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A Segurança Jurídica

5 de novembro de 2001

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 “A Justiça não se enfraquece quando o poder lhe desatende. O poder é que se suicida, quando não se curva à Justiça.”

RUI BARBOSA

O regime democrático pressupõe segurança jurídica, e esta não se coaduna com o afastamento de ato jurídico perfeito e acabado mediante aplicação de lei nova.A paz social embasa-se na confiança mútua e, mais do que isso – em proveito de todos, em prol do bem comum -, no respeito a direitos e obrigações estabelecidos, não se mostrando consentâneo com a vida gregária, com o convívio civilizado, ignorar-se o pacto social, a única possibilidade de entendimento. Tampouco condiz com a democracia a modificação das regras norteadoras das relações jurídicas pelo enviesado ardil de empolgar-se lei, conferindo-lhe eficácia capaz de suplantar garantias constitucionais, isso a partir de simples interpretação. Em assim não sendo, ter-se-iam o caos, a babel, a unilateralidade das definições, em nada influindo os compromissos assumidos, como se a lei vigente fosse a da selva, e não a de um mundo desenvolvido.

Recentemente, relatei um processo em que assentei como premissa fática a existência de ato jurídico perfeito e acabado. Na hipótese, os sindicatos em litígio haviam pactuado a reposição do poder aquisitivo dos vencimentos dos prestadores de serviços. No acordo, consignou-se ainda que as empresas manteriam a forma de atualização salarial convencionada, na hipótese de lei nova introduzir política salarial menos favorável. Por este ajuste, excluía-se, de modo claro e preciso, a incidência de qualquer legislação que viesse a dispor em contrário. Reafirmou-se, de maneira categórica – sem qualquer vício, em se tratado da manifestação de vontade -, que o pactuado fez-se em caráter definitivo.

Além disso, diante da oscilação impar na regência legal do tema, resultante de sucessivos planos econômicos com os quais se pretendeu escamotear a inflação já ocorrida, remeteu-se, no acordo, pedagogicamente, à garantia constitucional de que lei nova não prejudicará o direito adquirido, a situação jurídica perfeita e acabada, e a coisa julgada. As partes contratantes, ao transacionarem, estipularam condições de trabalho a serem  realmente atendidas, tornando extremo de dúvidas a seriedade do ajuste, a efetividade almejada, tudo em consonância com o arcabouço normativo da época.

Mazelas

O caso de que ora se cuida possui características que o distanciam de outros com os quais tem deparado a Corte Suprema. É que, cientes da habitual pretensão de corrigir-se a maioria das mazelas deste imenso Brasil por meio de novas leis, as partes foram explícitas ao rechaçarem a aplicação de posterior ato normativo. Buscaram preservar, dessa forma, principalmente, reajuste que refletisse de fato a inflação passada. Vale repetir: os sindicatos estabeleceram que, na hipótese de nova lei introduzir política salarial menos favorável, prevaleceria o que firmado, ou seja, o reajuste dos vencimentos até mesmo aquém, em princípio, da inflação, porque previsto em base inferior – 90% da variação de preços das mercadorias
adquiridas pelo trabalhador ante a necessidade de sustentar a si e a própria família. Cumpre frisar, aliás, que, em face da transação efetuada, essa cláusula inseriu-se em um grande todo. Ambas as partes renunciaram às posições iniciais, fazendo-o, é de presumir-se, com a devida assistência técnica, de maneira responsável, porque definitiva. À luz dessa racionalidade, foi possível aos sindicatos celebrar a convenção – espécie de contrato coletivo -, evitando a greve e, portanto, a interrupção dos serviços, a paralisação dos meios de produção. E para que isso ocorreu? Para, após, desequilibrando-se a equação, uma das partes, logo a mais forte na relação jurídica, com fundamento na interpretação de uma lei nova – e em verdadeiro passe de mágica, diria melhor, em autêntico ato de força -, fulminar o pacto, recusando-se a cumpri-lo até o fim? A resposta não há de ser outra senão a negativa.

Desrespeito

Entendimento diverso implicaria desdém ao que soberanamente contratado no âmbito dos direitos disponíveis, bem como desrespeito à Lei Fundamental, resultando, ao fim, em nefasta insegurança jurídica, no que traz à baila a idéia de que de nada vale renunciar a direitos para se ter uma vida harmoniosa, sem sobressaltos, propiciadora do bem-estar social e, do lado empresarial, uma rotina de duradoura prosperidade, considerados os meios de produção.

Fechar os olhos a esse contexto fático e legal é desprezar a imutabilidade do que acordado e, sobretudo, a supremacia da Carta da República, diploma que a todos submete, enquanto existente a noção de Estado Democrático de Direito. O Supremo Tribunal Federal tem a guarda da Constituição e não pode, sob pena de comprometimento da própria credibilidade, escusar-se desse dever, imposto expressamente pelo legislador constituinte de 1988. Paga-se um preço por se viver em uma democracia, o qual não chega a ser exorbitante, importando apenas na observância irrestrita ao que validamente pactuado pelas partes e previsto no arcabouço normativo. Urge o restabelecimento da confiança dos brasileiros naquilo que, em conformidade com os ditames legais, foi posto no papel; cumpre reafirmar a certeza do pleno funcionamento das instituições, eliminando de vez a suposição de que, ao sabor de circunstâncias extravagantes, é possível alterar contrato em vigor e dar o dito e sacramentado pelo não-dito, a ponto de prejudicar, o que é pior, a parte mais fraca da relação jurídica, em que pese ao envolvimento, tão somente, da manutenção parcial do poder aquisitivo dos salários, tratando-se não de aumento, mas de simples reajuste, da recuperação do valor real indispensável à sobrevivência do trabalhador e dos que dele dependem. A Constituição Federal não há de ser tida como um documento lírico, que pode ser metamorfoseado em função dos acontecimentos e da vontade das maiorias reinantes.