A Previdência Social e as Meias-Verdades

31 de março de 2011

Fábio Zambitte Professor de Direito da FGV-Rio

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De um ponto de vista puramente lógico, uma ‘meia-verdade’ não existe. Caso camufle ou distorça algum ponto relevante do fato narrado, é uma mentira. A verdade parcial não se sustenta. No entanto, como forma de alegoria argumentativa, é válida para narrar as desventuras do debate previdenciário nacional, que tem muito se utilizado, por quase todos os envolvidos, conscientemente ou não, das ‘meias-verdades’ como defesa de reformas ou do status quo.
Frequentemente misturam-se informações verdadeiras com aspectos falsos ou precariamente apreciados, o que, é verdade, torna-se muito comum em uma matéria altamente interdisciplinar, como a previdência social, que abarca aspectos jurídicos, econômicos, matemáticos, sociológicos e até biológicos.
Há os que defendam a necessidade de reforma urgente, com base em alarmantes – e verdadeiros – dados demográficos que externam elevado envelhecimento populacional conjugado com baixa natalidade; receita de falência para regimes de repartição simples, como o nacional. Mas, com tais premissas, ainda que corretas, tentam provar demais, impondo necessidade de regimes exclusivamente capitalizados – sem sucesso aqui e no mundo, como reconhecem a OIT e mesmo o Banco Mundial – e apontam os aposentados atuais como privilegiados por um regime frouxo tanto nos requisitos de aposentadoria quanto na fixação da renda mensal.
Aí surgem as ‘meias-verdades’. É certo que muitas pessoas no Brasil aposentaram-se precocemente; passarão mais tempo no ócio remunerado do que contribuindo ao regime, além daqueles que alçaram cifras elevadas de benefício sem cotização adequada, especialmente pelas brechas legais da legislação pretérita, que previa o cálculo do benefício somente sobre os trinta e seis últimos salários, entre outros aspectos. Por outro lado, há aqueles que muito foram prejudicados pela mesma regra, em razão de perdas salariais expressivas no final da vida laborativa, assim como um universo de aviltados por regras legislativas propositadamente construídas, nos anos de inflação, para reduzir a renda mensal inicial do aposentado, como a correção parcial dos salários computados na média do benefício.
Economistas, com base em amplas análises, apontam a inexistência de perdas remuneratórias dos aposentados brasileiros, demonstrando a reposição da inflação, anualmente, pelos índices oficiais. Mais uma ‘meia-verdade’. Ignoram que muitos desses já foram prejudicados no cálculo da renda mensal inicial, como exposto anteriormente, recebendo benefício aquém do que deveriam obter, seja por regras complexas de cálculo ou critérios teratológicos de correção dos salários. Fala-se da correção adequada do benefício, mas se esquece da correção dos salários que foram utilizados no cálculo do benefício.
Ademais, a perda de bem-estar na terceira idade é sensível e inquestionável, pois os gastos com saúde têm ascensão exponencial, o que, em um país com sistema público limitado e excludente, impõe uma perversa realidade no fim da vida. Para piorar, sabe-se que a inflação para os idosos não é sentida da mesma forma, pois possuem opções de produtos e serviços muito particulares. Enfim, afirmar que os idosos vão bem é insustentável.
Por outro lado, é certo que o gasto público deve atentar a outros segmentos da sociedade, especialmente crianças e adolescentes, que contam com prioridade absoluta no Brasil, como prevê o artigo 227 da Constituição. Com uma população cada vez mais envelhecida, novos limites de idade e regras mais severas na concessão de benefício são uma necessidade inescapável, e buscar somente eficiência e combate à corrupção não produzirá o equilíbrio necessário.
O Brasil ainda possui um regime previdenciário que permite aposentadoria por tempo de contribuição independente de idade mínima, desde que preenchidos 35 anos de contribuição, para homem, ou 30 anos de contribuição, para mulher. Nem mesmo países escandinavos contam com tal regalia. Algo precisa mudar, sob pena de falência do sistema e de tornar precários outros setores da sociedade.
É hora de buscarmos o que falta no Brasil – o debate interdisciplinar e franco sobre previdência social, despido de interesses de classes e visando um futuro melhor; um modelo verdadeiramente universalista, financiado por toda a sociedade, por meio de impostos, abarcando a qualquer um que alcance a idade mínima estabelecida ou outros requisitos, com a vantagem de garantir proteção ampla, geral e irrestrita a qualquer pessoa em respeito à dignidade inerente a cada um, atendendo, inclusive, pessoas sem atividade remunerada, como donas de casa.
De forma a preservar o nível de bem-estar, um complemento de aposentadoria seria financiado com adicional de imposto de renda, de modo a agregar ao benefício mínimo valor com alguma correspondência à remuneração média do segurado. Tal financiamento não necessariamente implicaria aumento de carga tributária, pois todas as contribuições sociais atualmente existentes seriam extintas, além de estimular o pagamento do IR. Os impostos seriam mantidos, com parte direcionada ao patamar mínimo de proteção social, e o adicional de imposto de renda para financiar o complemento de bem-estar. A previdência complementar privada ainda existiria, de forma voluntária, ao contrário dos dois pilares iniciais, que seriam compulsórios. Um modelo simples e eficaz.
Uma crítica a esse modelo é a ausência de garantias de vinculação de receita ao gasto previdenciário, o que poderia permitir aviltamento de benefícios em favor de outros gastos, como manutenção de superavit fiscal. No entanto, em primeiro lugar, a pretensa vinculação de receita das contribuições sociais nunca funcionou no Brasil, seja por meio de subvenções cruzadas, como isenções e remissões diversas, ou mesmo pelo desvio puro e simples para outras finalidades, como ocorre desde sempre com a Cofins. Em segundo lugar, a prioridade do gasto, em um regime democrático, é feita por representantes escolhidos pelo povo, na confecção do orçamento, e caberá à sociedade brasileira, dentro desse ambiente de deliberação, estabelecer as prioridades adequadas.
Ao invés da desconfiança no Administrador e Legislador, com infrutíferas tentativas de vinculação de receita – esse é o resumo da parafiscalidade –, cabe evoluirmos na democracia; reconhecer que a benesse para alguns, em geral, implicará em prejuízo de outros, e estabelecer um ponto de equilíbrio que permita um financiamento adequado e o grau de proteção cabível à realidade brasileira. A previdência social não é somente uma forma de assegurar nível mínimo de bem-estar em situações de necessidade social, mas também instrumento de repartição de recursos escassos em uma sociedade. Somente assim sairemos das ‘meias-verdades’ para a salvação da previdência social.