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A ruptura do Estado de direito

31 de agosto de 2008

Orpheu Santos Salles Editor

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O eminente e consagrado jornalista Carlos Chagas publicou em sua coluna no Tribuna da Imprensa, uma verrinosa crítica à situação que se vivencia hoje no País; sobre a falência do Estado de Direito raiando o anarquismo, cujo teor principal transcrevemos, para conscientização e espanto dos nosso leitores.
“Conclui-se ser desleal a concorrência entre o Estado de Direito e o crime organizado. Porque, se procurar emprego honesto, um jovem desfavorecido economicamente, com pouca ou nenhuma escolaridade, morador da favela, encontrará no máximo o salário mínimo de 415 reais por mês. Caso decida aderir aos bandidos que controlam e até infernizam sua vida, disporá de muito melhores opções.
Para ingressar nas Forças Armadas, de preferência pará-quedista ou fuzileiro naval, a fim de preparar-se para transferir conhecimentos bélicos ao narcotráfico, além dos vencimentos e do apoio dado pelas corporações oficiais, receberá do crime organizado um abono de 300 reais por semana. Conseguindo inscrever-se numa quadrilha qualquer, seja como ‘instrutor’, ‘avião’, ‘soldado’ ou ‘fogueteiro’, sua remuneração poderá chegar a 1.500 reais, também por semana. Após obtida essa experiência, terá de ser aprovado em diversos ‘cursos’, como ‘guerra na selva’, ‘guerrilha urbana’, ‘natação em esgoto’ e similares. Depois, o céu é o limite, como ‘gerente’, ‘empresário’ e ‘controlador de ponto de venda de drogas’.
Dá para o humilhado, desprezado e indignado menino hesitar?
Do Poder Público sofre apenas abandono e truculência, quando a Polícia sobe o morro. Do narcotráfico, proteção para ele e sua família, remédios, alimentação, até ajuda em dinheiro para velórios, e festinhas de aniversário. Seus valores são outros, ainda que o risco infinitamente maior. Mas o que tem a perder o indigitado jovem, senão a própria vida à qual dedica importância relativa?
Esta realidade explica porque o crime organizado cresce, desce o morro e começa a dominar o asfalto.
Fazer o quê, do lado de cá? Os policiais que não se corrompem ganham bem menos do que seus adversários. Sofrem mais, até porque boa parte deles obriga-se a morar na favela, mesmo escondendo sua condição profissional e sua farda. Em termos de armamento, perdem sempre. Para não falar na permanente intranqüilidade. Muitos ingressam nas milícias, engodo logo desvendado, pois eles utilizam os mesmos métodos dos criminosos, explorando as comunidades e submetendo-as a constrangimentos parecidos, tudo dependendo da altura em que se encontram os casebres: mais para cima, submetem-se ao narcotráfico; na subida do morro, às milícias.
Solução que não dispõem sequer os candidatos a prefeito que insistem em fazer campanha nas favelas, a maior parte repelida ou sujeita a pedir licença aos dois lados.
É a falência do Estado de Direito.”

O crime organizado já desceu o morro!
O que está acontecendo no Rio de Janeiro, com os bandidos descendo dos morros e enfrentando diariamente a Polícia, já não constitui caso isolado.
É o enfrentamento contra o Poder constituído da Nação.
Os ultrajes aviltantes cometidos à luz do dia ultimamente contra a Justiça Eleitoral, escorraçada, juntamente com candidatos das favelas, pelos chefes das quadrilhas de traficantes e milicianos, não podem continuar impunes sob pena da implantação permanente da desordem e do regime da anarquia.
A brutalidade dos crimes cometidos já ultrapassou a delinqüência comum, impondo-se a tomada rápida, enérgica e fulminante de atitudes que ponham cobro a essa iniqüidade que afronta e denigre toda a nacionalidade brasileira.
A população ordeira e trabalhadora, que vive nos morros e favelas, não pode continuar sujeita aos desmandos das súcias criminosas que comandam essas infelizes e desgraçadas comunidades.
Os que, vez ou outra, se opõem e rebelam contra os criminosos correm o risco de serem acometidos por atos de barbárie, como terem seus corpos queimados ainda vivos.
O mártir dos jornalistas, Tim Lopes, que teve a coragem de subir ao morro para investigar e escrever sobre o tráfico, terminou cruelmente trucidado e queimado. Apesar das investidas da Polícia Militar e da vinda das tropas do Exército, a imprensa continua impedida de freqüentar e trabalhar nos morros e favelas, por ordem e determinação das chefias das quadrilhas. O preceito constitucional do direito de ir e vir é letra morta.
A contundente matéria do jornalista Carlos Chagas reflete implicitamente que parte da culpa dos infortúnios, misérias e desgraças que ocorrem nos morros e favelas do Rio de Janeiro é também dos governos federal, estadual e municipal que, desde a abolição da escravatura e durante toda a vida republicana até os dias de hoje, descuraram no atendimento social e educacional dos forçados moradores dessas comunidades, com destaque especial à falta de condições de manutenção do emprego.
As favelas cresceram desordenadamente, sem o mínimo de atendimento urbanístico, saneamento e outras necessidades pequenas, mas imprescindíveis. As vias de acesso praticamente inexistem, impossibilitando pelos estreitos caminhos entre os barracos a subida de uma ambulância, do Corpo de Bombeiros e até da Polícia. Essa pobre gente sempre foi esquecida, a não ser no período das eleições.
E isto, infelizmente, vai continuar a piorar, com a descida do morro, pelo crime, cada vez maior. De nada adiantará o enfrentamento. Continuarão as mortes, o tráfico e as milícias, porque o crime continuará enquanto perdurar a falta de assistência social governamental ao mínimo necessário para redimir essa hecatombe bárbara que domina os morros e favelas, e recrudescem nas suas investidas violentas contra inocentes crianças, homens e mulheres que residem na parte melhor aquinhoada da indefesa sociedade.
O município do Rio de Janeiro corre o risco de ver surgir um novo “Antônio Conselheiro” ou um “Lampião modernizado”, e aí, trágica e desgraçadamente, teremos uma guerra anárquica na cidade.

* Em tempo: A série de artigos sobre acontecimentos ocorridos em 1964 continuará na próxima edição.