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Academia Brasileira de Letras: templo de preservação do idioma

5 de junho de 2004

Senador, Membro da Academia Brasileira de Letras

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O senador Marco Maciel tomou posse na Academia Brasileira de Letras como novo titular da cadeira nº. 39, cujo patrono é Francisco Adolfo de Varnhagen, e ocupada no passado por historiadores como Oliveira Lima, – seu fundador – Alberto de Faria, Rocha Pombo e Rodolfo Garcia. E ainda, destacados jornalistas como; Elmano Cardin, Otto Lara Rezende e Roberto Marinho.

A seguir  trechos do discurso proferido pelo Ilustre senador no dia de sua posse.

“Ao cumprir o rito de entrada, passo a desfrutar da honra de sentar-me entre vós.  Esta Casa desde seu nascimento mantém-se fiel aos elevados propósitos de guardar “a cultura da língua e da literatura nacional”, conservar a tradição sem abandonar à rotina, viver imersa na história das transformações que se operam no Brasil e no mundo.

Expresso, por essas razões, a gratidão, testemunho pleno de minha consciência e cálido sentimento de meu coração, pela generosa acolhida que me dispensastes, estimados acadêmicos, ao incorporar-me, de maneira tão desvanecedora, ao vosso convívio.

Exercitar esta comunhão, plenitude da vida, “é   –  como profetizava o poeta João Cabral  –  ir entre o que vive”, transformar coexistência em convivência, prática aliás aqui observada desde seus albores, entre aqueles que laboram nos mais variados territórios dos gêneros literários, inclusivamente, se não estou sendo heresiarca, o discurso parlamentar como manifestação cultural que em muitos casos realiza a interseção entre a forma literária e o conteúdo político.

Coube-me a dupla graça de ocupar a cadeira cujo fundador é o meu conterrâneo Oliveira Lima e o último ocupante o jornalista Roberto Marinho.

Espaço da palavra, aqui se exercita no perpassar de sua densa história a artesania da liberdade, através da qual se busca entre o que separa aquilo que nos pode unir, porque se queremos viver juntos na divergência, que é princípio vital da democracia, estamos condenados ao entendimento, sob pena de transformar idéias antagônicas em soluções agônicas.

Partiu de Oliveira Lima a acertada indicação do nome de Varnhagen para padroeiro.  O autor da História Geral do Brasil, de fato, foi, como afirma o proponente: “sem contestação o criador da história da pátria, se não em sínteses luminosas, pelo menos na comprovação essencial; é tão-somente com respeito que devemos encarar essa figura saliente da nossa literatura, posto sejamos forçados pela justiça a salpicar das reservas indispensáveis em todo estudo a nossa legítima admiração perante ela”.

Atribuo tão imerecido regalo à mão do Criador, para quem, já se disse “nada é coincidência, tudo é providência”.”

Breve histórico

Sobre o patrono da cadeira 39, Marco Maciel disse:

“Francisco Adolfo de Varnhagen, de origem germânica e educação portuguesa, nasceu em São Paulo; serviu como tenente de Artilharia no Exército de Portugal; e sua obra  caracterizou-se pelo poder de seu pensamento, pela profundidade de sua pesquisa e pela larga riqueza documental. Varnhagen objetivava, consoante suas palavras, transcritas no discurso de posse de Oliveira Lima nesta Casa: “formar e melhorar o espírito público nacional”  e foi sem tergiversações que desempenhou este papel de moralista, na acepção mais elevada da palavra, a saber, do historiador que faz servir a história de ensinamento para os seus contemporâneos, porque, como Varnhagen disse algures, “o presente não é mais do que a repetição do passado”.”

Em seu discurso, citou cada um dos ocupantes da cadeira, que agora ocupa, fazendo uma breve sinopse da trajetória de cada um deles.

Oliveira Lima foi um acatado historiador, diplomata, professor, crítico literário, bibliófilo e jornalista, tendo colaborado  com  jornais de Pernambuco, do Rio de Janeiro e de São Paulo. No campo político foi republicano durante a monarquia após a proclamação da República por divergir dos rumos que tomara o movimento de 1889. Poder-se-ia classificar Oliveira Lima como dotado de “uma índole de controvérsia”.

Com a eleição de Alberto de Faria, a cadeira 39 segue ocupada por historiador.

Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, exerceu a profissão e foi também jornalista, produzindo artigos  de natureza política inclusive, valendo destacar textos relativos ao candidato Arthur Bernardes à Presidência da República.

Sua principal obra, talvez por haver sido empresário, foi a biografia de Irineu Evangelista de Souza, Barão e Visconde de Mauá, publicada em 1926.

Além do trabalho sobre Mauá, Alberto de Faria publicou Política Fluminense e A questão do Banco Hipotecário do Brasil,  havendo pronunciado nesta Academia, a respeito de Rio Branco, palestra ainda hoje muito apreciada.

José Francisco da Rocha Pombo, paranaense de Morretes, é autor da História do Brasil, sua obra mais importante.  No Colégio Nóbrega do Recife, dirigido por jesuítas, onde estudei, era  um livro freqüentemente citado. Rocha Pombo, nome pelo qual se tornou conhecido, exerceu atividades no magistério, no jornalismo e na política, nesta como deputado provincial (correspondente hoje a estadual), pelo estado de seu nascimento. Eleito para Academia Brasileira de Letras, em março de 1933, antes de empossar-se faleceu no Rio de Janeiro.

Nascido em Ceará-Mirim, Rio Grande do Norte, Rodolfo Garcia foi escolhido para a cadeira 39 em 1934, após o falecimento de Rocha Pombo. Diplomou-se bacharel pela tradicional Faculdade de Direito do Recife, projetando-se como historiador, jornalista, professor e filólogo.

Como notara Levi Carneiro, a eleição de Elmano Cardim interrompe a seqüência de historiadores na cadeira 39.  Na sua oração de posse, o novo acadêmico, um jornalista, pontua que “o fiat da história está contida no subsídio cotidiano do jornal. O fato, alimento diário da imprensa, constitui, depurado das suas emoções a substância da História. Encadeado na seqüência de suas relações, fixa-se nas cores prismáticas que marcam a tonalidade de um momento na transição do efêmero para o duradouro. Quando o historiador o encontra assim estratificado pelo tempo, tem ao seu dispor a matéria-prima para a interpretação de uma época ou para a determinação de um ciclo da evolução da humanidade”.

Levi Carneiro, em seu discurso de saudação ao recebê-lo, discrepa desse entendimento: “Em certo sentido, a imprensa e a história parecem-me quase antagônicas, de sentido e objetivos diversos”. E acrescenta ser o jornalista “antes, um protagonista, um personagem da história, participando dos episódios, influindo neles”.

Otto Lara Resende, mineiro de São João Del Rei, berço também do Presidente Tancredo Neves, nasceu, como se diz no dialeto da engenharia genética, com a profissão de jornalista em seu DNA.

Jornalista a partir dos dezesseis anos, Otto lembra o Cardeal de Retz: “há coisas impossíveis que só certos homens conseguem fazer; um jornal tem de ser obra deste gênero de homens   –  o animador,  capaz de recrutar, congregar e motivar uma equipe de profissionais reunidos em torno de alguma coisa mais alta do que as mesquinhas vaidades e bem para lá das paupérrimas ambições materiais.  O jornal tem alma; tem uma dimensão moral e cultural, por mais escondida que esteja na liça braçal de todo dia. “O jornal é um ser vivo.  Age e reage como um ser vivo”  –  escrevia Edgar (da Mata Machado), no O Diário de Belo Horizonte, há quase indeléveis quarenta anos”.

O ato de escrever

“É o mais público de todos os atos”, como afirmou com propriedade Adonias Filho.

“Pairando acima da formação intelectual dos seus ocupantes, desvela-se uma estirpe de homens públicos, porque todos atentos à res publica, res populi.   Cícero, o romano, em obra seminal sobre o assunto (De Republica I, 25), foi o primeiro a conceituar o sentido de res publica, ao estabelecer que há de considerar-se  povo “não como toda reunião de pessoas, de qualquer forma congregadas, mas um consórcio sob a égide do Direito, pelos interesses comuns almejados pelas sociedades”.  Nicola Matteucci, no Dicionário de Política, comenta: “é uma palavra nova para exprimir um conceito que corresponde, na cultura grega, a uma das muitas acepções do termo politéia, acepção que se afasta totalmente da antiga e tradicional tipologia das formas de governo.  Com efeito, res publica quer pôr em relevo a coisa pública, a coisa do povo, o bem comum, a comunidade, enquanto que, quem fala de monarquia, aristocracia, democracia, realça o princípio de governo”. Cracia, isto é, poder, autoridade.

Na semântica dos nossos tempos, esta palavra encontrou atualidade em Rui, ao dizer: “A Pátria não é ninguém, são todos; cada qual tem no seu seio os mesmos direitos à idéia, à palavra, à associação”.  República é assim a cidadania, a coisa do povo, o bem comum.

Inspirado num humanismo integral, o tomismo de Jacques Maritain agrega ao tema uma valiosa contribuição ao inocular no tecido da cidadania o conceito de valor, conferindo-lhe um conteúdo ético pela defesa da liberdade de consciência, sem desbordar no relativismo, e garantia da dignidade de toda pessoa humana. É com essa concepção que se pode definir a política como ciência, virtude e arte do bem comum.

Tudo assim concorre, na minha opinião, para conferir, na estadística moderna, enquanto ciência de Estado, a condição de homem público a todos quantos, mesmo não havendo exercido função pública ou disputado mandato eletivo, se tenham empenhado no serviço do bem comum.”

Doença da admiração

“A vida pública, antes de ser uma profissão, é e deve ser uma atitude de vida a exigir não o diletantismo, mas, como propunha Nabuco, “o interesse vivo e palpitante no destino e na condição alheia”.

Sem estar contaminado, imagino, pela “doença da admiração” que, segundo o historiador Thomas Macauly, afeta os memorialistas ao biografar vultos, desejo, sem a pretensão de ineditismo ou de originalidade, destacar alguns aspectos  essenciais da estuante vida de meu ilustre predecessor, Dr. Roberto Marinho.

Dr. Roberto Marinho encarnava as três qualidades designadamente importantes, segundo Max Weber, para definir a personalidade do homem público: “sentido de responsabilidade, senso de proporção e paixão.  “Sentido de responsabilidade” manifestado ainda jovem no batente do jornal;  “senso de proporção”  por compatibilizar seus projetos com as aspirações nacionais; e, finalmente, “paixão”, concebida não como atitude interior que Jorge Simmel chamava de “excitação estéril”,  senão como entrega total, integral, à causa que abraça.  Paixão foi o que não faltou ao Dr. Roberto Marinho!

As Organizações Globo, então designadas por já incluírem jornal, rádio e televisão, partem para o setor de discos e, através de editoras, lançam livros e revistas especializadas  – Casa, Globo Rural, Galileu, Criativa, entre outras  –, e em 1998, Época, dirigida para assuntos de múltiplos interesses.

É de se recordar que as suas empresas, ao saírem da grafosfera para a videosfera, ajudaram a integrar o País,  até então um arquipélago, no qual não se conseguia falar ao telefone senão com dificuldade e um telegrama demorava dias para chegar ao destinatário. Essa meta levou Dr. Roberto a dizer, no livro Uma Trajetória Liberal: “Somos um país de dimensões continentais, distribuído entre regiões distantes e distintas, ainda que indissoluvelmente ligadas por uma quase milagrosa unidade nacional.  A era eletrônica veio fortalecer e aprofundar essa unidade.  Mais ou menos como em toda parte, o rádio e a televisão no Brasil são hoje onipresentes. Constituem um traço de união e contribuem, decisivamente, para a integração nacional”.  E mais: a qualidade da equipe e dos equipamentos veio a permitir à sociedade brasileira desfrutar de comunicação social de primeiro mundo.

Dr. Roberto Marinho não ficou com os olhos fixos no presente. Com as retinas do humanista anteviu a necessidade de colaborar na preservação da nossa memória. De igual modo, usou o periscópio para, em mar revolto, enxergar o futuro.

Homem público não por opção, mas por sentimento de brasilidade, não sei se Roberto Marinho desperta mais admiração que simpatia.  Porém ninguém recusa identificá-lo como uma celebridade nacional, cujos dedos colocados construtivamente nos aros da história desataram novos paradigmas e alargaram as fronteiras do processo de desenvolvimento sócio-político, econômico e cultural do País.

Esta Casa pode gloriar-se, portanto, de haver admitido Roberto Marinho como um de seus preclaros confrades e, de modo particular, me vanglorio de sucedê-lo.”

Memória de nossa cultura

“A Academia Brasileira de Letras, templo de preservação do idioma, promove o constante alevantamento da literatura nacional, zela pela memória de nossa cultura e, se conosco estivesse, nestes tempos de globalização, Machado de Assis estaria agora regando, na última flor do Lácio, as raízes da nossa latinidade.

Aqui também já se rememorou, em outra oportunidade, Haver Pellison, o primeiro historiador a ter assento na Academia Francesa, que nos serviu de inspiração, comparando seus membros a “operários trabalhando na exaltação da França”.

Mercê do idealismo de seus sucessivos dirigentes e integrantes, a ABL desenvolve inúmeras ações, algumas pouco conhecidas conquanto de enorme significação, na difusão do saber literário do País.

Perpassado de emoção, – glória que jamais teriam sonhado os mais elevados devaneios de infância – aqui estou num dos momentos mais fascinantes de minha vida, envergando o fardão, ostentando o colar e empunhando a espada.  Mas não sem saudade, saudades muitas.  De minha mãe, Carmen Sylvia, sempre presente na memória e no coração, e de quem recebi total afeto e permanente estímulo.

Alegro-me parafrasear Norberto Bobbio: considero-me um homem de sorte. Sorte pela família na qual nasci. Sorte pela família que Anna Maria e eu construímos, mais méritos de minha mulher do que meus.  Sorte pelos professores que tive, pelos amigos que tenho e também por ter nascido no Recife,  tesouro dos meus sonhos. Sorte por esses anos aos quais chego, limado pelo tempo, mas plenamente motivado para exercitar a conviviabilidade acadêmica.

Por fim aprendi que não se pode – porque não se deve – refugir ao destino.

Espero, finalmente, nesta Casa continuar honrando as tradições de Pernambuco, que irrigou com o sangue de heróis e mártires as virtudes cívicas de nossa gente.  Tenho, por isso, orgulho de ser parte desta herança que legamos  ao Brasil e a ela tenho buscado ser fiel, pois, para mim, como reza o  hino de nosso Estado, Pernambuco é “um sol a brilhar no infinito”.