A sociedade na justiça: por quê?

8 de novembro de 2024

André Augusto Salvador Bezerra Juiz de Direito do TJSP / Professor do Mestrado Profissional da Enfam

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Com o presente texto, pretende-se trazer, a um breve debate, fundamentos sociais para a posição de protagonismo que o Judiciário alcança no cotidiano da população brasileira.  Trata-se de tema crucial para a formulação de políticas judiciárias pelos órgãos de gestão do Sistema de Justiça. Afinal, para se ter atividade jurisdicional eficiente e eficaz, é preciso que se compreenda o que gera tamanha procura pela sociedade. 

A discussão proposta nasceu de inquietação decorrente de tese, comumente vista na imprensa e em publicações jurídicas em geral, que reduz a intensa judicialização do país a uma única “causa”: a excessiva conflituosidade da sociedade brasileira. Segundo seus defensores, o caráter social conflituoso termina por gerar a tramitação de milhões de processos no Judiciário, muitos dos quais de duvidosa utilidade.

Além de reducionista, evidenciando seu erro epistemológico (fenômenos sociais são normalmente complexos, não redutíveis a uma causa), essa tese termina por atribuir à sociedade brasileira uma certa “culpa” pelo protagonismo judicial.  Ora, uma mãe periférica que ajuíza ação para obter vaga de creche para seu filho é culpada pela judicialização? O trabalhador que ingressa com reclamação trabalhista por direitos violados tem culpa pelo número de processos? O portador de doença é culpado por ter de ingressar com ação na Justiça para conseguir medicamento gratuito?

O artigo considera, então, questionamentos como os apresentados para, sem desconhecer o caráter litigioso de sociedade tão desigual como a brasileira, desvencilhar-se da tradição autoritária da prática política de se atribuir a pessoas violadas em seus direitos a culpa por problemas estruturais do país. 

Todo o conteúdo exposto consiste de síntese de achados obtidos em pesquisa de pós-doutorado, realizado no curso de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo.  O produto completo de toda investigação científica empreendida a esse respeito encontra-se no livro A Sociedade na Justiça, recentemente lançado pela Editora Amanuense, que, desde já, convida-se à leitura.

O contexto da judicialização – Na busca do objetivo proposto, parte-se da conhecida constatação de o Poder Judiciário ter alcançado protagonismo jamais visto. Trata-se de fenômeno perceptível não apenas pelos mais de 80 milhões de processos que tramitam em todo o Brasil, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mas também pelos julgamentos de conflitos de notável repercussão coletiva. 

Esse quadro gera preocupação, sobretudo quando se considera que a democracia requer minimamente participação eleitoral. A intensa atuação do Judiciário no cotidiano da população implica proporcionar protagonismo a quem não é eleito pelo povo e que tem a função de decidir conforme parâmetros técnicos (jurídicos), nem sempre suficientes para a solução de problemas sociais que requerem, sob qualquer democracia, amplos debates públicos.  

Por outro lado, há de se considerar que existe tamanha judicialização porque parcela da sociedade conclama o Judiciário a atender a suas demandas. Magistrados(as) não propõem as ações judiciais que apreciam. Limitam-se a responder pedidos formulados por quem procura o Judiciário como espaço de luta por suas reivindicações.

Por que, então, tanto se busca pelo Judiciário?

Não é de hoje que o problema colocado enseja reflexões. No campo científico, destacam-se estudos que ressaltam o contexto brasileiro pós-Constituição de 1988, apontando a respectiva promulgação na origem do fenômeno. Há, nesse sentido, quem saliente a extensão e os excessivos detalhes da escrita do texto da Constituição; há ainda quem sublinhe a circunstância do mesmo texto ser formado prevalentemente por normas programáticas, restando ao Judiciário o trabalho de delimitar seu alcance.

De fato, é difícil negar a promulgação do documento constitucional de 1988 como marco fundamental para a intensa judicialização do país. Também não é fácil negar o tamanho do seu texto ou o conteúdo aberto de seus dispositivos como fatores importantes para o fenômeno.

Mas sem ignorar a importância dessas teses, é preciso ir adiante para se confrontar a extensão, o detalhamento e a redação do texto da Constituição com indicadores sociais presentes no corrente século XXI. Tal confronto revela que o protagonismo judicial está relacionado ao quadro social do país, tendendo, sob a atual circunstância, à inevitabilidade.

Fundamentos sociais – No presente ponto da exposição, cabe lembrar que os trabalhos da Assembleia Constituinte de 1987-1988 ocorreram sob expressiva participação popular. Como produto dessa circunstância, o texto final da Constituição apresentou a definição de direitos amplos referentes à isonomia de raça e gênero, à redução das desigualdades nos contratos, a sistemas de saúde e de educação acessíveis, entre outras estipulações que possuem em comum o objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3o, I). 

O problema é que muitas das normas constitucionais não são de fácil concretização. Estabelecer, por exemplo, igualdade de raça e gênero ou que educação e saúde são direitos de todos não significou que, logo após o início da vigência da Constituição, haveria igualdade e serviços públicos de qualidade para todos. Tal circunstância, contudo, não retira a exigibilidade dessas normas.  Conforme exposto por Konrad Hesse, na obra A Força Normativa da Constituição, “a Constituição jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que se assenta na natureza singular do presente”.

Transcorridas, porém, algumas décadas de vigência do texto constitucional, verifica-se que discriminações históricas do Brasil permanecem fortes. O país ainda é um dos 10 mais desiguais do mundo, o que escancara um estado de vivência com duas realidades radicalmente opostas, tendo-se, de um lado, a realidade das normas socialmente inclusivas e, de outro, a realidade de uma vida socialmente excludente.

Voltando aos questionamentos iniciais deste artigo, isso significa, em outras palavras, haver a realidade dos direitos definidos na Constituição de 1988 subsistindo em conjunto à realidade da mãe periférica que não consegue matricular seu filho em creche, do trabalhador a quem não são disponibilizadas condições dignas de trabalho e, fechando os exemplos, do portador de moléstia que não consegue medicamento gratuito.  

A partir daí, pode-se alcançar a compreensão de relevante fator social para haver o protagonismo judicial. A sociedade chama o Judiciário para a concretização de direitos não efetivados, tornando-o instrumento de redução de distância entre a realidade das normas e a realidade da vida.

Dados numéricos confirmam essa conclusão. O Relatório 100 Maiores Litigantes do CNJ, apesar de publicado uma única vez (2012), mostrou que o setor público federal, o setor público estadual e o setor público municipal ocupam a posição de, respectivamente, o primeiro, o terceiro e o quarto maior litigante a compor o polo passivo (o réu) dos processos em trâmite; na segunda colocação, encontram-se os bancos. Tais dados se assemelham aos publicados em documentos mais recentes, tal como se vê na seção Painel Grandes Litigantes, que se encontra no Relatório Justiça em Números do CNJ de 2024.  

Os números colocados revelam existir a procura majoritária pelo Judiciário para exigir direitos daquele que deve, primordialmente, efetivar as normas constitucionais por intermédio de políticas adequadas: o Estado (os “setores públicos”). Mesmo nas hipóteses em que este não seja réu, situam-se, em grande parte de tal pólo processual, entes privados (bancos) que se submetem a regulações estatais, assim realizadas para reduzir as desigualdades em contratos. 

Importante ressalvar, por fim, que não se está a sustentar que a verdadeira descoberta social do Judiciário ocorra exclusivamente em razão da não efetivação de normas e consequentes violações de direitos. Não se reduz o fenômeno a uma causa. Mas a realidade é que o teor de discussões presentes nos litígios e o perfil majoritário dos réus dos processos indicam que o abarrotamento do Judiciário deve muito à incapacidade de instituições do Estado ou por este reguladas em promover, dentro de suas atribuições, inclusão social, tal como constitucionalmente determinado.

Observações finais – Ao definir uma série de direitos aplicáveis judicialmente sobre uma realidade fática de tantas discriminações, a Constituição de 1988 elevou o Judiciário a uma notável relevância. Trata-se de circunstância que parece inevitável em um dos países mais desiguais do mundo.

É certo que a constatação exposta consiste de mero diagnóstico de problema, não sendo apto a apurar suas consequências. Nem sequer há espaço em um artigo, como o presente, para o aprofundamento de questões tão complexas.

A pesquisa de pós-doutorado, que inspirou este texto, contudo, apontou que o fenômeno diagnosticado gera possíveis impactos negativos e positivos para a vida política democrática brasileira. O livro A Sociedade na Justiça (Editora Amanuense) contém descrição detalhada deles. 

De toda forma, o diagnóstico exposto é suficiente para evidenciar o erro de eventuais políticas judiciárias baseadas na “culpa” da sociedade pelo protagonismo judicial.  Definitivamente, não parece lógico culpar quem sofre violações de direitos por, justamente, procurar reparar judicialmente seus direitos.  

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