A mulher e o Direito

7 de março de 2020

Viviane Girardi Vice-Presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP)

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O mês de março de cada ano nos remete a pensar a respeito da mulher, do seu papel, das conquistas por serem alcançadas e da inegável contribuição feminina à nossa sociedade. Neste momento, imerso em seus problemas e idiossincrasias, o Brasil  tem vivenciado a pauta feminina de forma antagônica. Se por um lado sofremos ao ver, tristemente, as mulheres sendo desmerecidas e desqualificadas publicamente pelo nosso Presidente da República (relembre-se, entre tantos outros, da “fraquejada” e do recentíssimo ataque à jornalista); por outro, temos a pauta da igualdade de gênero se fortalecendo em várias instâncias, com políticas reais para o fomento da igualdade que nos é assegurada constitucionalmente.

Buscamos a igualdade de oportunidades, de tratamento e da representatividade feminina na vida pública e na vida privada. E as jovens, mais do que nunca, estão dispostas a essa luta e a essa conquista.
Como cidadã, sinto-me profundamente agredida quando uma mulher simbólica ou em circunstâncias reais tem seu valor como pessoa diminuído, sua dignidade vilipendiada e, sobretudo, seu corpo e sua condição sexual referidos como instrumentos e meios de conquistas. Precisamos vencer essa visão de mundo que joga o Brasil para o passado. O Estado, por meio de políticas públicas, tem papel fundamental na superação das estruturas arcaicas em que a sociedade brasileira foi forjada e que precisam ser erradicadas, para que nós mulheres possamos ter assegurados o tratamento igualitário e o pleno respeito à nossa inerente condição feminina. 

É o patriarcado, estrutura social marcada pela desigualdade de tratamento entre homens e mulheres, que está na base da cultura que ainda atrela a mulher à noção de objeto apropriável – o que fomenta as inúmeras formas de violência física e psicológica presentes em nosso cotidiano. Os jornais não nos deixam mentir, tampouco dormir em paz, com os assustadores números da violência doméstica, forma bárbara de representação do machismo, de norte a sul do País, e que não escolhe cor ou classe social. Na contramão da igualdade de gênero estão também os efeitos do patriarcado que delimitam os espaços e os lugares a serem ocupados pelas mulheres, cabendo aos homens a vida pública e a nós a vida privada e a subordinação.

Apesar da Constituição Federal garantir o tratamento igualitário às mulheres, é fato que a desigualdade está presente nos ambientes de trabalho, na vida pública e na família. A diferença de remuneração, o assédio moral e sexual e os obstáculos de acesso aos postos de chefia relegados às mulheres são verificados em todas as instâncias, da iniciativa privada ao funcionalismo público. A ausência de mulheres que nos representem na política aprofunda a desigualdade, porque as pautas femininas não conseguem avançar e a lógica eminentemente masculina e excludente acaba se reproduzindo. Por sua vez, os trabalhos domésticos e os cuidados dos filhos relegados exclusivamente às mulheres importam na dupla jornada de trabalho e nos inequívocos prejuízos à realização e ao crescimento profissionais. Dessa realidade não escapa o universo jurídico.

 Myrthes Gomes de Campos, primeira mulher a exercer a advocacia no País, se bacharelou, não sem resistências, em 1875, e só teve seu diploma autenticado com a ajuda do colega advogado Visconde de Ouro Preto, e cujo pedido de reconhecimento pela Corte de Apelação do Distrito Federal – necessário para exercer a profissão – também enfrentou obstáculos sob o argumento de que a advocacia não seria ofício para mulher. Mas Myrthes, já dando mostras do aguerrido espírito da advocacia, seguiu com o processo e mais de duas décadas depois, em 6/07/1899, a Comissão de Justiça, Legislação e Jurisprudência forneceu o aval necessário.

Desde Myrthes foram necessários 55 anos para que, em 1954, em Santa Catarina, Thereza Grisólia Tag fosse empossada como a primeira juíza; e mais 46 anos se passaram para que tivéssemos uma mulher no Supremo Tribunal Federal, feito que coube à Ministra Ellen Gracie, em 2000, não sem a constatação “real e simbólica” do despreparo do Poder Judiciário para a nossa presença, dado que não havia banheiros femininos nos recintos ocupados pelos ministros. Atualmente, somos cerca de 500 mil advogadas registradas na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e estima-se que nesse ano de 2020 ultrapassaremos os advogados homens. Porém, a igualdade real ainda está em marcha. Nos departamentos jurídicos de empresas, as chefias são predominantemente masculinas, fato que se repete na quase totalidade dos escritórios de advocacia.

Essa realidade é fruto da então escassa presença feminina nos quadros da OAB, mas, sobretudo, da concepção hierárquica do masculino sobre o feminino, o que igualmente se reflete na odiosa desigualdade salarial. Historicamente, as estruturas do Direito, desde as universidades até os órgãos do Poder Judiciário, passando por nossos órgãos de classe, são ocupadas majoritariamente por homens – o que faz com que não nos sintamos plenamente representadas. Esse quadro tem dias para acabar dado o crescente número de alunas em faculdades de Direito, em concursos públicos e na advocacia, mas, nesse ritmo orgânico e sem políticas voltadas para a erradicação da desigualdade de gênero, sacrificaremos muitas gerações até que possam dizer que o Brasil cumpre com o comando constitucional da plena igualdade entre homens e mulheres.