relevantes do Direito nacional.

Realizado no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), o evento contou ainda com a participação dos anfitriões, o presidente do TJRJ, Desembargador Cláudio de Mello Tavares, e o presidente da Emerj, Desembargador André Gustavo Corrêa de Andrade. Destaque para o convidado internacional, o vice-reitor da University of California/ Irvine School of Law, Professor Bryant Garth, coautor do best seller jurídico “Acesso à Justiça”.

A pesquisa consolidou questionários preenchidos no ano passado por quase quatro mil ministros, desembargadores e juízes brasileiros, de todas as instâncias do Poder Judiciário. Retrato do pensamento da magistratura, o trabalho tem por objetivo fornecer dados para iniciativas de aprimoramento do Sistema de Justiça. Os resultados podem ainda ser comparados com levantamento similar de 1996, realizado pelo mesmo grupo de sociólogos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), que resultou no livro “Corpo e alma da magistratura brasileira”. Para além da mera comparação de dados censitários, o novo estudo ajuda a compreender a evolução das percepções dos julgadores sobre seu papel na democracia.

“Vale registrar o retrato traçado pelos entrevistados sobre como seria um bom magistrado. Três alternativas foram eleitas pela maioria, nessa ordem: o juiz que presta serviço jurisdicional célere; que profere decisões bem fundamentadas; e que atua objetivando a segurança jurídica. Quanto à identidade do Judiciário, os magistrados valorizaram três características:  controle da probidade administrativa interna e externa; defesa da ordem pública; defesa dos direitos humanos e controle da violência estatal”, destacou na abertura do Seminário o Desembargador Cláudio Tavares. 

Da esquerda para a direita, o Ministro do STJ Antonio Saldanha Palheiro; o Ministro do STJ Marco Aurélio Bellizze; o presidente do TJRJ, Desembargador Claudio de Mello Tavares; o Ministro do STF Luiz Fux; o diretor-geral da Emerj, Desembargador André Gustavo Corrêa de Andrade; o Ministro do STJ Luis Felipe Salomão; o Desembargador do TJRJ Agostinho Teixeira de Almeida Filho; e os juízes Renata Gil e Jayme Oliveira, vice-presidente e presidente, respectivamente, da AMB

Garantia da democracia – “Vivemos uma época em que a Justiça assumiu um protagonismo imenso, de modo que temos que entender o que se passa na cabeça dos julgadores. Há muitas controvérsias e divisões a respeito de vários temas. O ativismo é uma delas, mais ou menos com 50% para cada lado. Alguns entendem que o ativismo é desejável nas circunstâncias em que nos encontramos. Outros entendem que não, que o juiz deve ser mais conservador nas decisões e seguir aquilo que diz o Direito positivo. São questões que precisam ser debatidas”, comentou o Desembargador André Gustavo de Andrade, que aproveitou a oportunidade para anunciar a criação do Centro Permanente de Pesquisas da Emerj.

Ainda na abertura, o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, defendeu a independência do Judiciário: “A estabilidade do Judiciário foi a grande responsável pela transição sem ruptura no momento de crise aguda do Poder Executivo nos últimos anos. Por necessidade da democracia, o Poder Judiciário ocupou o espaço que ficou vago e foi garante do Estado Democrático de Direito”. 

Sobre o ativismo judicial e o modelo ideal de juiz, o battonier acrescentou: “Queremos um magistrado hígido, forte, que observa a Lei e a Constituição. Um magistrado também cidadão. Claro que não queremos um magistrado fechado em seus gabinetes, distante das grandes discussões da sociedade. Encerro com um pensamento do Ministro Luis Felipe Salomão: ‘O magistrado quando tem o poder do ativismo, tem o poder de avançar apenas quando decide pelas minorias que não estão representadas no Legislativo. Nas outras situações, há de observar o compromisso sagrado com a imparcialidade, a neutralidade e a Lei, essa marca do Judiciário brasileiro que é ser garantidor da democracia”.   

Redução das desigualdades – A conferência magna foi apresentada por Bryant Garth, um dos autores do Projeto Florença, a maior pesquisa mundial já realizada sobre acesso à Justiça, liderada pelo jurista italiano Mauro Cappelletti, que há 40 anos reuniu advogados, sociólogos, antropólogos e economistas de 30 países. Atualmente, o professor norte-americano desenvolve nova pesquisa, que será publicada em 2020, com informações sobre os esforços empreendidos pelos diferentes países e sistemas para atenuar a problemática do acesso à Justiça.

“Aprendemos com todas essas pesquisas algo que nem todos os professores de Direito gostam de dizer: os juízes e a lei seguem o poder político e social. Não podemos esperar, no entanto, que os juízes sejam ativistas pelos direitos da sociedade, a não ser que os outros ramos do Poder Público sejam ilegítimos. (…) O estudo sobre o Judiciário brasileiro parece confirmar isso: entre muitas outras descobertas, não parece haver qualquer tipo de consenso sobre ultrapassar as decisões do parlamento para reforçar direitos. (…) A ênfase no relatório é o respeito ao Estado de Direito”, ressaltou Garth em seu discurso, livremente traduzido.

Segundo o acadêmico, atualmente ocorre no mundo um renascimento das discussões sobre acesso à justiça e sobre a retomada das políticas de bem-estar social para a redução das desigualdades. “Precisamos de formas para incluir e apoiar os que foram deixados de lado pela atual era da globalização. Talvez haverá um novo papel afirmativo para os tribunais se houver novas políticas de inclusão”, especulou Garth.

Acesso à Justiça – Ao comentar a conferência magna, o Ministro Luiz Fux confessou “plágio” por ter usado, quando foi presidente da comissão que elaborou o anteprojeto do Código de Processo Civil (CPC/2015), o mesmo processo organizativo indicado por Garth e Cappelletti: “Usamos exatamente a mesma metodologia do Projeto Florença. Recebemos contribuições da sociedade, absorvemos várias dessas contribuições, primeiramente trocamos ideias e depois transformamos essas ideias em dispositivos”.

  A respeito do foco do Projeto Florença na atenção dispensada aos desvalidos, acrescentou Fux: “A essência primária é exatamente tornar acessível a Justiça às pessoas pobres. Daí o surgimento dos nossos Juizados Especiais, que nada mais são do que uma reflexão das experiências relatadas no Projeto Florença sobre tribunais de vizinhança de países europeus, sobre as small claims nos Estados Unidos, sobre os tribunais de camaradas nos países comunistas, ideias movidas por solidariedade e ética”.

Sobre o perfil da magistratura, Luiz Fux afirmou que os magistrados devem ser “olimpicamente independentes, exercer seu dever com conhecimento enciclopédico e nobreza de caráter”, além de serem capazes de fazer “uma justiça caridosa e uma caridade justa”. Ele ilustrou essa concepção com a imagem impressa na capa de uma das edições do clássico “Eles, os juízes, vistos por nós advogados”, de Piero Calamandrei. Na imagem, uma balança equilibra em seus pratos uma rosa e um volumoso código. “A balança pende exatamente para a rosa, porque exige-se do juiz, antes das frieza da lei, a caridade humana e a poesia”, finalizou o ministro. 

Direito acima da moral – Outro destaque da programação foi a palestra do professor emérito da Emerj, Lênio Streck, que também citou o italiano Calamandrei. “No capítulo 7º do seu famoso livro, Calamandrei diz que no sistema da legalidade, a Justiça deve ser rigorosamente separada da política. Já é bem uma chinelada. (…) No capítulo 1º, diz que o juiz é uma caixa de surpresas. Não posso concordar com ele, porque a grande questão é buscarmos a maior previsibilidade possível, mas Calamandrei era homem do seu tempo. Sempre se dizia que de barriga de mulher, da urna e da cabeça de juiz não se sabe o que pode sair. Hoje já sabemos o resultado da eleição antes do final, já sabemos o sexo do bebê antes do nascimento. Será que o juiz ficou para trás? Não conseguimos ter a mínima previsibilidade?”, questionou o jurista.

Para Streck, o ativismo é sempre negativo e os magistrados nunca devem colocar seus pressupostos morais acima do Direito positivado nas leis. Direito não é sociologia, não é filosofia. Se forma com a moral, com a sociologia e com a ciência política, mas na hora de aplicar, se você corrigir pela moral, não é mais Direito e não há mais democracia”, afirmou.

Farol – Com apoio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o evento teve coordenação científica do Ministro Luis Felipe Salomão, do Desembargador André Gustavo de Andrade e do Desembargador do TJRJ Agostinho Teixeira de Almeida Filho. O Ministro Salomão acumula a coordenação da pesquisa com a vice-presidente da AMB, Juíza Renata Gil, e os sociólogos da PUC-Rio Luiz Werneck Vianna, Maria Alice de Carvalho e Marcelo Burgos.

“É um passo que damos para que essa pesquisa seja uma contribuição da magistratura à elaboração de políticas públicas relacionadas ao Poder Judiciário. Estamos em uma virada importante da concepção de Direito nesse mundo das novas tecnologias. Exatamente nesse momento, essa pesquisa ganha relevo como se fosse um farol a guiar o barco em meio ao nevoeiro”, comentou o Ministro Salomão.

“A pesquisa sublinha a defesa do Direito autônomo e o governo de leis. (…) É um tema que está imposto socialmente pelos caminhos novos que a sociedade quis percorrer e está percorrendo agora. O lugar da defesa dos direitos autônomos é esse aqui. Se isso cai, cai tudo junto, as liberdades, a democracia. Temos que defender. Essa pesquisa, que agora se dirige a vocês magistrados, como algo que não mais pertence a nós pesquisadores, tem essa pretensão de ser um marco de defesa do Direito autônomo no País”, acrescentou Werneck Vianna.

Juízes na mitologia e na literatura

O jurista Lênio Streck ressaltou que a literatura sempre buscou modelos de juízes como, por exemplo, o juiz Asdak, da peça ‘O círculo de giz caucasiano’, de Bertold Brecht; o positivista Ivan Ilitch, personagem de Liev Tolstoi; ou Blanco Nocturno, o hermeneuta imaginado por Ricardo Piglia. O primeiro registro literário é o da juíza Palas Atena, encarregada do mitológico julgamento da “Oresteia”, clássico do grego Ésquilo.

“Quando Orestes mata a mãe e vai a júri, é absolvido com base no primeiro in dubio pro reo. Param as vinganças e triunfa o Direito. Há um combo na Oresteia. Você aprende Teoria do Direito, Processo e Direito Constitucional, porque o julgamento se torna o remédio contra as maiorias. As erínias, as deusas da vingança – que hoje se mudaram para o Facebook – querem o sangue de Orestes. Palas Atena faz um acordo de líderes com as erínias, que aceitam o resultado e a vingança para. Os juízos morais são trancados pelo Direito. Se os alunos aprenderem que o Direito vale mais do que a moral, eles já começam a saber que aquilo é uma faculdade de Direito e não de teoria política”, pontificou Lênio Streck .

À lista de livros que podem ajudar os estudantes de Direito a entender as diferenças entre “o positivismo do Século XIX e o voluntarismo do Século XX”, Streck acrescentou “Antígona”, de Sófocles, “O nome da rosa”, de Umberto Eco, “As viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift, “Alice através do espelho”, de Lewis Carroll, e “Medida por medida”, de William Shakespeare.