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A premente reforma constitucional em face da crise da legalidade e da segurança

30 de junho de 2006

Renato Ferrari

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No contexto geral, os brasileiros certificam a existência das crises nacionais; apuram as suas causas, como ato preliminar do conhecimento, superando a visão restrita dos efeitos, ineficiente para as soluções globais, e tão generalizada em nossa sociedade; desvendam as relações de causa e efeito entre as coisas, lembrando o dizer shakesperiano, no falar de Apolônio, de que “é preciso descobrir a causa deste efeito – ou melhor dizendo – deste defeito – porque este efeito, que é defeito, provem de uma causa”; e evidenciam que a problemática não se cinge ao plano teórico, mas se corporifica nos fatos sociais.

Ao considerar as crises, ergue-se, desde logo, a observação de que a normatividade legal, em sentido pleno, só se faz autêntica pelo respeito das características conformadoras da respectiva unidade política, de sorte que as teorias contemporâneas homenageiam a legalidade e a ordem jurídica, uma e outra, e ambas entrelaçadas, quando de acordo com o Estado Democrático de Direito, para o qual evoluiu o Estado de Direito, na realização de uma democracia substantiva, e não apenas formal.

Assumiu relevância a efetiva correspondência entre a lei e a realização do bem comum, proporcionado entre o bem individual e o bem coletivo, com o pré-estabelecimento dos valores fundantes da sociedade, expressos em princípios explícita ou implicitamente insertos na ordem jurídica, no seu quadro integral de normas constitucionais e infra-constitucionais.

Em razão de regência axiológica, que consubstancia o elemento moral, representando a licitude, define-se a legitimidade, que se expressa no efetivo atendimento das necessidades e aspirações do povo; e destas bases deve emanar a legalidade, como norma de conduta, em coerência com a licitude e a legitimidade, em composição tridimensional.

Na medida em que a legalidade não obedece a legitimidade e esta não obedece a licitude, desobedecendo-se entre si, instaura-se a crise das desconformidades, que, segundo sua extensão, converte-se em crise sistêmica e, segundo sua profundidade, em crise nuclear, atingindo o estado de anomia.

Este é o Brasil de hoje.

A começar pela Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, relativa à Constituição de 1969, esta resultante da Emenda nº 1 à de 1967, emenda aquela convocatória de uma Assembléia Nacional Constituinte e pela qual o Congresso Nacional outorgou-se poderes de constituinte originário, através dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em reunião unicameral e voto de maioria, quando, considerada a existência de ruptura política ensejante de uma nova Carta Magna, só se justificaria a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte própria, de caráter autônomo e independente do Congresso Nacional.

Nessa elaboração de legislador ordinário transformado em constituinte originário concorreram a visão e os interesses de jaez partidário, grupal ou pessoal, no quadro de centenas de parlamentares filiados a grande número de agremiações com os entrechoques de posições particulares ou unilaterais, vindo a obumbrar-se o embasamento filosófico-político e principiológico capazes de uma configuração adequada, para daí resultar um documento repleto de inadequações, em cujo cerne, para exemplificar, comprometeram-se os conceitos federativos, inclusive por equivocada discriminação de competências e funções, de receitas e despesas; confundiram-se as características do sistema de governo, num híbrido de parlamentarismo e presidencialismo, de que dão notícia as medidas provisórias; desfigurou-se o mandamento de igual valor do voto.

Pior terá sido a perda pelo Congresso Nacional do reexame constitucional previsto no Ato das Disposições Transitórias para depois de cinco anos, dado que sucumbiu a revisão geral, cifrando-se em seis emendas sem maior importância basilar, certamente pelo idêntico motivo de ser a revisão atribuída ao legislador ordinário, às centenas filiados a imenso número de agremiações políticas, realçando-se os mesmos interesses e desavenças de partidos, grupos e pessoas.

Neste curso, o Parlamento enveredou pela adoção de Emendas Constitucionais, de caráter focal, boa parte delas ditada por casuísmos e conveniências de momento dos detentores do poder, as quais já chegaram a cinqüenta e duas,  que, somadas a seis de revisão, atingem o inconcebível número de cinqüenta e oito em dezessete anos e meio de vigência constitucional, numa colcha de remendos progressivos pela aprovação das propostas de emenda em andamento e das que certamente aparecerão.

No olhar das raízes, que o comodismo irresponsável finge ou prefere ignorar, é flagrante que a crise constitucional permeia a legislação infra-constitucional e os atos de governo, em seus múltiplos aspectos, desde o político, o partidário e o eleitoral, com a permissividade de favorecimentos pessoais e amplos desmandos; e a tudo permeia, como exemplificam: a) as finanças públicas, em que as receitas, na vergonhosa proporção de quarenta por cento do esforço produtivo da sociedade civil, não conseguem cobrir as despesas deste Estado-Leviatã, a arrecadar cada vez mais através do terror fiscal; b) a segurança pública, convertida na insegurança permanente da vida e do patrimônio; c) os direitos sociais à educação, com suas graves insuficiências e gigantesco atraso qualitativo; à saúde, relegada ao mais brutal desrespeito; à previdência social, cujo sistema se deteriora espantosamente por erros de formulação; à assistência social, que mal socorre os desamparados; d) o apelidado custo Brasil, com a mortal carga tributária; o paradoxo das onerações financeiras, as inconsistências cambiais; os excessos dos encargos trabalhistas; a precariedade do saneamento básico e das infra-estruturas físicas; o desleixo do meio ambiente; e) as políticas públicas, que não promovem o desenvolvimento econômico, o progresso social e o aprimoramento cultural, com as resultantes dolorosas da falta de emprego e de salário, a par da dramática distribuição de renda, a demonstrar a trágica falta de perfilhamento e de consecução de um projeto de Nação e de Estado.

Crise do Poder Legislativo e crise do Poder Executivo, sem dúvida, mas igualmente crise do Poder Judiciário sufocado por uma retrógrada processualística, consistente na inadequação das leis adjetivas -codificadas, consolidadas ou extravagantes-, comprometedora da pronta satisfação jurisdicional, na medida em que propicia a eternização das demandas, amparada em quatro instâncias e na indústria recursal, a aniquilar a razão na tardança do seu reconhecimento, em meio à angustia da imprevisibilidade do trânsito em julgado, para gáudio dos transgressores das normas civis, administrativas e penais, de cuja situação o Estado é o maior useiro e vezeiro, sem embargo das figuras da súmula vinculante e da repercussão geral só recentemente abrigadas pela Emenda Constitucional nº 45.

Obviamente, trata-se de crise sistêmica violadora dos primados essenciais do direito, consistentes na segurança e certeza jurídicas, integradas em unidade real, os quais devem resguardar os membros da coletividade como garantia fundamental, impedindo que cada cidadão e toda a sociedade estejam sujeitos às oscilações indevidas ou intempestivas da lei, ao sabor dos interesses dos exercentes do poder, arvorados em senhores da Nação, com seu ranço patrimonialista, negando-se a primazia da pessoa frente à conhecida controvérsia the man x the State.

É consabido que a pedra angular do paradeiro deste estado de coisas encontra-se nas mãos do Congresso Nacional, como também é cediço, por comprovada experiência, que esta vigorosa empreitada não terá êxito por lances de emendas constitucionais de caráter pontual, no desconcertante, inútil e interminável curso de uma a uma, já desacreditadas até pela ironia popular, a contar que um cidadão vai a uma livraria para comprar um exemplar da Constituição e o atendente lhe diz que “aqui não se vendem periódicos”.

Esta é a situação com que se confronta o Parlamento, em sua exclusiva competência de determinar os modos e meios capazes de alterar a Lei das Leis em sua reclamada extensão, a cujo propósito é patente que, se cada legislador ordinário dispõe de capacidade pessoal para tratar da matéria, a reunião de todos transforma-se em embates e dispersões de múltiplos matizes e penosos efeitos, frustrando-se o objetivo maior.

Neste quadro, é consabido igualmente que o Congresso Nacional, fundamentado na própria Carta Magna, possui também a pedra de toque da construção da urgentíssima reforma constitucional, em caráter supra partidário, para a salvação do povo, e salus populi suprema lex est.