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A privacidade e o sigilo de dados dos usuários de cartões de bilhetagem eletrônica

30 de maio de 2017

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Rodrigo Tavares Maciel e Fernanda Nobre Muniz Maciel

Rodrigo Tavares Maciel e Fernanda Nobre Muniz Maciel

O direito à privacidade é um direito subjetivo fundamental que surgiu como mecanismo de defesa do cidadão frente ao arbítrio do Estado. Posteriormente, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao disciplinar os direitos da personalidade, passou a conferir à pessoa maior proteção, vinculando tais direitos aos demais indivíduos da coletividade.

Sobre o tema, assevera Gilmar Ferreira Mendes:

O direito à privacidade, em sentido mais estrito, conduz à pretensão do indivíduo de não ser foco da observação por terceiros, de não ter os seus assuntos, informações pessoais e características particulares expostas a terceiros ou ao público em geral.[1]

E, como bem adverte José Afonso da Silva:

Toma-se, pois, a privacidade como o conjunto de informações acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem a isso poder ser legalmente sujeito.[2]

Atualmente, a evidente inovação tecnológica modificou a perspectiva do conceito de privacidade, considerando os grandes bancos de dados compartilhados via internet e o alto volume de informações processadas de forma instantânea.

Nesta linha de evolução, o Marco Civil da Internet, Lei 12.965/2014, garantiu expressamente a privacidade e proteção de dados pessoais, permitindo a disponibilização mediante ordem judicial. A referida Lei reafirma os princípios e garantias constitucionais, além de estabelecer direitos dos usuários e deveres dos administradores dos bancos de dados eletrônicos.

De acordo com o parecer jurídico proferido pelo escritório Schreiber Domingues Cintra Lins e Silva Advogados, de modo geral, o sigilo de dados pessoais encontra-se amparado no artigo 5o da Constituição Federal de 1988, quer por meio de seu inciso X, que tutela a privacidade do indivíduo, quer por meio do seu inciso XII, que contempla o sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, permitindo sua atenuação apenas em caso de “ordem judicial”.

Segundo o escritório, no que tange ao sigilo sobre dados dos usuários de cartões de bilhetagem eletrônica, embora não haja legislação específica sobre o assunto, esses dados, em relação à pessoa de cada usuário, caracterizam-se como dados sigilosos, o que impede a sua disponibilidade a terceiros, que somente poderiam ter acesso a tais dados diante de ordem judicial.

Mais além, diz o parecer que, no caso dos dados mantidos pelo operador do sistema de bilhetagem eletrônica, incluindo os dados armazenados no vale-transporte, uma analogia inevitável se dá com as comunicações telefônicas e de dados. A Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL possui diversas resoluções que enfatizam o dever das prestadoras de assegurarem a inviolabilidade do sigilo das comunicações dos usuários. Além disso, segundo essas resoluções, as prestadoras devem possibilitar a suspensão do sigilo apenas quando determinada por “autoridade judiciária ou legalmente investida desses poderes”, devendo, mesmo nessas hipóteses, “manter o controle permanente de todos os casos”, acompanhando a efetivação dessas determinações, e zelando para que elas sejam cumpridas, dentro dos estritos limites autorizados.

Vale elucidar que a inviolabilidade do sigilo da correspondência, das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas pode ser ressalvada por ordem judicial. Repita-se: somente por ordem judicial.

Com propriedade, o Tribunal Regional Federal da 5a Região decidiu:

Ao determinar que as operadoras forneçam os dados cadastrais dos seus clientes sempre que requisitados por membro do Ministério Público Federal ou de Delegado de Polícia Federal, a sentença acabou por transferir para essas autoridades a avaliação de quando o interesse na persecução penal deve prevalecer sobre o direito à privacidade de titulares de terminais telefônicos. Precedentes do STF reconhecendo que a mitigação de direitos fundamentais reconhecidos na Constituição somente pode ser realizada por órgãos com dever de imparcialidade, situação na qual o Ministério Público e as Polícias Judiciárias não se enquadram. Ponderação entre os interesses de preservação do sigilo dos dados cadastrais e de eficácia da persecução penal reservada ao Poder Judiciário.[3]

Se faz importante esclarecer que, no âmbito do contrato de trabalho, as garantias constitucionais à inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra, imagem, sigilo de correspondências, comunicações telegráficas, telefônicas e dados também devem ser respeitadas e analisadas de modo que o empregador não venha feri-las ilicitamente.

Verifica-se, desta maneira, que o sigilo dos dados dos usuários de cartões de bilhetagem eletrônica também deve ser respeitado pelo empregador, ainda que este seja responsável pelas recargas de vale-Transporte de seu empregado.

Como se sabe, embora o poder diretivo seja inerente à atividade empresarial, este não pode ser exercido de forma absoluta pelo empregador. Isto porque, tal poder encontra limites na própria dignidade da pessoa humana.

Conforme leciona Sérgio Pinto Martins, o poder de direção do empregador abrange somente o poder de organização, controle e disciplina. O mesmo autor afirma ainda que “o controle do empregador deve ser feito sobre o trabalho, e não sobre a pessoa do empregado”[4].

A própria jurisprudência do Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, no Processo no 0043200-96.2008.5.01.0075, já se pronunciou neste sentido:

(…) Não é o fato de um empregado encontrar-se subordinado ao empregador ou de deter este último o poder diretivo que irá justificar a ineficácia da tutela à intimidade no local de trabalho, do contrário, haveria degeneração da subordinação jurídica em um estado de sujeição do empregado. O contrato de trabalho não poderá constituir “um título legitimador de recortes no exercício dos direitos fundamentais” assegurados ao empregado como cidadão; essa condição não deverá ser afetada quando o empregado se insere no organismo empresarial, admitindo-se, apenas, sejam modulados os direitos fundamentais na medida imprescindível do correto desenvolvimento da atividade produtiva. 

O Superior Tribunal de Justiça seguiu no mesmo sentido ao determinar o pagamento de danos morais ao empregado que teve seu extrato de FGTS violado pelo seu ex-empregador, ainda que este tenha praticado o ato de forma a apresentar provas contra o empregado em ação trabalhista. Abaixo, acórdão do Recurso Especial no 1.025.104 – RS (2008/0010959-2):

RESPONSABILIDADE CIVIL. VIOLAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA. EXTRATO DE FGTS ENDEREÇADO AO RECORRENTE E ENVIADO À SEDE DA RECORRIDA, SUA EX-EMPREGADORA. UTILIZAÇÃO DA CORRESPONDÊNCIA VIOLADA PARA INSTRUÇÃO DA DEFESA EM RECLAMAÇÃO TRABALHISTA. OFENSA ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO SIGILO DA CORRESPONDÊNCIA E DA PROTEÇÃO À INTIMIDADE. DANO MORAL CONFIGURADO. A responsabilização por dano moral, na hipótese dos autos, opera-se por força da simples violação de correspondência (in re ipsa), independentemente de prova da lesão. A informação consignada em todos os modelos de extratos do FGTS encontra-se amparada pelo dever de sigilo previsto no art. 1o da Lei Complementar 105/01. Ao utilizar o documento violado para sustentação de seus argumentos nos autos de reclamação trabalhista ajuizada pelo recorrente, a recorrida conferiu indevida publicidade ao conteúdo da correspondência violada, o que representa ingerência na vida privada do recorrente. Recurso Especial conhecido e provido.”

O Tribunal Superior do Trabalho, no Recurso de Revista no 101149020125180053, vai além e prevê:

RECURSO DE REVISTA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO DE EMPREGADO. ACESSO A EXTRATOS BANCÁRIOS DE FAMILIARES. APURAÇÃO DE IRREGULARIDADE. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. A quebra do sigilo bancário é medida excepcional, constituindo crime quando feito fora das hipóteses legalmente previstas (Art. 11, II e § 2o, da Lei no 9.613/98 e 1o, § 3o, da Lei Complementar no 105/2001). E por constituir direito à personalidade, afeto à privacidade e à intimidade, a ofensa a esse sigilo é passível de reparação, nos termos do art. 5o, X, da Constituição Federal. É entendimento desta Corte que, quando a instituição bancária tem acesso indiscriminado a movimentações de contas bancárias de empregados e correntistas, não há ilicitude a ensejar a reparação por dano moral, posto que, nessa situação, o empregador atua em cumprimento à lei. No entanto, quando tem acesso a movimentação bancária apenas de um determinado empregado, em regular procedimento administrativo, ainda que não haja divulgação a terceiros, mas sem prévia autorização judicial, incorre em ofensa aos artigos 5o, X e XII, da Constituição Federal, por afrontar direito personalíssimo e por violar o dever de sigilo bancário. Precedentes da SBDI-1. Recurso de revista conhecido e provido. QUEBRA DE SIGILO DE COMUNICAÇÕES INTERNAS. Delimitado pelo eg. TRT que o reclamante incorreu em quebra de sigilo ao juntar autos do processo administrativo, correspondência interna do gerente de expediente de Anápolis, sem autorização, sua decisão confere observância ao art. 5o, XII, da Constituição Federal, que estabelece a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas. Recurso de revista não conhecido.

Assim, devem escapar da autoridade empresarial as atividades do empregado que estão fora do contexto do trabalho, desde que não repercutam prejudicialmente no contrato de trabalho e no exercício das atividades laborais.

Ainda que o empregador não divulgue a informação a terceiros, não é permitido ao mesmo o acesso aos dados do vale-transporte de seu empregado, exceto se mediante ordem judicial.

Tanto é assim, que o Decreto 95.247/1987, que regulamenta a Lei do Vale-Transporte no 7.418/1985, determina em seu artigo 7o que o próprio empregado (e não o empregador) informará ao empregador, por escrito, seu endereço residencial e os serviços e meios de transporte adequados ao seu deslocamento residência-trabalho e vice-versa, devendo tal informação ser atualizada pelo empregado anualmente ou sempre que ocorrer alteração das referidas circunstâncias.

O Tribunal Regional do Trabalho da 23a Região, por sua ilustre desembargadora Alice Monteiro de Barros, no RO no 01024-2008-024-03-00-5, proferiu decisão nos seguintes termos:

(…) O avanço da tecnologia deve ser usado com critério para acompanhar o serviço e a produtividade do empregado, sem violação do direito à intimidade, assegurado pela Constituição.

O contrato de trabalho não pode constituir hipótese de ressalva ao exercício dos direitos fundamentais assegurados ao empregado como cidadão. Como se sabe, tais direitos devem nortear todas as relações entre os indivíduos e, por tal motivo, não escaparia desta regra a relação de emprego.

Assim, não se pode negar que o direito à intimidade e à vida privada devem ser incorporados integralmente ao contrato de trabalho, constituindo uma limitação ao poder diretivo do empregador.

Não resta, então, dúvidas de que os operadores de grandes bancos de dados, incluindo o operador do sistema de bilhetagem eletrônica, têm o dever constitucional de preservar o sigilo dos dados dos usuários, que não pode ser violado em qualquer hipótese, exceto mediante decisão judicial. Cabe também a tais operadores implementar procedimentos e recursos sistêmicos de forma a garantir a preservação dos dados.

 

Notas_____________

1 MENDES Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. rev. e atual. São Paulo : Saraiva, 2017 p. 283.

2 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

3 TRF-5 – APELREEX: 5397 SE 0001771-04.2007.4.05.8500, Relator: Desembargador Federal Rubens de Mendonça Canuto (Substituto), Data de Julgamento: 17/11/2009, Segunda Turma, Data de Publicação: Fonte: Diário da Justiça Eletrônico – Data: 1/12/2009 – Página: 188 – Ano: 2009.

4 MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. 29. ed. São Paulo: Atlas, 2013. P. 227