Edição 272
A participação feminina no Poder Judiciário
5 de abril de 2023
Adriana Ramos de Mello Desembargadora do TJRJ / Professora do Mestrado da Enfam
Mariana Rezende Ferreira Yoshida Juíza de Direito do TJMS/ Vice-Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Direitos Humanos e Acesso à Justiça da Enfam
A Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres, realizada em Pequim em 1995, intitulada “Ação para a igualdade, o desenvolvimento e a paz”, representa um marco na luta pela igualdade de gênero, contendo 12 temas prioritários, dos quais um dos mais relevantes é justamente sobre as mulheres no poder e na liderança. A noção de transversalidade de gênero, princípio que embasou a Conferência, prevê a participação das mulheres em todas as áreas políticas e públicas, mas o tema ainda é uma pauta pendente no Brasil. As mulheres sempre foram excluídas das tomadas de decisão e dos espaços públicos. Esse documento internacional define uma “justiça de gênero” e a adoção de medidas estratégicas para a garantia da participação das mulheres em todos os espaços públicos e privados, incluindo os mais altos cargos de direção dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
O principal documento internacional de direitos humanos das mulheres, no entanto, é a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1979, assinada pelo Brasil em 1981 com reservas quanto à igualdade entre homens e mulheres no casamento. Em 2002, tais reservas foram retiradas e a Convenção enfim passou a vigorar em sua integralidade. Trata-se do instrumento convencional com o segundo maior número de adesões no sistema internacional e possui um amplo espectro antidiscriminatório em favor das mulheres, na medida em que não só tipifica essa espécie de discriminação, mas também a proíbe e prevê medidas para enfrentá-la.
De acordo com a CEDAW, discriminação contra a mulher significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo (art. 1º).
No âmbito da Constituição Federal de 1988, o princípio da igualdade de gênero está previsto logo no art. 5º, I, ao estabelecer expressamente a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres. Ao longo do seu texto, previu a adoção de ações afirmativas para a especial proteção das mulheres na maternidade, no mercado de trabalho, na previdência, na propriedade rural e na família. E, com a previsão do art. 5º, §2º e §3º, da Constituição Federal, incorporou a CEDAW ao ordenamento jurídico pátrio na posição mínima de norma supralegal.
Portanto, há realmente vasto arcabouço normativo vigente há pelo menos 41 anos que garante a homens e mulheres, da forma mais ampla possível, igual acesso a todos os cargos do Poder Judiciário brasileiro.
Não obstante, os dados relativos à participação feminina no Poder Judiciário revelam um quadro de absoluta desigualdade. Levantamento de 2018 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontou que as magistradas representam somente 38,8% de todo o quadro e no recorte por cargos, são 19,6% dos ministros e das ministras, 25,7% dos desembargadores e das desembargadoras, 39,3% dos juízes e das juízas titulares e 45,7% de juízes e juízas substitutos e substitutas. Só a análise desses dados indica que, além de serem franca minoria na carreira, as magistradas enfrentam maiores dificuldades para ascender aos cargos de maior hierarquia, ou seja, está-se diante do fenômeno chamado teto de vidro, que se caracteriza pela “barreira invisível que dá a ilusão de igualdade de oportunidades na carreira, mas bloqueia o acesso às posições elevadas da hierarquia profissional. […] Esse bloqueio não pode ser superado apenas pelo tempo, sem mudanças na distribuição desigual de poder profissional e nas relações entre homens e mulheres no âmbito da casa”.
Outros estudos corroboram essa conclusão. Entre 2011 e 2015, somente cerca de 29% das presidências, vice-presidências e corregedorias foram ocupadas por desembargadoras. Em 2021, nos cargos de juízes e juízas auxiliares das presidências e corregedorias dos Tribunais de Justiça, as magistradas representavam pouco mais de 24% e 34,3%, respectivamente. No CNJ, desde a criação do órgão até julho de 2022, elas somaram um histórico de somente 20% em todas as composições. Nesse cenário, também foram identificadas pelo menos oito barreiras invisíveis para as juízas serem promovidas a desembargadoras: 1) ingresso; 2) maior afetação da vida pessoal pelo exercício do cargo; 3) mais oportunidades de ascensão perdida em razão de papéis de gênero; 4) discriminação interseccional; 5) atitudes discriminatórias; 6) maior grau de dificuldade no exercício do cargo; 7) menos indicação para cargos com critérios subjetivos de ocupação; e 8) promoção, especialmente por merecimento.
Já temos, portanto, um diagnóstico acerca da discriminação que as mulheres enfrentam em suas carreiras no Poder Judiciário brasileiro. O que não há, todavia, são medidas concretas para corrigir essa desigualdade, como ponderado no início do texto. Inspirações não faltam. Além das sugestões contidas na Plataforma e Declaração de Pequim, ouvidas a respeito, cerca de 80% das magistradas apontaram que se faz necessária a adoção de medidas para assegurar a maior participação feminina nos tribunais, dentre as quais a participação feminina nas bancas de concurso (90,3%), oportunidades de assumirem cargos na administração dos tribunais (89,9%); atuação efetiva dos comitês e grupos de estudos destinados a incrementar a participação feminina na magistratura (89,8%); estímulo à produção científica feminina (88,8%); realização de eventos e campanhas para alterar a cultura institucional e chamar a atenção para a questão da representatividade feminina (88,2%); participação feminina nas mesas de eventos das escolas judiciais (87,9%) e oportunidades suficientes para as magistradas atuarem nas escolas judiciais como professoras/palestrantes (87,1%); nomeação paritária de magistradas para os cargos de alto escalão da carreira, inclusive com reserva de vagas destinadas às mulheres nesses espaços (77,5%); treinamento e capacitação que permitam às mulheres a preparação para assumirem cargos na administração dos tribunais (76,6%); e política de cotas de gênero (54,8%).
Portanto, o que se espera do Estado brasileiro é que finalmente dê concretude ao postulado da igualdade e das obrigações que assumiu perante a ONU em 1981 e com a promulgação da Constituição Federal de 1988, garantindo a participação igualitária de mulheres e homens na vida política e na tomada de decisões, o que refletirá de maneira mais adequada a composição da sociedade, contribuindo para o desenvolvimento, o fortalecimento da democracia e da paz.
Notas___________________
1 BRASIL. Decreto nº 4.377/2022. Promulga a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, e revoga o Decreto nº 89.460/1984. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 13/92022. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4377.htm. Acesso em: 27/72022.
2 PIOVESAN, Flávia. “Direitos humanos e o Direito Constitucional internacional”. 13ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012. pp. 268-269.
3 Ibid.
4 BONELLI, Maria da Gloria; BARBALHO, Rennê Martins. “O profissionalismo e a construção de gênero na advocacia paulista”. Sociedade e Cultura. V. 11, nº 2. Disponível em: https://doi.org/10.5216/sec.v11i2.5287. Acesso em: 22/11/2021. p. 277.
5 FRAGALE FILHO, Roberto; MOREIRA, Rafaela Selem; SCIAMARELLA, Ana Paula de Oliveira. “Magistratura e gênero: Um olhar sobre as mulheres nas cúpulas do Judiciário brasileiro”. E-cadernos CES [on-line], v. 24, 2015. Disponível em: http://journals.openedition.org/eces/1968. Acesso em 21/12/2020.
6 LOBO, Marcela Santana; YOSHIDA, Mariana Rezende Ferreira; MELLO, Adriana Ramos de. “(Des)Igualdades de gênero no âmbito dos Tribunais de Justiça no Brasil: Um estudo sobre os cargos de juízes e juízas auxiliares”. Revista Themis, Fortaleza, v. 19, nº 2, pp. 265-292, jul./dez. 2021. Disponível em: http://revistathemis.tjce.jus.br/index.php/THEMIS/article/view/857/pdf. Acesso em 26/5/2022.
7 ESCOLA NACIONAL DE FORMAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO DE MAGISTRADOS (Brasil). “A participação das magistradas no Conselho Nacional de Justiça: Números e trajetórias”. Brasília, DF: Enfam, 2022. Disponível em: https://www.enfam.jus.br/wp-content/uploads/2022/11/Relatorio-Parcial-FINAL-14NOV22.pdf. Acesso em: 26/2/2023.
8 YOSHIDA, Mariana Rezende Ferreira. “Discriminação por motivo de gênero e barreiras no acesso ao segundo grau de jurisdição no Brasil por magistradas de carreira”. 2022. 243 f. Dissertação (Mestrado em Direito e Poder Judiciário) – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, Brasília, DF, 2022.
9 ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS. “Perfil das Magistradas Brasileiras”. Brasília, DF, [2023]. Disponível em: https://www.amb.com.br/wp-content/uploads/2023/03/CPJ_Relatorio-Magistradas-Brasileiras_V3.pdf. Acesso em: 8/32023.