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Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa e os questionamentos que interessam

31 de julho de 2008

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A Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa, criada pela Lei nº 8.429/92, traz em seu bojo grande complexidade em razão de não explicitar a competência dos vários graus de juízo para processar e julgar as múltiplas autoridades administrativas, inclusive as de cunho político específico. Além de medida de afastamento cautelar de autoridades administrativas/políticas, no mérito autoriza a condenação da parte ré nas sanções previstas no artigo 12, inciso III, da Lei nº 8.429/92, quais sejam: perda da função pública; suspensão dos direitos políticos de 03 (três) a 05 (cinco) anos; pagamento de multa civil de até 100 (cem) vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e; a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios, ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de 03 (três) anos.
Por tudo isso, é necessário tecer considerações de cunho jurídico para que fique esclarecido qual é o juízo competente para processar e julgar determinadas autoridades.
Segundo detida análise, constato que, na verdade, trata-se de ação de improbidade administrativa que tem objetivo múltiplo, cujo efeito da sentença, uma vez procedente, tanto será civil, administrativo e penal.
Por oportuno, a Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992, foi editada para regular as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de cargo público. Enquanto o seu capítulo VI traz disposições de natureza penal, o resto da lei trata das sanções e procedimentos administrativos e civis. Por isso, a chamada ação de improbidade administrativa, tipo de ação que visa apurar e punir a prática de ilícitos na Administração Pública direta e indireta, além de recuperar os prejuízos em favor dos cofres públicos.
Por seu turno, tem sido uma prática comum, tanto do Ministério Público Federal ou Estadual quanto do Poder Judiciário, o tratamento desta ação de improbidade administrativa meramente como uma nova modalidade de Ação Civil Pública, freqüentemente chamando-a de “Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa”.
Por sua vez, não se pode deixar de anotar, por outro lado, que a Lei nº 8.429/92 traz regras tanto de direito material quanto de direito processual e não ressalvou a aplicação subsidiária da Lei nº 7.347/85.
Outrossim, conforme já dito, a ação de improbidade administrativa objetiva, precipuamente, a reparação do dano sofrido pelo patrimônio público em virtude do ato de improbidade impugnado e a punição dos responsáveis, aí incluindo o perdimento dos bens e vantagens obtidas ilicitamente, e o seu afastamento da Administração Pública, tanto com a perda de cargos e funções como com a proibição de contratações futuras e a suspensão dos direitos políticos. Tais características, no entanto, a meu ver, fazem da ação de improbidade administrativa uma ação civil de forte conteúdo penal e com inegáveis aspectos políticos. Este caráter claramente punitivo da ação de improbidade administrativa traz sérios questionamentos quanto à competência para o seu julgamento em determinadas situações.
Acresce, ainda, que, inegavelmente, diversos dos ilícitos “civis” previstos na Lei nº 8.429/92 – para não dizer praticamente todos – correspondem a tipos penais bem definidos, enquadráveis como crimes de responsabilidade. Assim, é preciso que o ordenamento jurídico seja preservado como um todo orgânico e sistemático, evitando-se incongruências, contradições e perplexidades que possam surgir do julgamento simultâneo de ações, uma civil e outra penal, envolvendo os mesmos agentes públicos e os mesmos atos.
Ora, a Constituição Federal dá ao Supremo Tribunal Federal a competência originária para, nos crimes de responsabilidade, processar e julgar ministros de Estado e membros dos tribunais superiores e do Tribunal de Contas da União. Da mesma forma, compete ao Superior Tribunal de Justiça processar e julgar originariamente os desembargadores de tribunais de Justiça, os membros dos tribunais de contas estaduais, dos tribunais regionais federais, dos tribunais regionais do trabalho, os membros dos conselhos ou tribunais de contas dos municípios e os do Ministério Público Federal que oficiem perante tribunais. Além do mais, as Constituições dos estados dão aos tribunais de Justiça competência originária para o julgamento de determinadas autoridades estaduais ou municipais quando acusadas de crimes de responsabilidade.
Nesse sentido, a conseqüência, no meu entender, deve ser a incompetência dos juízes de primeira instância para processar e julgar, com base na Lei nº 8.429/92, autoridades que estejam submetidas, em matéria penal, à competência originária dos tribunais, inclusive do STF e do STJ. Não se pode admitir, numa interpretação sistemática e teleológica da ordem jurídica, que autoridades com prerrogativa de foro penal possam ser julgadas por juízes de primeira instância em ações de improbidade que discutam, justamente, atos com repercussões penais e cujos desfechos podem se dar com a perda do cargo público e dos direitos políticos.
De igual sorte, é cediço observar que o egrégio Supremo Tribunal Federal não permaneceu alheio à discussão. Em decisão recente, em 13 de março de 2008, a Suprema Corte decidiu arquivar ação de improbidade administrativa contra o então advogado-geral da União, Gilmar Mendes, atual ministro e presidente do STF. Segundo a decisão, a ação, proposta em 2002 para apurar supostas irregularidades no provimento de cargos públicos na Advocacia-Geral da União, deve continuar na primeira instância contra os outros réus. A decisão foi tomada no julgamento da Petição (PET) 3.211, em que Walter do Carmo Barletta levantou questão de ordem relativamente à Ação Civil Pública, proposta pelo Ministério Público Federal para apurar supostas irregularidades no provimento de cargos públicos no âmbito da AGU, e também para investigar alegada recusa dos requeridos em prestar informações para apuração de inquérito civil.
O ministro Meneses Direito, que abriu divergência no Plenário, defendeu que o julgamento de uma ação de improbidade contra um Ministro de Estado, pela primeira instância, “quebraria o sistema Judiciário como um todo”. Para o Exmo. Ministro Cezar Peluso, seria “algo absurdo, o máximo do contra-senso” submeter o julgamento à primeira instância.
Destarte, por oito votos a um, o STF decidiu que Gilmar Mendes, por ter foro privilegiado, não poderia ser julgado em ação proposta por um Procurador da República na 1ª instância da Justiça Federal. Assim, prevaleceu o mesmo raciocínio aplicado em 2007 ao caso do ex-ministro da Ciência e Tecnologia Ronaldo Sardemberg, acusado de usar um jato da FAB para uma viagem pessoal. Para o STF, ele não poderia ser condenado pela Lei de Improbidade porque ex-administradores públicos já estão sujeitos a processos de crime de responsabilidade.
O fato é que há grande controvérsia acerca da ação de improbidade contra agentes políticos. Tal discussão fora amplamente debatida nos autos da Reclamação
nº 2.138/2002 (relator ministro Nelson Jobim), conforme já mencionado acima, na ação de improbidade administrativa em que o Ministério Público Federal propôs contra Ronaldo Mota Sardemberg, ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), hoje, ministro de Estado da Ciência e Tecnologia. A decisão teve por base fundamentos extraídos da obra de Gilmar Mendes e Arnoldo Wald, que assim dispunha: “A instituição de uma ‘ação civil’ para perseguir os casos de improbidade administrativa coloca, inevitavelmente, a questão a respeito da competência para o seu processo e julgamento, tendo em vista especialmente as conseqüências de eventual sentença condenatória, que nos expressos termos da Constituição, além da indisponibilidade dos bens e o ressarcimento do erário, poderá acarretar a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos do réu em caso de eventual sentença condenatória (CF, art. 37, § 4º). Não há dúvida aqui, pois, sobre o realce político-institucional desse instituto. A simples possibilidade de suspensão de direitos políticos ou a perda da função pública, isoladamente consideradas, seria suficiente para demonstrar que não se trata de uma ação qualquer, mas de uma ‘ação civil’ de forte conteúdo penal, com incontestáveis aspectos políticos. Essa colocação serve, pelo menos, para alertar-nos sobre a necessidade de que não se torne pacífica a competência dos juízes de primeira instância para processar e julgar, com base na Lei nº 8.429/92, as autoridades que estão submetidas, em matéria penal, à competência originária de cortes superiores ou até mesmo do Supremo Tribunal Federal (…). É evidente, pois, que, tal como anotado pela doutrina, a sentença condenatória proferida nessa peculiar ‘ação civil’ é dotada de efeitos que, em alguns aspectos, superam aqueles atribuídos à sentença penal condenatória. É certo, pois, que a condenação proferida na ação civil de que trata o art. 37, § 4º, da Constituição, poderá conter, também, efeitos gravosos para o equilíbrio jurídico-institucional do que eventual sentença condenatória de caráter penal”.
Desta forma, perfilho-me ao entendimento sobre a incompetência dos juízos de primeira instância para processar e julgar causas de improbidade administrativa em que sejam réus agentes públicos que detêm prerrogativa de foro, tendo em vista, sobretudo, a natureza das sanções aplicáveis. Neste ponto, entendo que admitir a competência funcional dos juízos de primeira instância implicaria subverter todo o sistema jurídico nacional de repartição de competências.
Além disso, resta claro que há grande divergência sobre a manutenção do foro privilegiado. Isto porque este revela um conflito entre valores de dignidade constitucional: a submissão igualitária de todos, autoridades e cidadãos comuns, ao império do Direito e a estabilidade necessária ao exercício das funções públicas. Esse conflito, como qualquer outro de natureza constitucional, somente se resolverá mediante a compatibilização dos interesses em antagonismo. Contudo, é consabido que, por exemplo, prefeito, governador, secretários, etc., detêm foro privilegiado. Tal foro, como o próprio nome indica, significa o privilégio assegurado a determinadas pessoas, em geral autoridades públicas, de apenas serem submetidas a julgamento em instâncias especiais, de grau superior, ao contrário do cidadão comum, sujeito a julgamento pelo Poder Judiciário comum, ou seja, perante magistrados de carreira de 1ª instância.
No Brasil, predomina o entendimento, tanto em sede doutrinária quanto jurisprudencial, de que o foro privilegiado não configura um privilégio pessoal outorgado à autoridade, mas uma prerrogativa funcional destinada a resguardar o regular exercício do cargo público. Reconhece-se, assim, na opção do constituinte de 1988, o interesse em garantir o livre exercício dos mandatos político-representativos e das funções superiores do Estado, para o qual, segundo essa opção, é indispensável a previsão de foro privilegiado, nos termos definidos pela Constituição.
Ora, com fulcro no artigo 29, inciso X, da CF/88, o julgamento de um prefeito se dará perante o Tribunal de Justiça. Entretanto, considerando que se o fato importar em apurar a obtenção irregular de recursos dos fundos federais, evidencia-se o interesse e prejuízo a bens e serviços da União, passando-se, então, a competência a ser do Tribunal Regional Federal, cabendo recurso ao STJ e ao STF. Tal entendimento pode ser extraído do excerto do HC n° 78.728-RS, do Supremo Tribunal Federal, de relatoria do ministro Maurício Corrêa: “(…) Os tribunais regionais federais são competentes para processar e julgar prefeitos municipais por infrações praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União (Constituição, artigo 109, IV), assim entendidas também aquelas relativas à malversação de verbas recebidas da União sob condição e sujeitas à prestação de contas e ao controle do Tribunal de Contas da União”.
Diante desse quadro, penso que a postura mais adequada por parte de qualquer juízo de primeiro grau, quando receber uma Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa ajuizada pelo Ministério Público, é de se declarar incompetente e remeter os autos ao Tribunal de Justiça, Regional Federal, STJ ou STF, conforme o caso.