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“A vida é a arte do encontro e a reforma do Judiciário trouxe essa possibilidade renovada”

3 de janeiro de 2019

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Magistrada com passagens por comarcas do interior, da Baixada Fluminense e da Zona Oeste carioca, Cristina Tereza Gaulia é desembargadora há sete anos. Ainda como juíza, participou da comissão que discutiu, no âmbito da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj), a criação da Justiça Especial no TJRJ, tendo posteriormente atuado em juizados especiais cíveis e turmas recursais. Atualmente, integra a 5a Câmara Cível do TJRJ e coordena os programas Justiça Itinerante e Justiça Cidadã, este último de formação de lideranças comunitárias. Doutoranda, desenvolve pesquisa sobre a ampliação do acesso à Justiça.

Justiça e Cidadania – O que a senhora achou da escolha do tema do último Fórum Nacional de Juizados Especiais (44o Fonaje), que discutiu a “judicialização das relações sociais”?

Desembargadora Cristina Tereza Gaulia – Achei excelente. Há sim uma pauta para a resolução alternativa de conflitos, uma pauta que vem sendo há muito implementada. Há muito espaço para soluções conciliadas e mediação. No entanto, há determinados setores, que ainda são bastante expressivos, nos quais a desjudicialização não cabe. O Judiciário é uma porta de entrada preciosa para aquelas pessoas naturais que ainda não são cidadãs. A elas, o ingresso à Justiça tem que ser franqueado por meio das portas dos juizados especiais cíveis e agora da Justiça Itinerante, que têm que ser ampliadas e não restringidas.

JC – Como surgiu a iniciativa do Justiça Itinerante?

CTG – Quando criamos lá atrás o microssistema dos juizados especiais, sabíamos que era o espaço cidadão na Justiça. Hoje sabemos que uma gama enorme de brasileiros e brasileiras não são cidadãos. Não sendo cidadãos, nem têm a possibilidade de chegar aos juizados especiais. Então, a Constituição Federal, por meio da reforma do Judiciário, trouxe uma nova pauta de luta para ampliação do acesso à Justiça que é a Justiça Itinerante, na qual o juiz é que vai até essas pessoas que chamamos de invisíveis sociais: indígenas, moradores de favelas, prostitutas, presidiários, pessoas em situação de rua, andarilhos, ciganos, pescadores artesanais e tantos outros. A vida, nesse aspecto, é a arte do encontro e a reforma do Judiciário trouxe essa possibilidade renovada.

JC – Quais são as demandas que mais comumente chegam aos ônibus do Projeto?

CTG – A Justiça Itinerante é um mecanismo de franqueamento de acesso à Justiça um pouco diferente do mecanismo dos juizados especiais. A Justiça Itinerante leva o juiz para que ele se encontre com aquelas pessoas que precisam dele e que não chegam de jeito nenhum ao Judiciário. Não chegam porque não têm dinheiro, porque não têm sapatos ou roupas, porque não têm informações, ou porque moram em locais tão recônditos e distantes que realmente não têm condições de acessar o Fórum, o Tribunal de Justiça ou mesmo a Defensoria Pública. Nas favelas do Rio de Janeiro, por exemplo, percebemos que ainda há um número alto de demandas de Direito do Consumidor que são, na verdade, demandas de juizados especiais, mas que são resolvidas no ônibus. Assim como também questões de vizinhança, que são muito ricas nas favelas. Por outro lado, você encontra pessoas que não têm documentação nenhuma, em que a demanda é por registro ou por retificação de registro de nascimento. Há também demandas de regularização de estado civil, transformação de uniões estáveis em casamentos, principalmente de casais do mesmo sexo, que ainda passam por algum constrangimento ao exporem suas privacidades. O que a Justiça Itinerante faz é descobrir novas questões que precisam ser resolvidas com a judicialização, porque sem essa judicialização as pessoas não conseguiriam resolvê-las.

JC – O Justiça Itinerante está perto de completar um milhão de atendimentos…

CTG – Está crescendo cada vez mais, não só no Rio, mas em Roraima, Rondônia, Amazonas, Amapá. É um projeto que se constrói enquanto é feito. Um
ideário gerencial-administrativo que o Judiciário não conhecia. Via de regra, as questões administrativas do Judiciário sempre foram edificadas de dentro para fora. Agora, temos que conhecer os lugares, conhecer as pessoas e suas demandas para então construir a política de atendimento judiciário. É uma reforma muito grande na maneira de prestar a jurisdição. (…) Em Rondônia, por exemplo, são realizadas ações itinerantes no Baixo Madeira e no Guaporé-Mamoré. São 15 dias a bordo de um barco. Participei de uma dessas jornadas, é uma experiência absolutamente instigante, muito inovadora, que te remoça, cria esperança de que você realmente está fazendo a coisa certa e de que algum dia vamos conseguir reunir todos os brasileiros em volta de uma mesa com Cidadania – com letra maiúscula.

JC – A senhora teria para contar alguma situação curiosa ou engraçada ocorrida durante os atendimentos?

CTG – Temos tantos casos curiosos, mas vou contar um mais rápido. Quando começamos a fazer a transformação de uniões estáveis em casamentos de casais do mesmo sexo, em uma das jornadas da Justiça Itinerante um desses casais, ao final da audiência, já casados, um dos parceiros chegou para mim e disse: “Doutora, muito obrigado. Já posso voltar para casa do meu pai, de onde ele me expulsou há mais de 15 anos, porque agora posso provar a ele que sou uma pessoa digna. A senhora me deu a oportunidade de casar e isso é uma situação absolutamente nova, que muda a minha dignidade de vida”. É uma das situações que nós vivenciamos, que via de regra são muito emotivas. Claro que temos casos pitorescos, dramáticos, e outros em que desconfiamos se a pessoa está ou não falando a verdade, mas na grande maioria nosso desconhecimento é uma coisa que tem que mudar. O engraçado é que nós juízes, magistrados do Século XXI, ainda desconheçamos as realidades em que trabalhamos.

JC – Onde o projeto está presente no Rio de Janeiro?

CTG – Levamos o Justiça Itinerante a sete favelas na capital, vamos para o interior do estado, para os presídios, para a Vila Mimosa, e também para as praças para atender moradores de rua. Claro que ainda está longe de ser o ideal, precisamos aprender e melhorar muito, mas fazemos um negócio que ninguém faz em nenhum outro lugar do Brasil. Temos uma história aqui no Estado do Rio de Janeiro que, em 1982, antes da Constituição, tínhamos um colega em São Sebastião do Alto, o juiz James Tubenchlak, que já naquela época fazia Justiça Itinerante. Não tinha ônibus nem nada, ele ia com um promotor e ficava nas escolas dos distritos mais distantes do fórum. Na tese de doutorado que estou escrevendo, eu o lanço como o pioneiro da Justiça Itinerante no Brasil, embora oficialmente a disputa esteja entre os Estados de Amapá e Rondônia, que começaram a fazer justiça nos barquinhos.