Acesso ao direito recuperacional

3 de março de 2023

Dione Assis Advogada

Compartilhe:

O caso das concessionárias de serviço público de fornecimento de energia elétrica

Desde fevereiro de 2005, o ordenamento jurídico brasileiro conta com um valioso instrumento de soerguimento de empresas que apresentam pontuais crises econômico-financeiras, mas que ainda se mostram viáveis. Cuida-se da Lei nº 11.101, a Lei de Recuperação Judicial de Empresas.

Já em seu primeiro dispositivo, o citado diploma dispõe que: “Art. 1º Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor”.

Por seu turno, o art. 2º e incisos da Lei estabelece quais empresas não podem dela se socorrer, isto é, empresas que, em razão do segmento em que atuam, estão vedadas, expressamente, de se valerem do instituto em referência. Observe-se:

Art. 2º – Esta Lei não se aplica a:

I – empresa pública e sociedade de economia mista;

II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores.

É verdade que para as empresas inseridas no sistema financeiro (como as que constam do inciso II do art. 2º) há outros mecanismos que visam ampará-las quando apresentam um quadro de insolvência, nos termos da Lei nº 6.024/1974. No entanto, historicamente, tais instrumentos jamais se prestaram ao soerguimento da empresa. Sua finalidade se limita à proteção da sociedade contra eventuais agentes nocivos ao equilíbrio do sistema financeiro nacional.

Portanto, preferiu o legislador impedir que somente as empresas integrantes do sistema financeiro pudessem se valer do sistema recuperacional. Não por outra razão, a disposição do art. 1º permitiu, por exemplo, que associações civis sem fins lucrativos, mas com fins econômicos, se beneficiassem do processo de recuperação judicial, cuja finalidade se encontra no art. 47 da Lei:

Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Ocorre que, contrariando os dispositivos acima declinados, outros diplomas legislativos passaram a disciplinar a matéria, excluindo da incidência do remédio recuperacional empresas jamais excluídas pelo legislador originário. É o caso das empresas concessionárias de serviços públicos de fornecimento de energia elétrica, conforme dispõe o art. 18 da Lei nº 12.767/2012:

Art. 18. Não se aplicam às concessionárias de serviços públicos de energia elétrica os regimes de recuperação judicial e extrajudicial previstos na Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, salvo posteriormente à extinção da concessão.

Como é sabido, o citado dispositivo tem origem na Medida Provisória nº 577/2012, cujo objetivo foi estabelecer procedimento de manutenção da prestação do serviço de energia elétrica, conduzido pela agência reguladora competente – a Agência Nacional de Energia Elétrica ( ANEEL ) – quando a concessionária apresenta dificuldades.

Já na Exposição de Motivos da MP nº 577/2012 consta que o objetivo da norma era garantir a continuidade do serviço público essencial de energia elétrica, adequando a prestação temporária do serviço público pelo poder concedente ou por entidade da administração pública federal em caso de extinção por falência ou caducidade da concessão.

Assim, olvidando-se da finalidade precípua da Lei nº 11.101 – que é a salvaguarda da atividade econômica desenvolvida – para o legislador, a sujeição das concessionárias ao regime da recuperação judicial poderia comprometer a continuidade do serviço público essencial de energia elétrica e, como forma de impedir a descontinuidade do serviço, criou um regime próprio de intervenção no qual o poder concedente mantem a prestação do serviço em caso de crise econômica da concessionária.

No entanto, segmentos cuja essencialidade é equivalente não foram excluídos do regime recuperacional, como é o caso das telecomunicações, cujo exemplo notório foi a recuperação judicial do Grupo OI, que teve renovado o pedido recentemente.

A exclusão imposta pelo art. 18 da Lei nº 12.767/2012 demonstra odioso tratamento anti-isonômico a atores de igual relevância no cenário nacional. Há, portanto, uma fumaça de inconstitucionalidade que, muito em breve, deverá ser enfrentada pelos tribunais brasileiros, na medida em que exclui as concessionárias de energia elétrica do acesso ao direito recuperacional, sem lhes fornecer qualquer outro instrumento que permita a sua preservação, exceto quando já encerrada a concessão.

A quem interessar, vale acompanhar o julgamento do AREsp nº 2.233.829/BA, em que contendem o Grupo GEA e o Banco Amazônia S.A. Em decisão monocrática, o meritíssimo Ministro Relator Marco Aurelio Bellizze, nos autos da TP nº 3740/BA, atribuiu efeito suspensivo ao recurso para determinar a suspensão do processo de recuperação judicial do Grupo GEA até julgamento definitivo.