A posição da OAB diante da crise política

5 de outubro de 2005

Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil

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Nesta entrevista que o presidente do Conselho Federal da OAB, Dr. Roberto Busato, concedeu ao diretor da Revista Justiça & Cidadania, Tiago Salles, durante a realização da XIX Conferência Nacional dos Advogados em Florianópolis, ficou evidente que a OAB está alerta e tem se posicionado de forma incisiva em relação à crise política que tomou conta do país. Disse Busato que o Brasil vive uma de suas piores crises e que esta nasceu com as denúncias de um esquema de corrupção feitas por um deputado da própria bancada que dava sustentação ao governo.

“Não tenho dúvida de que o presidente sabia do que acontecia no Palácio. Se não sabia, fica absolutamente provado que ele não tem qualquer aptidão para governar”.

Disse ainda o presidente da OAB que “alguma coisa tem que ser feita no sentido de ‘refundar’ a República”

O Brasil é uma sociedade ainda em transição onde os direitos fundamentais são muito questionados. Como a OAB tem se posicionado e qual deve ser o comportamento dos advogados?

A Ordem tem se posicionado de uma forma muito incisiva em relação à crise política que está graçando no País. Nós entendemos que num momento como este, quando mais se ressalta o viés público do advogado, não se pode exercer a advocacia sendo meio-cidadão. O advogado tem que ser um cidadão por inteiro, e assim tem que se envolver nessas questões porque exerce uma profissão diferenciada. Nós ajudamos a construir a história da República neste país através de atos, não omissões, e os advogados brasileiros sempre tiveram essa posição de participar criticamente da vida republicana do país e na apresentação de soluções que possam melhorar a vida do cidadão brasileiro.

O senhor declarou recentemente que o Brasil vive um dos instantes mais dramáticos de toda sua história e que estamos assistindo a um “strip tease moral”. O que isso significa?

Significa que as coisas estão escancaradas em termos de imoralidades perpetradas por agentes públicos. O Brasil vive uma de suas piores crises (senão a pior) porque, diferentemente das outras, esta nasceu de dentro para fora, não houve um agente exógeno que a despertasse. Ela nasceu fruto de denúncias de um esquema de corrupção feitas por um deputado da própria bancada que dava sustentação ao governo. Tamanha era a relação entre esse deputado e o governo, que o presidente da República afirmou textualmente que daria a esse homem um cheque em branco e iria dormir tranqüilo. Em seguida esse deputado acaba exibindo a podridão dos porões do Palácio. A partir daí começou o strip tease: foi-se tirando cada vez mais a roupa do rei e este, como disse o mesmo deputado, ficou nu. Declarou-se à cidadania brasileira que não só ele como seu governo e seu partido estavam envolvidos num esquema de corrupção absolutamente inédito no Brasil. Mas repito que o que torna grave a crise é a não-existência de um fator exógeno. Não foram as forças de oposição que começaram a crise, e sim o próprio governo. Este a movimentou e a alimentou e continua devendo à população brasileira satisfações de porque não a resolveu. Além disso, não disse até onde ela está enraizada dentro da estrutura do poder.

O senhor acredita que o presidente esteja envolvido?

Não tenho a mínima dúvida de que o presidente sabia do que acontecia no Palácio. Se não sabia, fica absolutamente provado que ele não tem qualquer aptidão para governar. Além de tudo, essa presunção de seu conhecimento se acentua quando observamos as declarações dos membros do Partido dos Trabalhadores, inclusive do próprio Lula, já que eles afirmam que não praticam uma política individual, mas sim coletiva. E sendo uma política coletiva, evidentemente tudo o que fazem é do interesse e conhecimento de todos. O presidente Lula dessa forma estaria mais do que ninguém comprometido até o último fio de sua barba: visto que ele como a maior expressão, fundador, ex-presidente do PT e a cara desse partido deveria saber o que estava acontecendo. O presidente Lula foi conivente com os atos irresponsáveis dos dirigentes de seu partido e, principalmente, os atos irresponsáveis, criminosos e ilegais dos seus próprios ministros, inclusive aquele mais íntimo que é o José Dirceu.

O senhor declarou também que o Congresso Nacional transformou-se em delegacia de polícia. Por quê?

Nós estamos com três CPIs em andamento. Isso realmente transformou o Congresso em qualquer outra coisa diferente de uma casa legislativa. O Congresso está parado. A produção daquilo que lhe coube, que é a formulação de leis e a discussão do processo legislativo brasileiro, está parada. E está atualmente, não só através de três CPIs, mas também da Comissão de Ética da Câmara com sessões diuturnas, mostrando que procura apurar o que houve de errado dentro da casa. Isso é um desvio de função, embora a CPI esteja calcada dentro do ordenamento jurídico e seja um instrumento dos mais saudáveis dentro do Estado Democrático de Direito. Obviamente ela deveria ser um instrumento raro no seu exercício, mas estamos vendo que cada vez mais a CPI vem sendo usada, e de forma inédita. Três grandes CPIs estão sendo levadas a todo o Brasil nesse momento, o que demonstra exatamente a crise de imoralidade em que se encontra o poder legislativo nesse momento.

O senhor apresentou durante reunião do Conselho Federal da OAB proposta pedindo a “reproclamação” da República e uma Assembléia Nacional Constituinte sem vínculos com o Congresso. Por que e como isso se daria?

Nós fizemos no Conselho Federal uma ampla análise da crise institucional brasileira e dissemos que não adiantava ficar apenas nas críticas e que precisávamos ser propositivos. Dividi essas proposições em duas áreas: uma de aspecto imediato e urgente; outra de aspecto mediato, que pudesse aguardar um estudo mais aprofundado. No aspecto imediato, falamos na convocação do Conselho da República para auxiliar o presidente da mesma a debelar a crise política. Entendíamos que esse conselho propiciaria ao presidente um instrumento de credibilidade e resguardo da autoridade moral que deve ter o primeiro mandatário da nação. Dessa forma, nos livraríamos mais rapidamente da crise. Em relação às propostas que poderiam aguardar um melhor estudo, escolhemos a mais radical para mostrar ao Conselho Federal que alguma coisa tem que ser feita no sentido de “refundar” a república. Isso faz parte de um movimento que já havíamos começado em 15 de novembro de 2004, portanto antes de estourar essa crise moral que estamos vivenciando. Escolhi a tese mais radical e profunda para que justamente pudéssemos, a partir daí, verificar aquilo que pudesse servir melhor à população, do máximo para o mínimo. E a tese da Assembléia Nacional Constituinte foi lançada como uma das possíveis soluções para melhorar a condição institucional brasileira. Seria com mandato definido de um ano com aproximadamente 100 pessoas com a missão de escrever parte da nova constituição. Para isso teríamos uma emenda constitucional que delimitaria os campos que essa Assembléia Nacional Constituinte iria de reformar na Constituição de 1988: o prazo definido, o número diferenciado de pessoas com filiação partidária ou não. Assim, teríamos a condição de diminuir o impacto do poder econômico sobre a formulação das regras constitucionais e limitaríamos numa segurança jurídica alguns capítulos que merecem ser reformados.

Isso seria mais um “remendo” à Constituição ou a criação de uma nova Carta Magna?

Nós já estamos com cinqüenta e quatro emendas aprovadas, temos mais de setecentas propostas para conhecimento do Congresso e ainda três mil e quinhentas ações diretas de inconstitucionalidade de leis ordinárias que feriram a Constituição. Tudo isso é o remendo. O que nós queremos é reformar uma parte da Constituição em alguns capítulos para que se acabe com esses curativos baseados em interesses casuísticos de momento.

Quais são os principais projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que tratam sobre a advocacia?

Temos vários projetos. Recentemente tivemos um que alterou o estatuto da Ordem em relação à eleição. Uma lei que foi aprovada em um momento absolutamente anormal dentro do Congresso Nacional, no mesmo dia em que o deputado Roberto Jefferson estava fazendo uma manifestação dentro de uma comissão parlamentar. A Comissão de Constituição e Justiça aprovou a alteração do jogo eleitoral dentro da OAB. Temos vários projetos que tratam do exame da Ordem. Existe um trabalho orquestrado no sentido de fazer com que o exame se extinga, o que é um atentado à democracia brasileira. Se perdêssemos o exame da Ordem, não perderíamos apenas a Ordem dos Advogados do Brasil, o País não perderia apenas uma instituição – a única que está fazendo um contraponto moral e ético em relação ao exercício regular do poder no Brasil -, mas perderíamos inclusive a própria profissão de advogado. Perdendo a profissão de advogado estaríamos comprometendo o Estado Democrático de Direito de forma irremediável. Não se esqueça que temos hoje 500 mil advogados e a cada ano as universidades estão colocando no mercado mais de 120 mil bacharéis. Tudo isso é fruto de uma irresponsabilidade de anos e anos no trato do ensino jurídico, a comercialização chegou a esse descalabro. Hoje o exame da Ordem não quer tolher o exercício da profissão, não visa impedir que se ingresse na Ordem dos Advogados do Brasil, e sim impedir que o incompetente, que o inapto possa levar o cidadão brasileiro a uma aventura jurídica. Visa demonstrar à população a seriedade do trabalho do advogado. Essa é mais uma proteção ao cidadão que se dá através do exame da Ordem. Vemos isso também no concurso púbico, que hoje reprova também em larga escala. Por exemplo, se não tivéssemos o concurso público para a magistratura, com certeza teríamos uma magistratura absolutamente incompetente e inapta, em desserviço à cidadania brasileira.

A justiça no Brasil é considerada muito cara, qual o peso dos honorários nesse custo? O que a OAB tem feito para diminuir o custo judicial?

A OAB defende o acesso amplo da população ao Judiciário, já que somente através dele poderemos diminuir a exclusão social que nos rodeia. O Banco Mundial tem pesquisas que mostram que o dinheiro mais bem gasto para diminuir a miséria e a exclusão social é o utilizado no acesso ao Judiciário. O povo humilde e miserável que tem acesso a esse poder sabe defender seus direitos fundamentais e em conseqüência diminui sua miséria e exclusão. Não é crível que a entidade mais solidária com a cidadania, a advocacia, seja a favor de um aviltamento do cidadão para exercer condignamente seus direitos. Porém, cabe ao Estado propiciar a defensoria pública do cidadão carente que não tem que pagar um centavo de honorários advocatícios. Esse cidadão tem que ter essa assistência condigna por parte do Estado, como tem que ter também saúde pública, ensino fundamental, segurança, emprego, ou seja, tem que ter o respeito a sua dignidade. Portanto, não são os honorários que impedem o acesso ao Judiciário, mas sim a falta de uma estruturação no poder público que dê condições ao cidadão de pleitear um direito fundamental que é o direito de defesa, o de preservar um bem fundamental que esteja em jogo dentro da sua vida em sociedade. Os honorários são cobrados, de acordo com a capacidade do profissional, daqueles que possam pagar e que desejem um profissional capacitado que possa promover sua defesa. Aos carentes cabe ao Estado dar o integral apoio.

O senhor poderia esclarecer quais são os parâmetros para se estabelecer os honorários advocatícios?

O Código de Processo Civil já estabelece os parâmetros e percentuais de honorários e afirma que os mesmos devem ser fixados de forma condigna. O próprio Estatuto de Ética do Advogado também tem regras similares às do Código para que não aja aviltamento e nem excesso. A tônica é essa. Evidentemente que nós não podemos pensar em uma regra fixa para o estabelecimento de honorários para o Brasil todo. Nosso país é um lugar de profundas diferenças entre suas diversas regiões. Sendo assim, os honorários devem ser cobrados com eqüidade, seriedade, razoabilidade e com honorabilidade por parte do advogado. Honorário vem de “honor”, significa honra, portanto a retribuição financeira ao advogado deve ser tratada dentro desse campo. Deve ser feita com moderação, parcimônia, mas também com dignidade. Não podemos admitir nem achaques contra aqueles que precisam do serviço do advogado nem a remuneração indigna ao advogado brasileiro. É entre esses dois extremos que se vai encontrar a justiça na fixação dos honorários dos advogados.

E como medir o resultado do que está sendo pago?

Pela própria satisfação de ver reconhecido o direito fundamental que está em jogo naquele processo. Pela vantagem econômica que advém da vitória, pelo esforço do profissional em defender condignamente o cidadão, já que não é apenas o sucesso o objeto do contrato. A advocacia é uma atividade de meios, não de fins. É como a medicina onde o médico tem direito à percepção de honorários referentes a uma cirurgia independentemente da sobrevivência do paciente enfermo que esteja sofrendo o ato.

Nos EUA existem punições severas quando o advogado erra na cobrança ou quando cobra pelo que não fez, podendo até perder o direito de advogar. Como isso funciona no Brasil?

Da mesma forma o advogado no Brasil também pode perder sua licença por ter cobrado honorários e não ter prestado o serviço. A Ordem é bastante rigorosa nisso e, aliás, o grande número de processos disciplinares que tramitam nas seccionais e no próprio Conselho Federal em grau de recurso é com relação ao uso indevido da cobrança de honorários advocatícios.

O senhor poderia explicar um pouco como são arbitrados os honorários de sucumbência e como se dá seu pagamento? E qual sua opinião a respeito desses honorários nas ações de cobrança e execução de títulos extrajudiciais?

Os honorários de sucumbência são devidos para recompor a parte daquilo que foi contratado a um advogado. São honorários que visam justamente ressarcir o cliente daquilo que ele contratou para o exercício de sua defesa. Devem ser arbitrados de acordo com as regras do Código de Processo Civil que estabelece que os honorários serão fixados de 10 a 20% e daí estabelece os critérios que o juiz deve respeitar para essa fixação de valores.

Em alguns casos, quando o devedor é o vencedor por exemplo, como o senhor analisa as decisões fixando os honorários sucumbenciais em percentual inferior a 10%? Qual é a posição da OAB referente ao tema?

É uma indignidade em relação à honorabilidade do advogado e uma ilegalidade porque o Código determina o percentual e a OAB vai defender os seus inscritos de forma total. Nós temos orientado as seccionais de que a própria instituição promova a defesa dos honorários advocatícios nos tribunais estaduais e, quando elevar-se aos tribunais superiores alguma questão que envolva honorários, que acione o Conselho Federal da Ordem para dar assistência àquele advogado que teve os honorários fixados ilegalmente e de forma vil. O advogado hoje tem uma estrutura muito grande e muito cara para poder exercer sua atividade. Ele é o único dos agentes do Judiciário brasileiro que não tem férias, enquanto que outros têm até dois meses de descanso. Isso acaba se tornando uma forma de penalizar o advogado que não tem nem mesmo uma previdência como os demais operadores do direito têm, tanto para a aposentadoria quanto para a saúde. Então este profissional sempre encontra o respaldo para ter dignidade no exercício de sua atividade no honorário digno, e honorário digno às vezes incomoda a magistratura que insiste em descumprir o Código de Processo Civil, que por sua vez insiste em descumprir o seu dever ético de fixar os honorários de forma condigna ao advogado.

Em caso recente divulgado na mídia, após ganhar causa de valor milionário (execução de dívida superior a U$ 250 milhões), um cliente, a Bombril S/A, teria destituído o advogado, Augusto Coelho, para celebrar acordo com os devedores e receber em pagamento os bens penhorados sem pagar honorários fixados em sentença judicial. A Justiça declarou a ineficácia do acordo e manteve o leilão para o pagamento dos honorários advocatícios sucumbenciais. Como o senhor analisa essa decisão?

Essa não é uma vitória isolada, é uma vitória da classe dos advogados, a decisão apenas cumpriu a lei restabelecendo a condição do advogado de receber seus honorários e sua dignidade. Isso é o normal que deve sempre ocorrer nos estados civilizados, nos estados que respeitam o direito do profissional que trabalha para receber o que lhe é devido. A magistratura está entendendo melhor a posição do advogado e fazendo cumprir a lei.

O que é e como funciona o segredo de justiça, qual a sua utilidade?

O segredo de justiça é uma exceção porque, no geral, o processo é público. Como exceção, deve ser absolutamente protegido. O segredo de justiça existe para todos, não existe apenas para uma parte daqueles que estão envolvidos dentro do processo. Hoje, por exemplo, nós vemos um uso ilegal desse instituto do segredo de justiça. Às vezes, o segredo é para o advogado que justamente tem que ter acesso aos autos e ao mesmo tempo é liberado, mesmo tratando-se de segredo de justiça, à mídia e à população, em detrimento daquilo que se quer proteger. Em caso recente, o do ex-prefeito Paulo Maluf, houve um vazamento horrível de uma prova que estava sendo colhida legalmente. Porém, houve um uso absolutamente ilegal por parte do Ministério Público e por parte talvez da polícia no sentido de divulgar aquilo que estava sendo gravado. O que é pior aí é que não se violentou apenas a figura do indiciado que estava protegido pelo segredo de justiça, mas também a do próprio advogado. Houve uma duplicidade de ilegalidade porque se quebrou o segredo de justiça e se infringiu uma disposição do Estatuto do Advogado que diz que o mesmo tem a inviolabilidade de suas comunicações, inclusive telefônicas.

Um réu, cujo processo esteja em segredo de justiça, pode se defender de outra maneira além dos autos, através da imprensa por exemplo?

Não, todos devem respeitar as regras. Veja, o segredo de justiça é uma exceção e sendo decretado deve ser obedecido por todos que devem mantê-lo. Não é licito que uma das partes quebre o segredo de justiça determinado.