Edição

A multipropriedade

6 de maio de 2019

Membro do Conselho Editorial e Desembargador aposentado do TJERJ

Compartilhe:

Finalmente, embora com lamentável atraso, foi o condomínio em multipropriedade reconhecido e regulamentado com o advento da Lei no 13.777, de 20 de dezembro de 2018. Era inconcebível que o Brasil, com suas inesgotáveis potencialidades turísticas, tanto tempo resistisse para adotar esta modalidade de condomínio, já praticada em muitos outros países, com excelentes resultados sociais e econômicos.

Cidades litorâneas e estações climáticas, principalmente, serão as mais beneficiadas, já que o sistema de multipropriedade elimina a “segunda casa” que muitos brasileiros costumam manter nestas localidades, mas que permanecem desocupadas na maior parte do ano, não gerando empregos ou aquecendo o comércio e as atividades de prestação de serviços.

Inúmeras famílias que antes não podiam manter isoladamente outro imóvel para desfrutar as suas férias ou momentos de lazer e confraternização, poderão agora fazê-lo, e ainda com a vantagem adicional de não precisarem se preocupar com a segurança, manutenção e permanente conservação do imóvel, o que ficará a cargo da administração do condomínio.

O que se partilha, na verdade, é o tempo, dividido em frações pelos condôminos, para que cada um deles possa usar e gozar o imóvel, com exclusividade, e na sua totalidade, durante o período que lhe cabe. Cada fração temporal inclui as instalações, equipamentos e mobiliário necessários a normal utilização, sendo indivisível e não podendo ser inferior a sete dias.

Tal como acontece nos condomínios edilícios, a multipropriedade será constituída por ato entre vivos ou testamento, registrado no Registro de Imóveis, sendo facultado aos condôminos elaborar uma convenção e o regulamento interno, para disciplinar e ordenar o uso do imóvel e seus direitos e deveres.

Releva notar que o condômino poderá ceder sua fração de tempo em locação ou comodato, se não lhe interessar desfrutá-la, assim como aliená-la, onerosa ou gratuitamente, não se estabelecendo, na lei, direito de preferência para os demais condôminos. Isto alavancará outros mercados econômicos, como os da locação, construção civil e de seguros, que estão interligados.

A administração da totalidade do imóvel, inclusive suas instalações, equipamentos e mobiliário será feita pela pessoa indicada no instrumento de constituição, ou, na sua falta, por aquela eleita pelos condôminos. Exige a lei, o que nos parece acertado, que o condomínio edilício em que tenha sido instituído o regime de multipropriedade terá necessariamente administração profissional, que poderá ser exercida por empresa hoteleira, a qual também ficará encarregada de alugar a unidade, na fração de tempo que o seu titular não quiser utilizá-la.

Incumbe a cada condômino contribuir para a conservação e administração das áreas comuns, equipamentos e mobiliário, na proporção da quota de sua fração de tempo, sendo que no inadimplemento desta obrigação é cabível, na forma da lei processual civil, a adjudicação ao condomínio da fração de tempo correspondente. Equiparam-se aos multiproprietários os promitentes compradores ou cessionários das frações de tempo, o que facilitará as suas alienações.

Alguns empreendimentos no Brasil já adotaram o sistema de multipropriedade, mas ainda timidamente, em razão da ausência de legislação específica, aplicando-se, diante da omissão, as regras atinentes ao condomínio edilício. Carecia-se, portanto, de segurança jurídica para os multiproprietários, que não dispunham, individualmente, de um título registrável. Prova eloquente do atraso na adoção do sistema em nosso pais nos é dada pelas estatísticas, que mostram, só para citar um único exemplo, que na Itália, com área muitas vezes menor que a do Brasil, existem mais de cinco mil empreendimentos adotando a multipropriedade, e já há décadas, enquanto que aqui ainda não passam de 500, e, assim mesmo, sem disciplina legal.

O que durante tanto tempo impedia o reconhecimento da multipropriedade e seu registro no cartório imobiliário era o apego ao princípio da taxatividade dos direitos reais, que não incluía, no seu elenco, as frações de tempo. O obstáculo foi removido, quando a Lei no 13.777/2018 alterou o art. 176 da Lei no 6.015/1973, dos Registros Públicos, para nele incluir o § 10, segundo o qual quando o imóvel se destinar ao regime de multipropriedade, além da sua matrícula principal, haverá ainda uma outra para cada fração de tempo, na qual se registrarão e averbarão os atos a elas referentes e seus respectivos titulares. Também se prevê que cada fração de tempo poderá, em função da legislação tributária municipal, ser objeto de inscrição imobiliária individualizada, o que elevará sua arrecadação.

Como se vê, passamos a ter, na verdade, um condomínio físico-temporal, que melhor atende ao princípio da função social da propriedade, permitindo o seu acesso a um número muito maior de pessoas.

Parece-nos evidente que, como tudo que é novo, a implantação da multipropriedade poderá gerar dificuldades de adaptação, na convivência entre os multiproprietários e no dever de conservar a unidade, no seu período de uso, além de não poder ultrapassar a fração de tempo que lhe compete ou dificultar seu uso pelos demais. Outro desafio a enfrentar é que no lançamento e organização do empreendimento deverá haver concentração de escolha das frações de tempo durante o período de férias escolares ou de verão, especialmente nas cidades litorâneas. Embora a lei não o diga, entendemos que se possa estabelecer valores diferenciados, não em razão da área da unidade, e sim do período de tempo escolhido pelo adquirente.

O que nos parece estimulante, intelectual e socialmente, é que o direito imobiliário se renova, abrindo diferentes perspectivas e modelos, sempre no propósito de ampliar os princípios que vieram oxigenar a ordem jurídica brasileira, abrindo grande janela para nova dimensão ética e social. Em período muito curto, de pouco mais de um ano, surgiram o direito real de laje, o condomínio de lotes, o condomínio urbano simples e os planos de regularização fundiária urbana e rural, aos quais agora vem se somar a multipropriedade.

Como consequência inevitável é preciso que os profissionais do Direito se mantenham atualizados, decifrando as densas mensagens que emanam destes novos tempos, para que os instrumentos agora criados produzam os resultados desejados pelos sonhos e ideais que os inspiraram. Temos certeza que a comunidade jurídica saberá enfrentar e vencer estes novos desafios.