A OAB e o TCU

5 de janeiro de 2004

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A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) precisa ou não ter suas contas aprovadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU)? Essa questão antiga voltou à tona nos últimos tempos e está a merecer um definitivo esclarecimento. Afinal de contas, a entidade não pode deixar nenhuma dúvida a respeito de sua atuação perante a sociedade.

Há princípios fundamentais abrigados nas seguidas Constituições democráticas brasileiras que devem ser rigorosamente respeitados, para se ter um verdadeiro Estado democrático de direito. Dentre esses princípios, as Constituições brasileiras têm inserido o respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada.

Dentro dessa ótica, a matéria posta perante o TCU – submissão da OAB àquela corte de contas – estava, como está, sob o manto da coisa julgada. Nesse sentido, manifestaram-se e vêm se manifestando os mais proeminentes juristas deste país. O ministro Ubiratan Aguiar, relator do processo, em determinado momento, se amparou em profundo, fundamentado e irrespondível relatório para demonstrar, às escâncaras, que se tratava de matéria vencida. Depois de mais de 10 anos de vigência da atual Constituição, retornou à análise da corte, sem que tivesse havido, ao longo dos mais de 70 anos de vida da OAB, nenhuma alteração sobre os motivos que fundamentaram o julgamento da década de 50. Naquela ocasião, o Poder Judiciário, após ampla discussão, julgou descabida a vinculação da OAB à obrigação de prestar contas ao TCU. A pretensão, que se julgou agora, é a mesma; as partes são as mesmas; as razões da exigência continuam as mesmas.

O que se pretendeu no processo atual, sem que houvesse razão plausível para tanto, foi simplesmente rediscutir a decisão judicial de 1951, transitada em julgado. O respeito à coisa julgada, por força constitucional, tem por objetivo a segurança jurídica da sociedade, sem a qual inexiste a paz social, estiolando-se os princípios democráticos. Como diz o mestre constitucionalista José Afonso da Silva, qualquer ato normativo ou judicial que se aplique em caráter retroativo, para atingir a coisa julgada, é repugnante, ”porque fere situações jurídicas que já se tinham por consolidadas no tempo, e esta é uma das fontes principais de segurança do homem na terra”.

A indagação que, agora, fica no ar é: por que, depois de meio século de uma situação jurídica consolidada e após 10 anos de vigência da Constituição de 1988, a Procuraria Geral do TCU, mesmo contra pareceres da unidade técnica da referida corte, tenta reavivar tal matéria? Qual a razão? A perplexidade da ausência de um motivo jurídico sério revela-se ainda mais acentuada ao se saber que o próprio TCU, recentemente, baixou a instrução normativa 042, de 3/6/02, estabelecendo que ”as entidades de fiscalização do exercício profissional estão dispensadas de apresentar a prestação de contas anual ao tribunal, sem prejuízo da manutenção das demais formas de fiscalização”.

Há mais: a lei 8.906, de 4/7/94, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a OAB, além de evidenciar que a Ordem não é uma simples entidade de fiscalização do exercício profissional, possuindo relevantes finalidades institucionais que a tornam a vanguardeira na defesa da sociedade, especialmente contra os detentores do poder público, declara, de forma expressa, a total independência da OAB em face do poder estatal.

Ressalte-se que a situação jurídica da OAB é peculiar, como reconhecido, de longa data, pelo Judiciário e pelas lições dos mais consagrados mestres de direito. A Ordem, diferentemente dos demais conselhos e entidades sindicais, detém um conceito constitucional e legal mais amplo, ultrapassando a condição de mero ente de fiscalização profissional. Sua atividade institucional e os misteres constitucionais que lhe são outorgados impõem sua desvinculação dos órgãos da administração pública.

Informe-se, porém, que a OAB está sujeita, nos termos da lei, a normas específicas no que tange à prestação de suas contas. É tão rigoroso esse procedimento que a simples rejeição episódica das contas de um seu dirigente acarreta a ele a pena definitiva de sua exclusão dos quadros diretivos da entidade, tornando-o inelegível a qualquer um de seus cargos, sem prejuízo de outras medidas cabíveis em cada caso, até de natureza penal.   A OAB não tem nada a temer nem quer refresco. Quer a manutenção dos princípios básicos, fundamentais, da Constituição; defende o cumprimento da norma positiva constante de lei vigente; quer respeito à sua trajetória democrática para, com independência, agir como sempre tem agido na defesa da sociedade. As contas da Ordem estão à disposição de todos. Nada há a ocultar. Mas, como foi dito, a OAB não abre mão de sua independência da administração pública. Só assim poderá preservar a grandeza cívica e a identidade, a posição de entidade civil de maior respeito no país.