A paridade de gênero nos espaços de decisão da OAB e os seus impactos no sistema de justiça

16 de agosto de 2024

Christiane Leitão Advogada / Membro do IAB

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Ao longo de quase um século de existência, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) tem evoluído bastante através da atualização permanente de seu escopo de atuação,  acompanhando, como não poderia deixar de ser, as transformações por que passam a advocacia e a sociedade brasileiras, em permanente processo de aggiornamento  de sua tradição de lutas democráticas, pautando suas ações, agora como nunca antes, pela promoção e afirmação da equidade de gênero, respeito à diversidade e combate a todas as formas de discriminação em suas variadas interseccionalidades.

Em meio a um cenário marcado por profundas desigualdades sociais e de gênero, muitos são os retrocessos que com frequência ameaçam fazer ruir as pilastras sobre que se funda o estado democrático de direito, construção histórica que tem por finalidade precípua a busca incessante do bem comum, da justiça como equidade, no dizer de John Rawls, sem o que não se há que falar em liberdades e direitos fundamentais. É quando a advocacia, muito mais que uma profissão liberal, desempenha um papel central na construção e preservação do ideal de democracia e dos valores que a informam.

Conhecer a advocacia, suas realidades, peculiaridades regionais, de áreas de atuação profissional e de gênero, atender às suas demandas, consideradas todas essas especificidades, quando se tem um país tão diverso e que conta com quase um milhão e quatrocentos mil advogados e advogadas, é tarefa a desafiar os dirigentes de Ordem. A hora é de buscar, tanto no âmbito do Conselho Federal da OAB como na esfera das gestões das seções estaduais, implementar políticas eficazes para o fortalecimento de uma classe cada vez mais plural, feminina e, necessário admitir, proletarizada. Uma advocacia forte e respeitada é condição essencial para o exercício pleno da cidadania e fator de aperfeiçoamento das instituições jurídico-políticas de uma sociedade.

Os recentes dados colhidos pelo 1° Estudo Demográfico da Advocacia (Perfil ADV) são indicativos da pluralidade e diversidade da advocacia brasileira. Identifica-se uma maioria feminina, expressivo número de profissionais com atuação no interior do País e um grande percentual de advogados em início de carreira, é dizer, com até cinco anos de inscrição nos quadros da Ordem.

Essa radiografia da advocacia brasileira concorre para auxiliar e aprimorar a compreensão quanto à atuação dos profissionais da advocacia nos dias de hoje. Dela ressalta a importância da luta por respeito às prerrogativas da advocacia; a necessidade do empreendimento de ações em defesa da fixação de honorários advocatícios em patamares justos e dignos, da construção de políticas permanentes de incentivo aos advogados e advogadas que se iniciam na profissão e a valorização da advocacia que se pratica fora das capitais.

A quantidade de inscritos nos quadros da Ordem reflete a democratização do acesso ao ensino superior e a proliferação de cursos de Direito no Brasil. Diante desta realidade, a preservação da qualidade do ensino jurídico é um dos mais sérios desafios que se impõe à OAB, visto que todo o sistema de justiça será impactado por essa tão complexa e muitas vezes adversa realidade, assumindo o nosso exame de Ordem caráter de imprescindibilidade, devendo ser tratado com cuidado e profissionalismo.

O contexto social de nascimento da advocacia no País e de suas instituições ainda retrata traços de assimetrias sociais que remontam ao patriarcado e ao machismo estrutural, marcas ainda presentes em nossa sociedade. Pela primeira vez na história, em 2021, o número de advogadas superou o número de advogados nos quadros da OAB, até então uma entidade de classe eminentemente masculina.

Os dados mais recentes – de 2023 – apontam para o percentual de 51,43% de mulheres inscritas nos quadros da advocacia nacional e convidam a desenvolver um olhar diferenciado, moderno, sobre a advocacia, agora sob o viés da perspectiva de gênero, contingências de um novo momento histórico, em que o protagonismo feminino na advocacia e nas suas entidades de representação se impõe. Pela quantidade e pela qualidade.

É certo que o processo de feminilização da advocacia deverá provocar a efetiva apropriação da carreira jurídica liberal pelas mulheres. Esse aumento feminino vem sendo sentido há alguns anos e se materializou em março de 2020, quando foi realizada na cidade de Fortaleza a CEa III – Conferência Nacional da Mulher Advogada, evento que reuniu mais de três mil advogadas de todo o País em três dias de profundas discussões sobre a pauta da advocacia feminina, suas especificidades, dificuldades, anseios e luta pela valorização e resguardo de suas prerrogativas.

Esses dias de conferência ficaram gravados com a forte carga simbólica que o evento gerou e são rememorados até hoje como um dos maiores eventos já realizados pela advocacia nacional, importante frente de batalha pela igualdade de gênero e contra a discriminação da mulher. 

Não sem razão. O processo deflagrado na Conferência culminou com a publicação da Resolução 05/20, do Conselho Federal da OAB, que alterou o Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB, estabelecendo o percentual obrigatório de 50% de mulheres em todas as chapas que pretendam disputar eleições para a direção da OAB, bem como a inclusão da política de cotas raciais para negros (pretos e pardos), no percentual de 30%.

A advocacia brasileira assistiu, menos de um ano após a edição da Resolução 05/2020, a que fossem sagradas vitoriosas no prélio eleitoral de novembro de 2021 nada menos que cinco mulheres advogadas eleitas presidentes de seccionais, representando assim mais de 43% da advocacia brasileira.

Protagonizamos um momento histórico, de mudança de paradigmas na advocacia e na política de classe, tradicionalmente um locus masculino. Um ponto de inflexão, sem retorno possível.

Esse sentimento de participação e concretização de direitos tem se espalhado pela sociedade, pelas instituições, pelas carreiras jurídicas. Exemplos temos nas ações promovidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário. 

O sistema de fomento à equidade de gênero nasceu por meio da Resolução 255/2018 – CNJ e estabelece um elenco de diretrizes para asseguração de espaços às mulheres em todas as esferas da Justiça. Estabeleceu ainda o CNJ a paridade de gênero para ascensão de magistradas aos tribunais de 2° grau, fazendo-o através da Resolução 525/2023, outro grande avanço rumo à igualdade e, sobretudo, à garantia de efetiva representação feminina nos tribunais.

O avanço da participação feminina nas Cortes Superiores, apesar de tímido ainda, é perceptível nas cúpulas dos principais órgãos do sistema de justiça brasileiro, que já teve Raquel Dodge, como procuradora-geral da República (PGR); Grace Mendonça, como advogada-geral da União; Rosa Weber e agora Carmen Lúcia, que já presidiu o Supremo Tribunal Federal, como presidentes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e no Superior Tribunal de Justiça destacam-se, entre outras igualmente valorosas, as ministras Nancy Andrighi, Laurita Vaz e Daniela Teixeira – esta última a baluarte da luta pelas prerrogativas de advogadas gestantes e mães em sua atuação forense, o que redundou na Lei 13.316/2016, a chamada Lei Júlia Matos. 

De fato, segundo o Relatório da Participação Feminina do CNJ de 2023 (ano-base 2022), as mulheres ainda são minoria entre juízes, representando 38% do total, com expressiva diminuição nos postos mais altos da carreira. Na distribuição por tipo de Justiça, de todas as instâncias, a presença feminina é maior na Justiça do Trabalho, chegando a quase metade (47%).

Em um tal cenário, cresce a nossa responsabilidade, como militantes da política classista, quanto à necessidade de maior engajamento social na luta pela promoção e afirmação dos direitos da mulher, provando a força e a bravura da mulher brasileira, da advogada brasileira, em especial nestes tempos de avanço da agenda misógina no País, aviltante da condição feminina, criada uma ambiência social em que vêm aumentando exponencialmente os casos de violência contra a mulher.

Numa democracia digna do nome, as diferenças hão de ser não só respeitadas como valorizadas; uma sociedade em que todos e todas possam desenvolver as suas potencialidades, vivendo como lhes faz bem, na medida em que não avancem sobre o patrimônio jurídico do outro.

A palavra de ordem agora é inclusão. Advocacia, Ordem: palavras femininas.

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