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A realidade é muito mais grave

31 de julho de 2007

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Em razão da gravidade da insegurança pública, a sociedade brasileira tem sido obrigada a olhar com mais atenção as medidas adotadas pelo Estado para seu enfrentamento. Tem começado a constatar que precisa entender melhor o que se passa e o que é possível fazer para superar o desastre já instalado. E decidir qual é seu papel neste momento: esconder-se, enterrar vítimas, lamentar, reagir, colaborar, exigir, participar, organizar…

Boa parte das pessoas ainda não entendeu que votar –
sim, votar corretamente – para eleger os melhores, os mais sérios e comprometidos candidatos, está à frente das medidas que só à sociedade civil cabe tomar. Influenciar na destinação e utilização dos orçamentos nacional, estadual e municipal para áreas e projetos direta ou subsidiariamente ligados à
segurança do público, da qual o país precisa para se desenvolver e da qual o brasileiro precisa para brincar, estudar, trabalhar, produzir, seguir vivendo.

Recentemente, a Secretaria Nacional de Segurança Pública apresentou o número de mandados de prisão não cumpridos em todo o país. Mais de meio milhão de pessoas, cujos crimes chegaram à Justiça, e que não foram detidas pelas polícias dos Estados e pela Polícia Federal, estão por aí, por aqui, entre nós.

É muito importante a iniciativa da Secretaria no levantamento adequado e em sua exposição oficial. Igual-mente importante é cruzar os dados com outras informações sobre o autor, como estrato social, idade, profissão, tipo de crime e valor estimado, no caso de crimes que envolvem dinheiro; unidade da Federação onde ocorreu o crime, data, circunstâncias do fato, entre inúmeras outras variáveis.

Entretanto, é preciso acrescentar alguns complicadores ao retrato da tragédia que compartilhamos. Veja-se que a esse milhão de delinqüentes, presos ou não perturbados por mandados judiciais, há de se somar outros: os foragidos de prisões, aproximadamente 15% dos condenados enca-minhados à prisão (mais de 60 mil) no país. A corrupção endêmica garante que essa cifra média de fugas se mantenha estável, diferindo segundo estabelecimento, Estado, administração, momento e outros fatores.

A inadequação das instalações penitenciárias e do pessoal encarregado da custódia de presos é evidente, e está representada pelo volume da reincidência, também não avaliada cientificamente. Mas a lamentada falência do único e exclusivo modelo prisional adotado no Brasil não tem sido suficiente para que a área seja significativamente desenvolvida, através de parceria com a iniciativa privada, permitindo a efetiva e eficiente prestação do conjunto de serviços prisionais previstos em lei. Portanto, ao somar o número de presos (mais de 400 mil) ao de foragidos (aproximadamente, 60 mil) e ao de não atingidos pelos mandados judiciais (550 mil), passamos do milhão de criminosos detectados pelo sistema estatal.

Embora assustador, esse conjunto ainda está incompleto e exige ainda mais preocupação. Deve ser acrescido dos autores de crimes desconhecidos do sistema de justiça, e daqueles que, embora detectados, não foram registrados por alguma razão. Representam percentagem muitíssimo superior à criminalidade oficialmente conhecida, ou seja, o tal milhão. Esses crimes compõem a “cifra oculta” da criminalidade, para a qual não há resposta do Estado porque, para todos os efeitos, ele sequer toma conhecimento das ocorrências. São os crimes que não chegam ao conhecimento das polícias porque as vítimas não podem, ou não querem, ou não conseguem registrá-los; ou chegam às polícias, mas elas não têm condições, ou são impedidas de investigar; ou não têm interesse operacional ou político em investigar; ou as investigações são de baixa qualidade e não convencem o Ministério Público, e são arquivadas; ou chegam e desaparecem, de um ou de outro modo.

A segurança do público tem de atingir também espaços privados. A repressão é mais complexa, mas a valorização de um conjunto de medidas preventivas pode trazer bons resultados. As vítimas ou potenciais vítimas podem reduzir fortemente a cifra oculta da criminalidade se forem seriamente consideradas no planejamento do Estado. Somente a certeza de recebimento de respeito, proteção, agilidade e eficiência por parte das instituições pode ampliar as denúncias e permitir que o Estado conheça e tente controlar a criminalidade  real.

Quantos espancadores de mulheres são denunciados às polícias? E quantos desses raros são, efetivamente, investigados ou presos em flagrante, e encaminhados ao Judiciário? Quantos criminosos submetem familiares às sevícias sexuais do incesto, por anos, protegidos pelos inimagináveis segredos de família? Quantos furtos são “esquecidos”, por falta de fé no resultado de denúncias e na recuperação do que foi furtado? Quantos roubos/assaltos e ações de traficantes de drogas não são denunciados por medo das “conseqüências”? E os seqüestros e outras extorsões, resolvidos sem a participação de especialistas das polícias, e que não constam de qualquer estatística?

Crimes econômicos, entre outros que também envolvem autores “importantes”, muitas vezes são objeto de acordos entre cavalheiros e organizações públicas ou privadas; corrupção em todas as suas formas, quilates e origens só são descobertas em meio a outras investigações, quando alguma coisa não ocorre da forma costumeira.

Somando-se esses a outros tipos de crime não mencionados, mas que, efetivamente, ocorreram e ocorrem, chegaríamos a um número mais aproximado da situação a que o Brasil está exposto. E teríamos oportunidade de estudar, debater,
propor, votar e executar medidas mais próximas e adequadas. O fato é que qualquer estudo sério e amplo revelará que a realidade é muito mais grave do que as parcelas de dados setoriais que, recentemente, têm merecido atenção. O Estado precisa de informações de qualidade, completas, para planejar e tornar eficientes suas respostas.