A publicação não autorizada de imagens íntimas está em debate no STJ

27 de setembro de 2021

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Por Venceslau Tavares Costa Filho e Ana Elizabeth Oliveira de Mariz Dantas

No dia 17 de agosto deste ano, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça suspendeu o julgamento do REsp 1.930.256 – SP, após proclamação parcial de julgamento com voto proferido pela relatora Ministra Nancy Andrighi, que negou provimento aos recursos interpostos e foi acompanhada pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, tendo divergido o ministro Marco Aurélio Bellizze, que votou pelo provimento parcial do recurso especial interposto pelo Google e julgou prejudicado o recurso interposto pela parte adversa; aguardando-se, no momento, o voto-vista pedido pelo ministro Moura Ribeiro. A divergência de entendimento dos ministros do tribunal versa sobre a aplicabilidade da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) no caso de vazamento e publicação de fotos de ensaio sensual produzido para divulgação exclusiva em determinado portal eletrônico; mas que foi disseminado, sem a autorização da modelo, em diversos blogs. O embate entre a ministra relatora e o ministro Bellizze diz respeito à aplicação (ou não) do artigo 21 da Lei do Marco Civil da Internet ao litígio. A ministra Nancy Andrighi acertadamente defende que o fato da modelo ter autorizado a publicação das fotografias não afasta a aplicação do artigo 21 [1], vez que o consentimento foi para fim específico, qual seja, a divulgação em certa revista e para público específico, mediante comprovação de pagamento prévio e de idade superior a 18 anos; não havendo o consentimento, portanto, para a divulgação irrestrita, estando caracterizada a violação aos direitos à imagem, à privacidade e à intimidade com a publicação não consentida. Faz-se mister trazer à baila entendimento pacificado pelo próprio STJ, conforme enunciado nº 403 de sua súmula de jurisprudência dominante: “Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais”. Um dos precedentes que ensejaram a Súmula 403 foi o EREsp 230.268-SP, cujo voto foi fundamentado em caso semelhante já julgado pela mesma 3ª Turma (REsp 270.730-RJ) [2], com a relatoria para acórdão também da ministra Nancy Andrighi, que defendeu a responsabilização civil quando a divulgação se dá de forma diversa da prevista contratualmente. Em tempos em que a internet não dispunha do destaque de hoje, a revista impressa ocupava a mesma condição da revista virtual atualmente, razão pela qual a análise do cabimento da responsabilidade civil ao presente caso, deve-se dar, mutatis mutandis, ao do REsp 270.730-RJ, interposto pela atriz Maitê Proença, que firmou contrato para a publicação de ensaio fotográfico para a revista Playboy com destinação específica para a revista contratante e apenas acessível para o público maior de 18 anos, assim como a modelo que pleiteia indenização contra o Google. Naquele julgamento sobre a publicação não autorizada de fotos de nu artístico da atriz Maitê Proença, a corte assentou que: “A publicação desautorizada de imagem exclusivamente destinada a certa revista, em veículo diverso do pretendido, atinge a honorabilidade da pessoa exposta, na medida em que experimenta o vexame de descumprir contrato em que se obrigou à exclusividade das fotos”. Ressalte-se o brilhantismo e a sensibilidade para questões de gênero da ministra Nancy Andrighi ao enfrentar o argumento de que a publicação não autorizada de tais fotos íntimas não violaria a honra da famosa atriz, tendo em vista sua beleza e a existência de autorização para publicação anterior: “É razoável que, dada a beleza do modelo e a qualidade artística das fotografias, a publicação só tenha servido para comprovar as qualidades da recorrente. Contudo, não se limita a este âmbito o espectro do artigo 5 o , inc. X da CF/88. (…). É certo que a recorrente não desejou ter sua imagem, especialmente nua, publicada em outro veículo, que não aquele que autorizou por meio contratual. Encarte lacrado, com preço superior aos demais, produto destinado à determinada parcela da população não tem e não pode ter a mesma categoria de outros produtos lançados na imprensa. Este é o primeiro aspecto a gerar dor psíquica a quem, se submeteu a ensaio fotográfico de corpo nu para determinada publicação, e, se vê em outra, de alcance público completamente diferente. O acesso a sua imagem nua ficou desprotegida, violada, diante daquilo que se propôs a recorrente e seu decoro”. Inegável a similitude do presente caso com o da renomada atriz Maitê Proença, julgado pela mesma 3ª Turma do STJ, que reconheceu o cabimento da indenização por danos materiais e morais, em decorrência da veiculação de fotografias íntimas por veículo diverso daquele para o qual foi autorizada a publicação. A ministra Nancy Andrighi no julgamento do REsp 1.930.256-SP, que foi suspenso após pedido de vista, defende que o artigo 21 (Lei nº 12.965/2014) não pode ter sua aplicação restrita aos casos de pornografia de vingança, mas deve ser aplicado também no caso em comento, pois a vítima deu consentimento para a publicação de fotos íntimas suas em sítio eletrônico específico, cujo acesso é restrito, para um público específico, e não para divulgação irrestrita. Ora, a boa ou má intenção de quem publica fotos íntimas de outrem sem autorização do titular do direito deve ser considerada irrelevante para a responsabilização civil. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça inclusive já pacificou entendimento que a prática da conduta descrita no enunciado 403 de sua súmula caracteriza dano moral in re ipsa. Em nenhum momento o artigo 21 do Marco Civil pode ser restrito para quem usa de má-fé para vazar imagens íntimas de caráter privado (revenge porn, ou pornografia de revanche), como suscita a defesa do Google. Some-se a isso o fato de que o ensaio de nu artístico protagonizado pela modelo também é protegido pela legislação de direitos autorais e pela Constituição Federal (artigo 5º, XXVIII, “a”) [3], posto que se trata de direito conexo ao direito de autor [4]. Como a cessão de direito de imagem da modelo encontra-se também sob a proteção da Lei de Direito Autoral, aplica-se a este contrato o que determina o artigo 4º dessa lei: “Interpretam-se restritivamente os negócios jurídicos sobre os direitos autorais”. Veja-se, nesse sentido, que os estudiosos do direito autoral apontam que a postagem de imagens e vídeos na internet “precisa da autorização tanto dos titulares dos direitos autorais quanto dos titulares do direito de imagem e/ou voz” [5]. Ora, a violação dos “direitos de autor e os que lhe são conexos” constitui conduta que se adequa ao tipo penal previsto no artigo 184 do Código Penal brasileiro, que prevê em seu §1º que a violação pode ter sido efetivada “com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo”. Resta evidente, portanto, a ilicitude da conduta praticada pelos responsáveis por sítios eletrônicos que reproduziram a imagem da modelo sem sua autorização. Trata-se de ilicitude evidente que se insere na chamada “zona de certeza positiva”, semelhante a que “ocorre em incitações de ódio, xingamentos grosseiros, mensagens discriminatórias, pornografia infantil, etc. Nessas hipóteses, por exemplo, não parece adequado que o agente mesmo tomando conhecimento inequívoco da publicação e se recusando a retirá-la, possa escusar-se de reparar os danos daí decorrentes” [6]. Ora, ainda que as fotos estivessem disponíveis para acesso livre na rede mundial de computadores, os direitos de autor e os que lhe são conexos devem ser respeitados, como pontua o ilustre autoralista Rodrigo Moraes, que honra as melhores tradições jurídicas da Bahia: “Por exemplo, no meu escritório, nós temos diversas ações contra empresas que utilizam obras fotográficas indevidamente, e quem dizem ‘ah, mas eu achei a foto na internet’. Mas a foto tem direitos reservados. O fato de um fotógrafo disponibilizar as obras dele para as pessoas verem não autoriza uma empresa a utilizar aquela foto para um produto lucrativo. Se tem um carro estacionado em uma avenida, você tem direito, só porque o carro está estacionado na rua, de pegar o carro da pessoa e usar? Você não pode fazer isso” [7]. Não bastassem os direitos inerentes à pessoa humana, a Lei Maria da Penha surgiu para acrescentar muitos outros direitos às mulheres, inclusive o direito da mulher dispor de seu próprio corpo e imagem, sendo-lhe permitido, inclusive, decidir onde quer que sua imagem seja publicada. Condenar a mulher que realizou ensaio de nu artístico para publicação específica a ver sua foto disseminada sem seu consentimento na rede mundial de computadores com acesso irrestrito caracteriza violência de gênero. Inegável a ocorrência, também, do dano psicológico à mulher que se vê julgada no meio social, não podendo decidir sobre a destinação dada às suas imagens, sendo tolhida no exercício livre de sua sexualidade; pois, como registrado pelo próprio Google, tais imagens foram disponibilizadas ao menos em 380 URLs diferentes, que foram derrubadas apenas após notificação judicial, o que evidencia a proporção da divulgação das imagens. Ademais, permitir a publicação das fotos sem qualquer restrição, já que o Google não tomou as devidas providências para a exclusão após notificação extrajudicial, permite que seja atingido, também, um grupo vulnerável, qual seja, o das crianças e dos adolescentes, haja vista que o contrato firmado entre a editora da revista e a modelo, protegem os menores, quando impossibilita o acesso deles. Ante os argumentos expostos, não se vê como prosperar posicionamento divergente na 3ª Turma que pretende afastar a aplicação do artigo 21 e também a responsabilidade do Google, por entender que uma vez que as fotos foram feitas com fim lucrativo, perdem a natureza íntima ou privada; razão pela qual, há quem defenda a aplicação do artigo 19 [8] da Lei do Marco Civil da Internet, mais condescendente com o provedor de internet. Afastar a responsabilização civil do Google, ao argumento de que houve o consentimento da vítima para a realização do ensaio pelo qual recebeu uma contraprestação pecuniária, é reforçar o viés machista com o qual a mulher é julgada no meio social. Quanto ao artigo 19 do Marco Civil, é importante ressaltar a crítica bem formulada por Ana Frazão e Ana Rafaela Medeiros, posto que esse dispositivo tende a sobrepor a liberdade de expressão às garantias previstas no inciso X do artigo 5º da Constituição brasileira, “que reconhece a inviolabilidade dos direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas e assegura, expressamente, a reparação integral pelo dano material ou moral decorrentes de sua violação”, tendo, inclusive, sua constitucionalidade discutida nos REs 1.037.396 e 1.057.258, que aguardam julgamento [9]. Por fim, espera-se que o STJ reconheça a responsabilização civil do provedor de serviço de internet, ratificando posição já sumulada pela corte, em defesa dos direitos da pessoa humana.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFam).

 

[1] “Artigo 21 – O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo”.

[2] Publicado no DJE 07.05.2001, antes da vigência da Lei nº 12.965/2014.

[3] As referências que se fazem ao texto constitucional não devem ser tomadas como uma posição dos autores pela equiparação dos direitos da personalidade a direitos fundamentais. Até mesmo porque não se desconhece que as origens da doutrina dos direitos da personalidade remontam ao nominalismo de Guilherme de Ockham, de modo que “não deixa de ser irônico que muitos dos defensores da ideia dos direitos da personalidade como meros direitos fundamentais não recordem que a constituição dessa categoria deu-se em franca oposição ao sentido de hierarquia e de estatalismo”. Cf.: MIRANDA, Jorge; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; FRUET, Gustavo Bonato. Principais problemas dos direitos da personalidade e estado-da-arte da matéria no direito comparado. In: MIRANDA, Jorge; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; FRUET, Gustavo Bonato (orgs.). Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2012, p. 14.

[4] Lei nº 9.610/1998: “Artigo 1º – Esta Lei regula os direitos autorais, entendendo-se sob esta denominação os direitos de autor e os que lhes são conexos”.

[5] PARANAGUÁ, Pedro; BRANCO, Sérgio. Direitos Autorais. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 84.

[6] FRAZÃO, Ana; MEDEIROS, Ana Rafaela. Responsabilidade civil dos provedores de internet: a liberdade de expressão e o artigo 19 do marco civil. Disponível em: https://www.anafrazao.com.br/2021/02/23/responsabilidade-civil-dos-provedores-de-internet-a-liberdade-de-expressao-e-o-art-19-do-marco-civil/ Acesso em 09.08.2021.

[7] Cf: https://www.bahianoticias.com.br/justica/entrevista/85-rodrigo-moraes-lei-de-direitos-autorais.html Acesso em: 24.09.2021.

[8] “Artigo 19 – Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.

[9] FRAZÃO, Ana; MEDEIROS, Ana Rafaela. Responsabilidade civil dos provedores de internet: a liberdade de expressão e o artigo 19 do marco civil. Disponível em: https://www.anafrazao.com.br/2021/02/23/responsabilidade-civil-dos-provedores-de-internet-a-liberdade-de-expressao-e-o-art-19-do-marco-civil/ Acesso em 09.08.2021.

Publicação original: Conjur