A reforma do poder judiciário, suas causas e as propostas para enfrentá-la
14 de julho de 2011
Valter Alexandre Mena Juiz de Direto do TJESP
(Artigo originalmente publicado na edição 92, 03/2008)
Ninguém discorda: o Judiciário está em crise, fazendo-se desacreditado pela sua exagerada morosidade, cujo sinônimo é a sensação de impunidade, que estimula a transgressão das leis, a violência, o descumprimento das obrigações, o que faz aumentar a quantidade de litígios e produz mais morosidade. É um círculo vicioso perverso, aparentemente sem solução. Aliado a isso, aponta-se também a imprevisibilidade das decisões, tudo a produzir o descrédito na justiça oficial e inibir investimentos estrangeiros.
Com o declarado objetivo de abrir a “caixa-preta” (expressão cunhada pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva), o Ministério da Justiça, através da Fundação Getulio Vargas/São Paulo, elaborou e publicou em agosto de 2004 o “Diagnóstico do Judiciário”, apontando a baixa produtividade e a pouca eficiência desse Poder. Para resolver tudo isso, aprovou-se a chamada Reforma do Judiciário, iniciada com a PEC nº 96/1992, depois PEC nº29/2000, transformada na E.C. nº 45, de 08/12/2004.
Na verdade, dezenas de análises feitas por renomados estudiosos do Direito repetem o que se tornou um chavão: a causa da morosidade é o excesso de recursos processuais, pondo-se necessária a reforma da legislação processual; secundariamente, fala-se na necessidade de aumentar a quantidade de juízes e implantar/melhorar a informatização (mas não se fala em aumentar o insuficiente limite de despesas fixado pela Lei de Responsabilidade Fiscal). Ou seja: atribui-se a outrem (ao Legislativo e ao Executivo) a responsabilidade exclusiva pela solução dos problemas – a elaboração de novas leis.
A Emenda Constitucional nº 45 trouxe algumas novidades, destacando-se: a criação do Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e censório dos deveres funcionais dos juízes (art. 103-B); a ampliação da competência da Justiça do Trabalho e da Justiça Militar (art. 114 e 125), reduzindo a competência da Justiça Estadual; a possibilidade de descentralização dos Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais do Trabalho e dos Tribunais de Justiça em câmaras regionais (art. 107, § 3º, 114, § 2º e 125, § 6º); alçou à categoria de direito e garantia fundamental a “razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (art. 5º, LXXVIII), e dentre esses meios a proibição de férias coletivas (art. 93, XII) e “número de juízes na unidade jurisdicional proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população” (art. 93, XIII); finalmente, determinou “alterações na legislação federal objetivando tornar mais amplo o acesso à Justiça e mais célere a prestação jurisdicional” (art. 7º da Emenda). Também instituiu a Súmula Vinculante, objeto de exame apartado.
A reforma processual é realmente necessária, especialmente no que se refere aos recursos (o Poder Público é um dos maiores recorrentes); ao complexo processo de execução; à desjudicialização do inventário, partilha, separação/divórcio consensual (inexiste lide), racionalização do julgamento de questões repetitivas – tanto que vários Projetos de Lei já foram encaminhados ao Legislativo.
O aumento da quantidade de juízes (e dos recursos materiais) também é necessário, em face do crescimento da população (e dos litígios), se comparada com a de outros países, apesar da absoluta inconfiabilidade dos dados. Mas não é correto comparar nosso país com outros do Primeiro Mundo, nem com países de cultura totalmente diversa, assim como é impossível comparar São Paulo (4.541.332 processos julgados na primeira instância da Justiça Comum em 2003) com o Piauí (dados ignorados); ou 367.005 processos distribuídos em primeira instância da Justiça Federal, contra apenas 8.069 no Piauí (fonte: Diagnóstico citado). Demais disso, não é apenas no Judiciário que essa relação população/juiz é desproporcional: também a quantidade de médicos é insuficiente para atender a toda a gente, assim como a de professores, dentistas, ônibus, trens, hospitais, penitenciárias, áreas verdes, água potável e até energia elétrica… Faltam vagas para o estacionamento de veículos nas residências e nas lojas, que por isso ficam nas ruas, ocupando o espaço destinado ao “trânsito” (sinônimo de movimento), ocasionando os conhecidos congestionamentos (um dia os urbanistas se darão conta disso, ignorado pelo Plano Diretor da Cidade). Mas como não é possível aumentar a quantidade de tudo o que falta (e sempre falta mais, porque a demanda é sempre crescente), a saída é otimizar os recursos disponíveis e distribuí-los de forma mais eqüitativa; é se voltar para as “pequenas coisas”, sem desprezo das “grandes soluções” e sem nunca esquecer que, paralelamente ou independentemente do aumento de cargos de juiz, sobreleva o aumento, em quantidade e qualidade, de vagas nos serviços auxiliares.
Nada disso, entretanto, frutificará sem a necessária ‘refor-ma gerencial’.
É certo que o chamado Controle Externo do Judiciário, representado pelo Conselho Nacional de Justiça, constituído por elementos estranhos à estrutura do Judiciário, traz embutido inquestionável risco para a independência do juiz na exata medida em que pode determinar sua remoção, disponibilidade ou aposentadoria, além de outras sanções administrativas (art. 103-B, § 4º, III), com usurpação do poder das Corregedorias Gerais da Justiça Estadual, dada a sua composição majoritariamente federal. Isso é fonte de fundada preocupação.
Não é menos certo, entretanto, que também lhe compete “VI – elaborar semestralmente ‘relatório estatístico’ sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário; VII – elaborar ‘relatório anual’ – propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do STF a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa”.
Qual a razão dessa “indevida interferência” na autonomia dos Judiciários Federais e Estaduais? Certamente o fato de que, em vários Estados, simplesmente não se elaboram estatísticas gerenciais, como foi constatado no referido e tão combatido Diagnóstico e já o tinha sido pelo promotor de justiça Carlos Otávio Bandeira Lins no excelente artigo “Justiça de São Paulo: ⅓ dos processos, 1/6 dos juízes” publicado na “Revista Diálogos e Debates”, Escola Paulista da Magistratura, Ano 2, no 4, ed. 8, junho de 2002.
Sob tal aspecto, portanto, o Conselho é bem-vindo: não é possível administrar sem dados confiáveis, como não basta dispor de dados sem saber lê-los e interpretá-los e sem ter vontade política de alterar as distorções que eles anunciam.
A outra grande e repudiada inovação trazida pela Reforma do Judiciário é a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal, “após ‘reiteradas’ decisões”, editar Súmula Vinculante sobre matéria constitucional (CF, art. 103-A), submetendo todo o Poder Judiciário e toda a Administração Pública (a símile do efeito vinculante das decisões de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, CF, art. 102, § 2º). A PEC nº 29-A (renumeração da PEC nº 29, a ser votada em segundo turno) prevê a edição pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Tribunal Superior do Trabalho de súmula impeditiva de recurso.
Não se justifica o repúdio a tais inovações, sob pretexto de amordaçamento dos juízes de primeiro grau.
Abrindo parêntese: falou-se, de início, que uma das causas da crise do Judiciário seria a ‘imprevisibilidade das decisões’, a acarretar a falta de confiança de investidores estrangeiros, que cada vez mais celebram contratos com cláusula de juízo arbitral para não submetê-los ao Judiciário. Ora, essa imprevisibilidade e a divergência de decisões decorrem da péssima redação das leis e da excessiva quantidade delas (especialmente Medidas Provisórias, que têm força de lei e são editadas diariamente como se fossem receitas de bolo). Em entrevista à “Folha de São Paulo” (14/04/97), o ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, que já foi ministro da Justiça e antes deputado federal, confessou, ex cathedra: “Eu tive uma atividade muito intensa no Congresso e cheguei à seguinte conclusão: a lei, quanto mais clara, menos maioria consegue (…). Então, quando não há uma hegemonia de pensamento dentro do Congresso, a ‘ambigüidade da lei’ é condição para sua aprovação”.
Natural e previsível, portanto, mas exclusivamente em primeiro grau – do que decorre a divergência entre os mais variados juízes, cada qual interpretando a lei de modo diverso –, a ausência de perfeita “previsibilidade” das decisões judiciais. O que não se admite, porém, é a persistência dessa divergência nos Tribunais estaduais, cuja missão é justamente a de uniformizar a jurisprudência no âmbito estadual, nem a divergência dentro dos Tribunais Superiores, que têm a missão de uniformizá-la em âmbito nacional.
Ora, essa uniformização, prevista nos artigos 476/479 do Código de Processo Civil, se exterioriza em Súmulas ou Enunciados da jurisprudência predominante, que ‘vinculam o próprio Tribunal’ que as expediu (e não apenas os juízes de primeiro grau).
É necessário acabar com a “justiça lotérica”: dentro do mesmo Tribunal, Câmaras ou Turmas decidem de forma antagônica, como se cada uma delas não representasse o próprio Tribunal, mas cada qual um tribunal distinto. Como explicar que dois funcionários em idêntica situação dentro da mesma repartição, demandando o mesmo direito, recebam decisões em sentido oposto?
Na sessão plenária de 09/03/2005, apreciando o RE nº 438.639, o Supremo Tribunal Federal enfrentou a seguinte questão: a quem compete apreciar ação indenizatória de dano material e moral decorrente de acidente do trabalho movida pelo empregado contra o empregador com fundamento no direito comum (CF, art. 109 e 114, com a EC nº 45/2004)? Os ministros Carlos Ayres Britto e Marco Aurélio votaram pela competência da Justiça do Trabalho. Após mais de uma hora de acalorados debates, prevaleceu a tese inaugurada pelo voto divergente do ministro Cezar Peluso: compete à Justiça Comum estadual. E isso com fundamento em expressão nova cunhada pelo ex-desembargador Peluso, a necessidade de “unidade de convicção”, assim explicada: a ação acidentária, movida contra o órgão previdenciário, poderia ser julgada improcedente pela não-comprovação da ocorrência do fato lesivo; se a ação contra o empregador fosse julgada pela justiça obreira, poderia ocorrer contradição, reconhecida a ocorrência daquele mesmo fato histórico – o que não aconteceria se a decisão fosse da justiça comum (“ainda mais agora com a extinção dos tribunais de alçada”), porque, em grau de recurso, o Tribunal de Justiça não proferiria duas decisões antagônicas…
A tese da “unidade de convicção”, triste dizer, é justamente o que não tem ocorrido na prática, sobre inúmeras questões, variando o desfecho de acordo com o órgão fracionário (Câmaras) do Tribunal, como se não fosse o mesmo Tribunal.
A extinção da jurisprudência lotérica atende não apenas ao princípio da segurança jurídica, mas também ao ‘princípio da economicidade’. Diariamente são ajuizadas centenas de ações repetitivas, especialmente as dirigidas contra o poder público, abordando a mesma tese jurídica já apreciada e decidida várias vezes; sobrevêm contestações já conhecidas, sentenças repetitivas, razões e contra-razões estereotipadas e acórdãos previamente esperados, num ou noutro sentido. Inexistindo súmula a apoiar a posição do autor ou a posição do réu, tem-se petição inicial extensa, contestação extensa, sentença extensa, acórdão extenso – puro trabalho braçal e sem qualquer utilidade. Existindo súmula, a sentença seria proferida em poucas linhas, assim também o acórdão do (improvável) recurso, e tudo rapidamente, diminuindo ou eliminando a morosidade e o desprestígio do Judiciário.
Em memorável voto no RE no 104.898-1–RS – STF, Primei-ra Turma, em 26/03/85, o ministro Oscar Corrêa observou: “O Regimento Interno da Corte, expressamente, estabelece que ‘a citação da súmula, pelo número correspondente, dispensará, perante o Tribunal, a referência a julgados no mesmo sentido’” (art. 102, § 4o); e isto, disse-o a “Explicação Preliminar” da publicação das súmulas, não somente “para proporcionar maior estabilidade à jurisprudência, mas também facilitar o trabalho dos advogados e do Tribunal, simplificando o julgamento das questões mais freqüentes. (…) Prado Kelly lembra palavras de Victor Nunes Leal, ‘o principal responsável pela iniciativa e por sua execução’, em conferência em Belo Horizonte (12/8/1964), ao justificar a nova organização de nossos trabalhos, evitando os escolhos de uma jurisprudência impositiva: ‘Firmar a jurisprudência de modo rígido não seria um bem, nem mesmo seria viável. A vida não pára, nem cessa a criação legislativa e doutrinária do Direito. Mas vai uma enorme diferença entre a mudança, que é freqüentemente necessária, e a anarquia jurisprudencial, que é descalabro e tormento. Razoável e possível é o meio termo, para que o Supremo Tribunal possa cumprir o seu mister de definir o Direito federal, eliminando ou diminuindo os dissídios de jurisprudência’” (RTJ 113/454-459).
Colhe-se em Notícias do STJ, 24/04/2003 (propostas do ministro Ruy Rosado de alteração no sistema recursal civil para agilizar e facilitar o processo de julgamento dos processos): “uma das medidas sugeridas é a uniformização da jurisprudência em matéria infraconstitucional; todo julgamento de recurso especial por divergência deve resultar na elaboração de um enunciado. Esse será aplicado a todos os casos em que for renovada a mesma questão. Ainda nesse sentido, a súmula deve ter efeito impeditivo do recurso, ajudando no combate à morosidade na Justiça. Sendo assim, decisão conforme súmula de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal Justiça não admitirá recurso”.
Injustificável a resistência do Tribunal de Justiça, cujo Regimento Interno disciplina a Uniformização da Jurisprudência como “processo incidente”, desde que suscitado pelo juiz, pela parte ou pelo terceiro interessado (artigos 644/656) em sumular sua jurisprudência, sob fundamento de se tratar de “corte de passagem”, sujeito à revisão por Tribunais Superiores. Ora, então também é inútil decidir os recursos, porque são igualmente revisíveis pelo Terceiro Grau. O fenômeno não impediu o extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, nem os Tribunais de Justiça do Rio de Janeiro, do Rio Grande do Sul, do Distrito Federal, de Minas Gerais, da Paraíba, os Tribunais Regionais Federais e a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais de editar súmulas. Firmada a jurisprudência no Estado, isso se presta para “facilitar o trabalho dos advogados e do Tribunal, simplificando o julgamento das questões mais freqüentes”, mas também para facilitar o trabalho dos juízes de primeiro grau, defrontados com hipóteses sumuladas, com inexorável agilidade processual e redução do custo “invisível” da máquina judiciária.
Na verdade, não há distinção entre as atuais súmulas e as futuras, ditas com efeito vinculante: discordando de umas e outras, declarará o juiz sua convicção, mas não deverá, isto sim, contrariá-las, dando ao vencido a falsa ilusão de vitória e procrastinando o desfecho da demanda, que será revisto em sentido contrário em grau de recurso. Afinal, não se pode ignorar que “The law is what the Supreme Court says it is”, nas palavras de Hart.
O papel fundamental do juiz, em tal hipótese, é o de verificar se o enunciado é adequado para o caso concreto, se este se enquadra perfeitamente na proposição. Aliás, não há, aqui, nenhuma novidade: isso o juiz já faz em relação ao texto legal, igualmente abstrato, através dos processos de ‘subsunção’ (ato de subordinar o caso concreto à norma jurídica geral e abstrata) e de ‘imputação’ (laço que une a conseqüência jurí-dica à hipótese normativa). O cuidado que se exigirá, mas que é exigível também hoje, é com a não aceitação pura e simples do enunciado (texto gramatical), mas com a análise dos precedentes que desaguaram na súmula, para verificar “se a decisão vinculante foi tomada em demanda em que os fatos são substancialmente iguais aos que foram postos na nova ação” (ministro Carlos Velloso). Convencido de que o caso concreto não se subsume à descrição sumular, não a aplicará da mesma forma quando não se subsumir o fato à descrição legal.
Conclusão
Cândido Rangel Dinamarco, após assinalar que a Comissão de Reforma do Código de Processo Civil, avessa a conceitualismos acadêmicos, objetivava uma justiça mais rápida e mais efetiva, observou: “Não tem acesso à justiça aquele que sequer consegue fazer-se ouvir em juízo, como também todos os que, pelas mazelas do processo, recebem uma justiça tarda ou alguma injustiça de qualquer ordem”. José Roberto dos Santos Bedaque lembra que “o sistema perfeito, que ofereça segurança e tempestividade quanto ao resultado, não existe em país algum do mundo. A eliminação da distância entre os objetivos contidos no modelo e a realidade dos processos constitui o grande desafio do processualista
(…)”.
A elite jurídica tem oferecido propostas científicas para enfrentar a questão.
Sem embargo, e humildemente, formulo propostas mais simples, mas não menos sérias, com o mesmo objetivo, sem receio de que seriam repudiadas por administradores de grandes empresas. E sem pretensão comparativa, recordo a figura do ministro Victor Nunes Leal, relator da comissão que instituiu a Súmula de Jurisprudência Predominante, aprovada na plenária de 13/12/63, no perfil traçado pelo ministro Sepúlveda Pertence: “Victor Nunes possuía um talento multiforme, mas também um absoluto despojamento de pompas e vaidades, que lhe permitia, embora ministro, entregar-se a tarefas aparentemente humildes de implementação de rotinas burocráticas”.
Sem a Reforma Gerencial, não há solução para reduzir a morosidade e otimizar a prestação jurisdicional.
Valter Alexandre Mena
Juiz de Direito Titular da 3ª Vara da Fazenda
Pública da Capital TJ/SP