A reforma da Lei de Recuperação de empresas e falência

1 de fevereiro de 2021

Compartilhe:

A dinâmica das atividades empresariais e dos relacionamentos com os shareholders e stakeholders, bem como a crescente complexidade dos processos de insolvência exigem forte integração das competências do administrador judicial (AJ), para que o mesmo esteja preparado para lidar, de forma conjuntural, com relações jurídicas de distintas naturezas.

E isto se mostra de extremo relevo para que o AJ, a partir de uma atuação multidisciplinar, possa fazer uma abordagem ampla e multifacetada do processo, da atividade empresarial e das relações envolvidas, de modo a viabilizar uma melhor e rápida identificação e compreensão acerca de suas reais necessidades, permitindo-se, por sua vez, que essas necessidades sejam abordadas e tratadas com maior agilidade e efetividade possíveis. 

Levando em conta este cenário, conjugado com a premissa de que o AJ deve atuar como verdadeiro agente potencializador de soluções para os processos de tratamento da crise da atividade empresarial, a Lei nº14.112/2020 amplia significativamente o rol exemplificativo de suas funções previstas no art. 22 da Lei nº11.101/2005, adequando-o a nova realidade de atuação, como se denota de alguns pontos tratados a seguir.

Consagrou-se o incremento das atribuições e o reforço da responsabilidade do AJ em relação à sua atividade como agente central na recuperação judicial, considerando que não bastará o comprometimento apenas com as análises realizadas sobre as informações apresentadas pelo devedor, mas sim, que referende a veracidade e a conformidade daquelas informações, o que obriga, em adição, o exame fidedigno do desenvolvimento da atividade empresarial para os fins do processo.

Como se sabe, a previsão dos relatórios do AJ encontra seu principal alicerce no princípio da transparência – que deve permear todo processo de recuperação judicial – buscando viabilizar o mais amplo acesso às informações pertinentes ao andamento daquele feito, além de, obviamente, servir como importante ferramenta de auxílio aos interessados, conferindo subsídios para tomada de decisões fundamentadas e, assim, para salvaguardar a previsibilidade dos efeitos do processo sobre as relações jurídicas por ele afetadas.

Não se olvide, portanto, que os relatórios são um manancial de informação aos credores e interessados sobre todos os dados relevantes à atividade e às finanças da devedora, para que os credores, a partir de tais conhecimentos e das condições previstas no plano de recuperação judicial, possam, por exemplo, avaliar se a empresa é viável, se terá condições de cumprir o plano de soerguimento ou, ainda, qual a melhor decisão a ser adotada sob o aspecto financeiro, de liquidação judicial ou continuação das atividades.

A importância dos relatórios foi inclusive preconizada como “Princípios dos Administradores Judiciais” (Officer Holder Principles) divulgados pelo European Bank for Reconstruction and Development (ERBD).

Ainda temos o Instituto Recupera Brasil (IRB), que em estudo setorial, intitulado “Eficiência da administração judicial para a transparência do processo de recuperação judicial” destacou a natureza sui generis da função do AJ, em distinção a uma auditoria independente, ou mesmo de uma perícia pontual, atestando que a atuação do AJ vai além e garante a transparência e o fluxo confiável de informações aos interessados.

A partir das suas conclusões restou demonstrado, que quanto mais especializada a equipe da AJ e quanto mais experiente for este profissional, melhor a qualidade das análises apresentadas nos respectivos relatórios a fim de garantir a transparência, a informação útil, minuciosa e confiável para o escorreito decurso do processo.

Deve-se considerar, ainda, que enquanto na auditoria o objetivo é, tão somente, conferir um “olhar externo” acerca das demonstrações financeiras, atestando o correto atendimento aos padrões contábeis exigidos, bem como visando dar maior credibilidade àquelas, na administração judicial o escopo é mais abrangente, muito além, inclusive, da relevante função fiscalizatória.

Por este motivo que, na oportunidade de elaboração de artigo científico em coautoria com o Deputado Federal Hugo Leal direcionando um olhar com foco na eficiência econômico-financeira do sistema da insolvência defendemos que a atuação do AJ deve se dar de forma holística tratando as informações financeiras, não financeiras e jurídicas com pertinência, clareza e segurança.

Convida-se à reflexão de que a novel Lei consagra a necessidade de especialização e profissionalização desses auxiliares da Justiça, que, decerto, demandarão cada vez mais medidas para precaver possíveis inconsistências que ensejariam a malfadada assimetria de informação e a ineficiência da seleção adversa.

Como outra consequência positiva, a devedora terá como dever anexo, incrementar sua organização empresarial, buscando ferramentas para otimizar sua operação o que trará benefícios para todos os agentes do processo e, principalmente, colaborará para o soerguimento da empresa em crise, quando viável.

A Lei nº 14.112/2020, por seu turno, concretiza o AJ como agente que viabiliza, facilita e fiscaliza as tratativas e negociações intentadas entre credores e devedores com vistas ao consenso, havendo sido tais proposições inspiradas, principalmente, pelo estudo do tratamento da insolvência no Direito português inserido na conjuntura da União Europeia.

O artigo 17º-D do Código de da Insolvência e da Recuperação de Empresas português (CIRE) trata do regramento das negociações entabuladas entre credores e devedores, dispondo sobre a participação direta do “administrador judicial” com fins de orientação, estipulação de regras e fiscalização do decurso das tratativas e a sua regularidade.

A regulamentação portuguesa prevê a necessidade de as negociações entabuladas no âmbito do Processo Especial de Revitalização (PER) respeitar os chamados Princípios Orientadores aprovados na Resolução do Conselho de Ministros nº 43/2011 que, por sua vez, foram inspirados nos Statement of Principles for a Global Approach to Multi-Creditor Workouts II, chamados INSOL Principles, produzidos pela INSOL International.

Desde a primeira publicação pela INSOL, o Statement of Principles tem conferido maior facilidade para resgates e negociações financeiras ao redor do mundo e ainda são frequentemente utilizados por governos e organizações financeiras, sendo ainda referenciados no Guia Legislativo da Insolvência da UNCITRAL, bem como nos Princípios para Insolvência Eficaz e Direitos dos Credores/Devedores do Banco Mundial.

É sob o manto da boa-fé, cooperação e lealdade que se devem pautar as negociações no processo de recuperação judicial, sendo o AJ um garantidor da aplicação destes princípios básicos nos respectivos acordos.

Ainda neste ponto, a pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos de Processos de Insolvência (NEPI) da PUC-SP e da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), denominada “Observatório da Insolvência”, realizou métricas para análise da efetividade da atuação do AJ e o seu correspondente impacto nos indicadores relevantes do processo de recuperação judicial.

A pesquisa apontou que o principal fator para dilatar o prazo de votação do plano é o número de sessões de assembleia, apurando-se que a cada suspensão efetuada, o tempo de negociação aumenta entre 400 e 700 dias, este último em casos que chegaram a ocorrer seis suspensões assembleares, de modo que a especialização das varas também implica na variação do tempo até a deliberação definitiva do plano, havendo sido constatado uma média de 567 dias nas varas comuns e 407 dias nas varas especializadas.

Para enfrentar esse problema crônico, exsurge a figura do AJ como sendo fundamental no auxílio das tratativas entre as partes a fim de viabilizar a negociação com vistas a corrigir o principal ponto de desalinho que atrasa a votação definitiva dos planos recuperacionais.

Como se vê, e diante de todas as colocações pontuadas, o alargamento das funções do AJ para instrumentalizar sua participação na etapa de negociação, procedendo a fiscalização no decurso das tratativas e assegurando sua regularidade e conformidade com termos convencionados, estabelecendo, ainda, quando necessário e sob autorização judicial, as regras das tratativas, se mostra extremamente salutar.

O AJ se consolida como profissional que fomenta a solução consensual entre as partes, a fim de torná-la acessível e eficaz reduzindo o tempo de deliberação para o plano de reestruturação e consequentemente reduzindo os custos do processo recuperacional – em prol da eficiência do sistema – o que contribui de forma inconteste para o soerguimento e extração do melhor proveito da atividade empresarial.

Acredita-se que a alteração legislativa solidifica a nova roupagem – que já vinha sendo aplicada na prática – de efetividade da atuação do AJ como verdadeiro agente potencializador de soluções e a sua relevante função na “engrenagem” que faz os processos de recuperação e de falência se desenvolverem em fomento e na busca pela manutenção dos proveitos econômicos e sociais.

Notas____________________

1 https://www.ebrd.com/documents/legal-reform/ebrd-insolvency-office-holder-principles.pdf

2 http://www.institutorecuperabrasil.com.br/eventos

3 https://www.editorajc.com.br/edicao/228/.

4https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-/lc/118376176/202005051812/73661601/diploma/indice.

5https://dre.pt/web/guest/pesquisa/-/search/146924/details/normal?l=1

6 https://www.insol.org/.

7 https://abj.org.br/cases/2a-fase-observatorio-da-insolvencia/