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Aborto de feto inviável há crime?

5 de abril de 2004

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O presente assunto não faz parte da rotina do nosso cotidiano forense, de forma que se torna difícil uniformizar urna Doutrina e Jurisprudência a respeito.

O problema de fato e de direito começa com uma gestante fazendo urna ultrassonografia de rotina quando descobre que o feto que carrega em seu ventre e inviável, ou seja, não sobrevivera ao nascer, por ser portador de anomalia extraordinária.

Vamos abordar aqui apenas o caso especifico da anencefalia ou acrania, que nada mais e do que a ausência de cérebro e (ou) caixa craniana.

Pois bem, essa gestante que até então vivenciava um sonho – inerente a maternidade – passa a viver um verdadeiro pesadelo, pois esta grávida de um feto inviável, aquele filho que com tanta expectativa aguardava, não tem nenhuma chance de deixar a maternidade com a Mãe, isso por lhe faltar um órgão vital – o cérebro – infelizmente a Ciência não tem como reparar isso, a situação é irreversível e a morte certa.

O que fazer? Interromper essa gravidez e minimizar o sofrimento da gestante e de toda a sua família ou obrigá-la a levar a gravidez até o fim condenando-a a vivenciar meses intermináveis de sofrimento?

A lei admite 0 aborto nesse caso?

Não, a lei não admite a interrupção dessa gravidez. Nosso Código Penal só permite o aborto, quando praticado por medico, apenas quando não há outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resulta de estupro (Artigo 128, I e II, do Código Penal).

Não há previsão legal expressa autorizando o aborto quanto se trata de feto inviável.

A ratio legis no caso do permissivo previsto no inciso II do Artigo 128 do Código Penal – aborto em caso de gravidez resultante de estupro – e a proteção do estado psicológico da gestante, que foi violada em sua honra com o estupro, advindo dai uma gravidez indesejada, não há como negar que essa mulher passaria uma gestação conflituosa e sofrida. Não havendo como negar também que na gravidez de um feto inviável os danos a higidez psíquica da gestante são tão grandes ou maiores do que aqueles decorrentes da gravidez proveniente de estupro.

No caso de gestação por anencefalia, por não haver previsão legal, que isente de penalidade o medico que deseje, a pedido da mãe, interromper essa gravidez sofrida, cria-se no espírito de muitos profissionais da saúde o receio de serem vistos como criminosos, o que os obriga a exigir das gestantes que busquem urna autorização judicial para que possam fazer o chama do aborto.

Na verdade em nenhum caso essa autorização é imprescindível, pois a lei não prevê e nem exige nenhum alvará judicial para que possa o medico realizar o aborto, quando necessário, para salvar a vida da gestante ou quando a gravidez e decorrente de estupro, muito menos nos casos de anencefalia. Em todas essas situações, os médicos podem realizar esses procedimentos sem que dai lhes advenha qualquer conseqüência criminal. Nos dois primeiros casos porque a lei permite e no último por ausência de crime a punir.

Quando a gravidez é absolutamente inviável como na anencefalia e, um Juiz ou Tribunal decide por autorizar o aborto, existe muita polemica apenas porque a lei é omissa. No entanto, os que são contrários se esquecem, desconhecem ou não entendem bem, que o feto não tem condições de vida extra-uterina, o que provoca grave sofrimento psicológico a mãe, além da gravidez nesse caso ser também de alto risco, tal qual a hipótese prevista no permissivo do inciso I do Artigo 128 do Código Penal. Não fazendo nenhum sentido obrigar uma mãe a aguardar 09 meses para finalmente levar o filho para o cemitério, é cruel.

A gestação em caso de anencefalia também é considerada de risco para a gestante, como leciona o mestre em obstetrícia Dr. Jorge Rezende, isso porque o feto tende a crescer acima do normal, a placenta apresenta várias anormalidades, sendo comum a eclampsia e outros distúrbios. Enfim, a gestante enfrenta duplo problema, um de ordem psicológica e outro fisiológica. A hipótese é exatamente análoga as situações contempladas nos incisos I e II do Artigo 128 do Código Penal.

Qual seria o fundamento legal para isentar de penalidade o medico que viesse a interromper urna gravidez com feto portador de anencefalia?

Nesse caso específico, estamos com o grande e saudoso penalista Nelson Hungria, pois se a gravidez apresenta-se como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer urna intervenção cirúrgica que possa salvar a vida do feto, não há como se falar em crime de aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto, nesse caso existe ate a certeza da morte.

Não há que se falar em bem jurídico a ser protegido pelo Direito Penal, sendo o bem jurídico o elemento básico para formação do tipo penal. O interesse da sociedade a ser preservado na gravidez não é a gravidez como fato fisiológico em si mesmo, mas a expectativa de que o feto, decorrida a gestação, de lugar a um ser humano, previsivelmente vivo. Se, ao contrário, não há mais essa expectativa, não há bem jurídico a ser preservado, não há tipo penal, não há crime. Pode-se argumentar ate com a figura do crime impossível, prevista no Artigo 17 do Código Penal.

A pessoa da gestante, entretanto, há de ser preservada, voltando-se para ela, na integralidade, toda a proteção jurídica disponível. Conseqüentemente, cabe apenas ao médico e a gestante a decisão a respeito da antecipação terapêutica do parto, devido a inviabilidade do feto por má-formação extraordinária, não havendo que se falar em crime de aborto, simplesmente, repita-se, porque não há tipicidade na hipótese.

O Conselho Federal de Medicina afirma que a continuidade da gestação de um feto anencéfalo torna-se um risco desnecessário e gera a indicação de interrupção, mesmo que o risco não seja iminente.

Não é dado aos médicos, a partir do momento que se graduam e se inscrevem no Conselho Regional de Medicina, se escusarem de suas responsabilidades e obrigações, ou seja, não há cabimento em dizerem que a interrupção somente pode se dar mediante autorização judicial. O exercício da Medicina, quando delegado aos profissionais de saúde legalmente reconhecidos como tal, resulta em responsabilidade sobre a vida, somente a eles ponderável.

A interrupção voluntária de gravidez de um feto inviável é uma questão de pouca relevância jurídica e, dentro do sistema constitucional brasileiro, é considerada como uma decisão privada da mãe, nunca figurando entre as vedações constitucionais. Isso porque o feto inviável não é suporte fático do crime de aborto e a conduta nesses casos, como visto, e atípica e sem tipicidade não há pressuposto para qualquer outra fase da estrutura do crime.

Uma mulher que padece dessa situação mórbida, de carregar no ventre um feto que jamais vai se tornar aquele bebê tão esperado, tão desejado, posto que a final, irremediavelmente, seu destino será a morte, tem o direito de decidir a respeito, pois e ela quem vai passar todos os inconvenientes e sofrimentos próprios de urna gestação atípica, sem contar com os irreparáveis abalos psicológicos. Assim, por querer interromper essa gestação, não deixa essa mulher de ser do virtuosa quanto aquela que, nas mesmas condições, decide levar a gravidez até o fim, resistindo bravamente a todos os sofrimentos, isso porque os seres humanos são diferentes entre si, uns mais frágeis que os outros e essas diferenças devem ser respeitadas. Pois bem, só a essa mulher cabe decidir sobre a interrupção da gravidez, do sofrimento que só a ela e a sua família pertencem.

Superada a decisão de realizar a interrupção, o como fazê-la e de competência exclusivamente medica, devendo assegurar-se aos profissionais de saúde a segurança jurídica necessária.

Assim é que, em Brasília, Distrito Federal, o Ilustre Promotor de Justiça Diaulas Costa Ribeiro, depois de enfrentar todas as adversidades possíveis oriundas de posições retrógradas, conseguiu fazer prevalecer o bom senso apoiado na seriedade que o tema merece.

Então, em Brasília, o Ministério Público, em casos de antecipação terapêutica de parto antecipa, em procedimento administrativo próprio, sua posição institucional para afirmar a inexistência de interesse público na persecução das ações ou omissões desenvolvidas para assegurar a vontade da mãe no sentido de interromper a gravidez de um feto inviável. Dispensada estará, nesses casos, a intervenção judicial, pois não haverá óbice oposto pelo Ministério Público ao atendimento do pedido da Mãe. A decisão do Ministério Público, nesses casos, assegura direitos fundamentais, uma vez que haverá uma decisão irretratável que equivale a renuncia a persecução penal, por ausência de tipicidade. A antecipação terapêutica de parto não é antagônica aos interesses permanentes da sociedade. Trata-se de urna decisão ministerial-administrativa e as matérias envolvidas na persecução penal e que dependem de segurança jurídica fora do processo penal estrito são privativamente decididas pelo Ministério Público.

Em suma, instaura-se perante o Ministério Público, um Procedimento Administrativo, iniciando-se com requerimento da gestante e (ou) do medico, instruindo-se com toda a documentação pertinente, ouvindo-se as partes, requisitando-se pericias etc., tudo com vistas a final decisão declaratória da inexistência de crime na hipótese de interrupção de gravidez com feto anencéfalo, por atipicidade, já que não existe delito de aborto praticado contra feto inviável, não se tira a vida de quem não tem a expectativa de tê-la. O Ministério Público, in casu, apenas antecipa sua opinio delicti para declarar que não existe justa causa na instauração de Ação Penal naquele caso. Traz assim a tranqüilidade aos profissionais da saúde envolvidos naqueles casos específicos que lhes são submetidos a apreciação.

Como se vê, é despiciendo qualquer discussão a respeito da aplicação analógica ou não dos incisos I e II do Artigo 128 do Código Penal em casos tais.

Lançamos abaixo trecho bem esclarecedor da respeitável sentença proferida pelo Dr. Fernando Mello Batista da Silva, Ilustre Juiz de Direito Substituto da 1ª Vara de Família da Circunscrição Judiciária Especial de Brasília – Distrito Federal, no Processo nº 2002.01.1.082024-8 – de Alvará Judicial para que um casal pudesse interromper gravidez de feto anencéfalo.

“Poder-se-ia pensar que a presente decisão configura negativa de prestação jurisdicional e, em conseqüência, falta de tutela a dignidade humana e à vida. Ledo engano. O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, que hoje conta com excepcional protocolo para interrupção voluntária da gravidez, é tão guardião destes princípios tão caros a Democracia quanto o é o Poder Judiciário. Todavia, cabe ao Ministério Público o fundamental mister de dar o primeiro embate a questões como a versada nestes autos; ao Poder Judiciário caberá a resolução de eventuais conflitos surgidos após a manifestação do Ministério Público.

Por fim, mesmo que a gestação em questão não representasse concreto risco de vida a mãe, acentuo a total desnecessidade da providencia jurisdicional para os casos de interrupção de gravidez de feto anencéfalo, pois tal conduta sequer se subsume ao tipo penal de aborto. A caracterização do crime de aborto não pode prescindir da existência de um embrião apto a gerar vida; a vida pressupõe expectativa de autonomia; o anencéfalo não a tem, porquanto mantém relação parasitaria com a mãe, sem a qual não pode sobreviver ao nascer.

Ante o exposto, tendo em vista a falta de interesse de agir, indeferido a petição inicial com base no artigo 295, III, do Código de Processo Civil, e extingo o processo sem julgamento de mérito nos termos do artigo 267, I, do mesmo Estatuto. Sem custas, eis que defiro os benefícios da gratuidade de justiça.

Remetam-se os autos, imediatamente e com urgência, ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios – Promotoria de Justiça de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde – para que tome as providencias cabíveis. Brasília/DF, 07 de outubro de 2002”.

Conclusão: apesar da nossa lei penal só isentar de pena o médico que pratica o aborto para salvar a vida da gestante ou quando a gravidez decorre de estupro, não a veda nos casos de gesta<;:ao por anencefalia e nem a pune, pois não há crime na hipótese e para os mais exigentes ressaltamos que o nosso Código Penal e de 1940, quando ainda não se tinha noticia de casos de anencefalia, por isso não incluída a hipótese no rol do Artigo 128 do Código Penal, sendo assim, enquanto não sobrevém mudanças na legislação, devem os Juízes julgar de acordo com os anseios e necessidades sociais da época.