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A violência, o crime e a neurose do medo

10 de março de 2017

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Desde os limites imemoriais das épocas, a violência e o crime, em suas variadas manifestações e sob o impulso de múltiplas, complexas e intercorrentes motivações, têm se feito presente na história do homem.

Consoante Mira Y Lopes, esses fenômenos são conaturais ao homem e existem desde que se agitaram, na terra, as primeiras formas de vida. Tarcísio Padilha, filósofo mundialmente conhecido, com a sua inquestionável autoridade de mestre emérito e respeitado, disse que a violência é contemporânea do homem e da sociedade e copartícipe de sua milenar história.

De fato, a história das civilizações sempre esteve pontilhada de incontáveis e salientes exemplos de violência sutil e ostensiva, registrando, fartamente, em todas as suas sucessivas fases, espantosas contradições, gritantes vulnerabilidades políticas e sociais e os mais desabusados atos de violência e crime, com seus séquitos funestos de trágicas e danosas consequências.

Pensar que somos, por conseguinte, em nossa recentíssima modernidade, os únicos degredados dos deuses, jungidos aos nossos sobressaltos e acuados nestes labirintos de asfaltos e cimento armado, como batráquios jogados às serpentes, é desconhecer a realidade fática dos tempos idos e vívidos.

Aliás, há mais de 23 séculos, o gênio de Platão, um dos maiores filósofos gregos de todos os tempos, profetizava: “Até que filósofos sejam reis e que os reis e os príncipes deste mundo, tenham o espírito e a capacidade da Filosofia, que a grandeza política e a sabedoria se combinem, as cidades nunca terão tréguas em seus males e só então às sociedades poderão ter a possibilidade de vida e de contemplar a luz do dia.”

Dessa coloquial, lídima, pura e universal enunciação, conclui-se que a problemática moral do homem e da sociedade, as injustiças, as vulnerabilidades, a violência e o crime sempre existiram, em todas as épocas e lugares, obstaculizando a conquista e a manutenção do bem comum e da paz social, objetivos-síntese de todos os povos e civilizações.

Em verdade, a violência, sempre tida e havida como característica do homem e apanágio das sociedades contemporâneas, tal como “o câncer de um mundo em mutação radical”, vem se espraiando, assustadoramente, em todos os sentidos e atingindo, com os seus tentáculos, a todos os mortais.

Não há dúvida de que a violência e o crime, em todos os momentos da história dos povos, perturbam e desafiam a argúcia, a inteligência e a criatividade de filósofos, de psicólogos, de juristas, de legisladores e de todos os integrantes dos três ineficientes e desarticulados subsistemas de Justiça Criminal.

Todavia, foi nestes últimos anos, principalmente, a partir da década de 80, que esses inextirpáveis fenômenos políticos e sociais passaram a ocupar, neste país de muitas leis e de pouca Justiça, indesejável, proeminente e constrangedora posição. Realmente, por questões agrárias, a violência e o crime crescem no meio rural, e nas cidades de médio e grande portes, atingem índices alarmantes, que vêm deixando em polvorosa, a já neurótica e agressiva população brasileira.

Em observação nostálgica sobre a violência e o crime nos dias de hoje, Nilo Odalia, sintética e lapidarmente, ensina: “Eles se estendem do centro à periferia das grandes cidades e os seus longos braços a tudo e a todos envolvem, criando o que se poderia chamar, ironicamente, de verdadeira democracia da violência e do crime.”

O certo é que a violência e o crime, atualmente, no Brasil, despertam a atenção de todo o mundo, aterrorizando os seus cismáticos habitantes e modificando a postura das mais autorizadas vozes da ciência penal e da criminologia.

Como ressaltado, a violência e o crime, neste país de dimensão continental, nestes últimos anos, vêm marcando crescente presença em nossas estatísticas e, quer queiramos ou não, no atual momento histórico, integram o cotidiano brasileiro, já não mais como fatos episódicos ou circunstanciais, afligindo, com a mesma extensão e gravidade, os conglomerados dos agigantados centros urbanos e até mesmo do outrora pacato ambiente campesino. Tais inquietantes flagelos, pela séria ameaça que representam à paz social – objetivo nacional permanente – tornam cada vez mais difícil, para não dizer insuportável, a convivência humana nas grandes e médias cidades brasileiras. Os seus apreensivos habitantes, pelos graves riscos a que estão permanentemente expostos, vivem em estado de pânico e de constante tensão emocional. Atordoados pelo vertiginoso e desordenado crescimento de nossas metrópoles, que lhe reduz o espaço vital, ensurdecido pelo ruído de um tráfego louco e neurotizante e acicatados pelo irrefreável apetite consumista e pelo desconforto de uma vida agitada e sem grandeza, vivendo no centro de tantos antagonismos, enleados no cipoal de tão complexas contradições, em ambiente de tamanha turbulência e na guerra de uma competição cada vez mais injusta e exigente, o brasileiro deste início de século se desumanizou, transformando-se no algoz do seu semelhante – o homo hominis lupus –de que fala Thomas Hobbes. A sua psicologia metamorfoseou-se e, de tradicionalmente pacífico, é hoje conhecido como intranquilo e inquieto, marcado pelo cinzel da mais desabrida e inusitada violência e dos mais chocantes e repulsivos comportamentos criminosos. As suas relações intersubjetivas, outrora norteadas pela cordialidade, não mais cultivadas nos burgos e nas pequenas cidades interioranas, cederam lugar à incivilidade, à violência e ao crime.

Em tais selvas de pedra, em que a fraternidade vem perdendo espaço, a desconfiança, o temor e o perigo norteiam as relações humanas e, como ensina Regis de Moraes, não se pode mais dizer que as cidades estão ficando perigosas, porque o perigo, visível ou disfarçado, é onipresente, agora, nos espaços urbanos de pequeno, de médio e de grande portes.

Essa análise conjuntural sobre a violência e o crime, realizada com cores tão fortes, mas sem exagero, infelizmente, parece confirmar as pertinentes e irrespondíveis observações de Niko Timberg, segunda as quais “o homem é um assassino sem freios.”

Tal como já salientado, a violência e o crime estão nas ruas, gerando a síndrome do medo e sérios distúrbios neurológicos. Medo que nos aterra, conduzindo-nos à irracionalidade e à estupidez comportamental. Medo que aflora e faz atiçar o sentimento de justiçamento pelas próprias mãos.

Pelo que se vê, o quadro é dantesco e os indicadores disponíveis evidenciam, a cada instante, o seu agravamento.

Apesar disso, é preciso que acreditemos na sua reversão. Afinal, as trombetas do apocalipse ainda não soaram. Pode até ser uma posição utópica, mas me parece ainda possível, a construção de uma sociedade, em que o crime possa transformar-se em incidente inabolível, mas episódico ou circunstancial, desde que concebamos e implementemos uma verdadeira política governamental, que promova a correta satisfação das necessidades básicas do ser humano, nos planos biopsicológico, educacional e sociológico, e ao seu lado, que adotemos, com visão global do problema, medidas que tornem mais ágil e eficiente a segurança pública e a Justiça Criminal, com o indispensável aprimoramento e harmoniosa articulação dos subsistemas policial, judicial e penitenciário, como defende, há vários anos, Hélio Jaguaribe.

No âmbito da segurança pública e da justiça criminal, com o envolvimento das forças vivas e autorizadas da sociedade, muito pode ser ainda realizado, implantando-se, com a participação dos seus segmentos representativos, as associações de proteção e assistência aos condenados, os conselhos comunitários de segurança pública e os conselhos de comunidade, estes últimos previstos na Lei de Execução Penal, de que vêm se utilizando, com excelentes resultados, um número bastante reduzido, infelizmente, alguns estados da Federação.

Como é de sabença geral, a pena de prisão faliu nos seus objetivos: não intimida e nem ressocializa o autor do fato infringente da norma penal. O esclerosado Sistema Penitencial do Brasil, um dos piores do mundo, chegou ao clímax de uma situação deveras inconcebível e insustentável. Com apenas 371.884 vagas, abrigam, hoje, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, 622.202 acusados, definitivamente condenados ou sujeitos à prisão processual.

A bem da verdade, o supracitado sistema prisional, atualmente, não vem alcançado e nem perseguindo, a finalidade específica da pena de prisão. Na promiscuidade de suas unidades prisionais, onde imperam o vício, a ociosidade, a violência, o crime e a perversão, não há lugar para a recuperação do homem preso. Como verdadeira “universidade do crime”, esse Sistema, se é que assim pode chamado, estimula a reincidência, agrava o caótico quadro da criminalidade e torna desacreditados os três subsistemas de Justiça Criminal, que continuam atuando de forma desarticulada e gerando seríssimos danos à paz social, obra da justiça e à segurança pública, direito de todos e dever do Estado.

Apoiado no vazio argumento do surto incontrolável do aumento da violência, do crime e da criminalidade, no excesso de população carcerária e na falta de verbas, o Estado justifica a inexistência de vagas no Sistema. E quantas verbas existem para outras prioridades? Quantos bilhões de reais não foram desviados, nos últimos anos, por figuras aparentemente respeitáveis, como mostra, claramente, algumas operações comandadas pela Polícia, pelo Ministério Público e pela Justiça Criminal, de que são exemplos a Lava Jato e os seus desdobramentos? A verdade é que, enquanto não se adotam as pertinentes e legais providências, que possam, pelo menos, minimizar tão dramático, explosivo e inconcebível problema, as unidades penitenciárias continuam inchando, na proporção paralela do aumento geométrico de nossa sofrida e apavorada população.

Em completo estado de esboroamento, putrefeitas, como facilmente se pode perceber, abrigando cadáveres verticais, esses depósitos de pessoas presas, de há muito deveriam ter sido interditados. Verdadeiras masmorras medievais, sequer merecem o nome de penitenciárias ou de presídios. O que falta, a meu ver, é vontade política, enquanto sobram descaso e omissão.

E no caldo dessa panela de pressão, com válvula entupida e já explodindo, o descaso, o despreparo, a doença virulenta, a podridão, a sordidez, a miséria, a revolta, as rebeliões, a violência, os reféns, as mortes cruéis e as injustiças, como sentenciou, há poucos anos, o Dr. Mariano de Oliveira Neto, um dos juízes da Execução Penal do rico e populoso estado de São Paulo.

E sobre os ombros do Poder Judiciário, recaem a responsabilidade pela falência da Justiça Criminal e o dever de solucionar os problemas criados por essa afrontosa omissão estatal.

O que fazer, então?

Vivemos momento de aflição, de descrédito e de tragédia no âmbito dos três Subsistemas de Justiça Criminal, mas como já afirmei em outra oportunidade, sociedades purgadas, às vezes, são forçadas a eleger valores e prioridades adequadas e, assim, suplantando os mais resistentes óbices podem, criativamente, não digo alcançar o progresso e a paz, mas conviver com situações menos asfixiantes e caminhar na direção da bem-aventurança, com que todos sonhamos. Sonhar é preciso, já o disse alguém e ousar a gente ousa, no pecado da audácia. Que Deus ilumine os responsáveis pela Segurança Pública, pelo Sistema Penitenciário e pela Justiça Criminal, a que pertencemos.

Concordo com as luminosas observações do grande jurista Moura Bitencourt, segundo as quais “não é proibido sonhar com o juiz do futuro: cavalheiresco, hábil para sondar o coração humano, enamorado da ciência e da Justiça e ao mesmo tempo insensível às vaidades do cargo; arguto para descobrir as espertezas dos ricos e poderosos; informado das técnicas do mundo moderno, no ritmo desta era nuclear, onde as distâncias se apagam e as fronteiras se destroem e, onde, enfim, as diferenças entre os homens serão simples e amargas lembranças do passado”. É como penso.