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Adoção por casal homosexual

31 de janeiro de 2009

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Já há algum tempo forjou-se, no mundo jurídico, um novo conceito de “família”, diferente daquele defendido pelo Código Civil de 1916, que tinha uma visão bem restrita à família proveniente do matrimônio. A elasticidade da interpretação deste termo vem, sem dúvida, em encontro do melhor interesse da criança, que se beneficia ao ver sua família amparada pelo Estado, independentemente de sua configuração.
Assim, desde a Constituição, reconhecem-se como enti-dades familiares, merecedoras de especial proteção, não só a família matrimonializada, como também a oriunda de união estável entre homem e mulher e a monoparental, defendendo alguns autores que estes tipos de família, elencados no artigo 226 de nossa Carta Magna, sejam apenas alguns exemplos lembrados pelo Constituinte, não esgotando, de nenhuma forma, as famílias existentes no mundo, todas merecedoras da dita proteção.
No lastro desta discussão, vem ganhando visibilidade a família formada por duas pessoas do mesmo sexo que, portando-se e considerando-se como um casal, venham a compartilhar suas vidas e a construir juntas seu caminho, podendo constituir patrimônio e criar filhos. Essas crianças, no entanto, embora criadas como filhos por duas pessoas, não poderiam, até bem pouco tempo, ver juridicamente reconhecidos os laços filiais com ambas, posto que a adoção buscava sempre imitar a família natural, evitando assim causar constrangimentos e traumas sociais aos adotados, sob a justificativa de que, na natureza, ninguém tem dois pais ou duas mães, havendo, por esta razão, espaço para um só pai e uma só mãe nas certidões de nascimento.
Até bem pouco tempo, mesmo que no mundo dos fatos ambas as pessoas ocupassem o espaço psicoparental da criança, sendo percebidas por ela como pais ou mães, e mesmo que a sociedade à sua volta já identificasse naquela família essa configuração diferenciada, ainda assim somente um dos parceiros/uma das parceiras poderia oficializar aquele vínculo, fosse ele formado pela paternidade/maternidade biológica, fosse constituído através de adoção.
Já era pacificado que o fato de a pessoa ser homossexual não impediria a adoção, entretanto somente um deles poderia adotar, o outro permaneceria como companheiro do pai, mantendo com a criança uma relação jurídica semelhante à do padrasto. Isto porque o artigo 1.622 do Código Civil veda expressamente a adoção conjunta, feita por duas pessoas, com exceção de serem elas casadas ou viverem em união estável. Como, tanto para o casamento como para a união estável, a diferença de sexos entre os parceiros era considerada um dos elementos essenciais à existência do ato, a união homoafetiva não se encaixava em nenhum dos dois casos excepcionais, impossibilitando o pedido de adoção por ambos os parceiros.
O TJ/RS, todavia, sempre alerta para as mudanças e buscando dar uma interpretação às leis que contemplem as novas necessidades sociais, abriu precedente ao julgar uma apelação, confirmando a concessão da adoção de crianças a uma mulher homossexual que mantinha relação afetiva há oito anos com a mãe adotiva das mesmas, desempenhando funções maternas em relação a elas, desde o seu nascimento. Isto sem desconstituir o vínculo já existente entre sua parceira e as crianças, passando assim a figurarem ambas como mães dos adotandos, o que representou uma adoção conjunta homossexual.
A apelação, interposta pelo MP, argumentava que a adoção não se fazia possível, posto que vedada pelo artigo 1.622 do Código Civil e por possibilitar a constituição de uma família não reconhecida ainda juridicamente, nem pelas normas constitucionais nem pelas infraconstitucionais, escapando também dos moldes da família biológica, que serve de modelo e referência para a adotiva.
Reconhecendo a família homoafetiva como entidade familiar, merecedora de proteção estatal, como é pacífico naquele Tribunal, e baseados em estudos psicossociais que apontaram para o reconhecimento da posse de estado de filho dos adotados em relação ao adotante – que não demonstravam nenhum inconveniente na concessão da adoção nem alguma possibilidade de ela gerar consequências desastrosas para os adotados –, os julgadores abriram mão de preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de bases científicas e priorizaram o vínculo afetivo ali existente, garantindo aos adotantes o direito à convivência familiar, sem deixar que o sexo destes se tornasse um impedimento para isto.
Agindo assim, o TJ/RS filiou-se, mais uma vez, à tese de que família é uma sociedade de afeto, e que não deve o Poder Judiciário deixar de prestar tutela jurisdicional a um tipo de família por não se constituir a partir de uma diversidade de sexos, pois marginalizar essas entidades familiares seria equivalente a privá-las de diversos direitos, entre os quais o da dignidade humana e o da igualdade. Por este motivo, entendeu que deveriam ser usados os mecanismos previstos em Lei, tais como a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito, para suprir a lacuna existente diante da ausência de lei específica para o caso.
Utilizando a analogia à união estável, que, segundo afirma-ram, é o instituto jurídico que mais se aproxima desse tipo de relação, já que também os parceiros homoafetivos são levados a uma comunhão de vida por um affectio conjugalis, e adotando a tese de que a proteção jurídica deve ser dispensada ao conteúdo (as relações ali desenvolvidas e as funções desempenhadas) e não à forma familiar, o Tribunal entendeu que famílias formadas por pessoas do mesmo sexo mereciam tratamento semelhante às demais, podendo gerar vínculos familiares semelhantes.
Assim, ressaltando que paternidade e maternidade se formam mais no social, na circunstância de amar e servir, do que no biológico, no ato da procriação, o Tribunal manteve a decisão do juiz a quo, possibilitando que a família já existente no mundo dos fatos passasse também a constar no mundo jurídico como tal, e, com isso, concedendo àquelas crianças diversos direitos dos quais estariam excluídas se a decisão tivesse sido outra, tais como o direito à herança, à previdência, ao nome e à segurança jurídica e emocional de se verem reconhecidas filhas de ambas as mulheres que as criam e que lhes servem de referência maior na construção de sua personalidade.
Em verdade, crianças são parte de um contexto no qual  família, sociedade e Estado interagem diretamente. Sua identidade pessoal vincula-se diretamente à de seu grupo familiar, que lhe fornece os elementos necessários para sua individualização como pessoa e para sua localização no mundo, fatores primordiais em seu desenvolvimento. Por esta razão, as decisões que interferem nesse  grupo mais íntimo têm que ser ainda mais cuidadosamente pensadas e avaliadas, para que reflitam, efetivamente, o seu melhor interesse.
Se Estado, família e sociedade têm o compromisso de dar proteção integral a crianças e adolescentes, assumidas que são estas como pessoas em condições peculiares de desenvolvimento, qualquer ação do Estado ou de seus agentes deve ter por objetivo o seu bem-estar. Para isto, é necessário que o princípio do melhor interesse da criança esteja sempre presente, como premissa, em todas as ações concernentes àquela parcela da população. A busca de soluções deve estar sempre centrada na criança.
Para identificar o melhor interesse da criança em casos que envolvem a família, muito mais que a letra fria da lei ou os vínculos biológicos ou genéticos existentes, é preciso que sejam considerados os laços afetivos que a criança mantém com cada um, levando-se em conta o atendimento diário de suas necessidades biofísicas e psicológicas; o hábito nela desenvolvido  de receber de uma determinada pessoa amor e orientação; a habilidade e a capacidade desta pessoa de prover à criança  comida, abrigo, vestuário, assistência médica; e as suas preferências.
Também devem ser consideradas a estabilidade emocio-nal, a suficiência econômica e a responsabilidade que o candidato demonstre ter em relação à criança, além de sua capacidade de promover-lhe o melhor interesse, trazendo seu bem-estar no presente e no futuro. Os julgadores devem analisar cuidadosamente o caso, priorizando  as necessidades, as relações de afinidade e afetividade, além das condições psicológicas e emocionais da criança.
Considerando que a família é um grupo cultural, uma estruturação psíquica, em que cada um de seus membros ocupa um lugar, uma função, é perfeitamente possível que uma pessoa ocupe o lugar de pai ou de mãe, mesmo sem ser ascendente biológico da criança. No mundo atual, a paternidade/maternidade sócio-afetiva assume cada vez papel mais relevante na convivência familiar e no atendimento às necessidades de seus membros, sendo uma esperança e uma resposta às várias formas de abandono psíquico de milhares de crianças. O direito ao pai e à mãe, ainda que não biológicos, assim como à convivência com eles, é condição básica para que alguém possa se estruturar psiquicamente como sujeito.
É importante ter-se em mente que as relações que a criança desenvolve desde o seu nascimento formam o alicerce de seu sistema de valores, de seu olhar para o mundo, de sua racionalidade, de seu futuro proceder com os demais, sendo a base de referência para quem ela será na vida, para a sua identidade como pessoa humana. E a criança tem direito a uma identidade estável, ela própria assegurada por uma rede simbólica. Assim, a estabilidade, a continuidade e a permanência na relação familiar devem ser priorizadas. Qualquer perda dentro do grupo familiar representa uma experiência frequentemente traumática para a criança, que pode lhe trazer significativo custo emocional.
Por isso,  quando se pensa nas crianças criadas por casais homossexuais como filhos, é necessário que se questione se o ordenamento jurídico como está hoje, não permitindo o seu reconhecimento como filho de ambos os pais (ou ambas as mães), realmente atende a seu melhor interesse, ou se, como fazia outrora a lei que impedia o reconhecimento de filhos espúrios, comprometida axiologicamente com o conteúdo do status quo, apenas tenta ocultar, hipocritamente, uma realidade com a qual se convive no mundo concreto, mas que permanece inaceitável no mundo jurídico, mantendo assim a criança despida dos direitos pessoais e patrimoniais que usufruiria se o contrário ocorresse. Talvez também, nessas situações, seja preciso que se desenvolva um novo olhar sobre o mundo para lidar com o contraditório, o heterogêneo e o divergente. E talvez este acórdão seja um sinal do surgimento desse novo olhar.
O momento atual é de crise dos paradigmas familiares, sendo marcado por muitos desafios e ameaças, por muitas incertezas e dúvidas, que deixam o homem moderno cada vez mais perplexo e confuso, vulnerável e inseguro. É necessária muita reflexão e debate para que se mantenha a lucidez que possibilitará encontrar soluções novas e coerentes para novos problemas sociais. É importante, para começar, que se apreenda o novo e verdadeiro sentido de termos como “família”, “paternidade” e “maternidade”, bem como suas várias formas, observando toda a subjetividade que, sabe-se hoje, permeia mesmo a objetividade jurídica.
Mas, se os paradigmas familiares estão em crise, deve-mos lembrar que crises são excelentes oportunidades de aprendizagem social, pois permitem que o Direito cresça e amadureça. Uma vez que a paternidade e a maternidade começaram a ser percebidas em sua essência, desbiologizadas e vistas como funções, o pensamento jurídico tem que se reestruturar. E é necessário que o faça logo, pois as consequências de uma decisão errada, nesses casos que versam sobre assuntos tão cruciais e decisivos para a construção da identidade e estruturação da personalidade do sujeito, podem acarretar efeitos particularmente sérios para o seu desenvolvimento cognitivo, linguístico, moral, social e afetivo-emocional, tais como distúrbios no comportamento relacional e bloqueio de emoções e afetividade.
Pouco acrescenta à proteção integral da criança essa persistência em manter a idealização da família tradicional, ignorando a experiência vivenciada pela criança. Esta atitude gera apenas preconceitos, estereótipos e visões estreitas e pouco realistas dos outros tipos de família. Para que o melhor interesse da criança seja efetivamente atendido, é preciso que o caminho se inverta: que, sem idéias pré-concebidas, as relações de afeto que conduzem grupos de pessoas, ainda não identificados expressamente em nosso ordenamento jurídico como ‘família’, a conviver e compartilhar o cotidiano de alegrias e tristezas,  devem merecer todo o apoio e a proteção do Estado.
É preciso que se investigue qual, afinal, o melhor interesse da criança, examinando suas condições emocionais e psicológicas, conhecendo sua vontade e os vínculos decorrentes das relações de afetividade e afinidade estabelecidas por ela com cada membro do grupo familiar, bem como a dinâmica, a engrenagem e a atmosfera reinantes naquela família. Só então poderá a paternidade/maternidade ser estabelecida conforme o melhor atendimento às reais necessidades da criança, reforçado e respeitado inclusive o seu direito à continuidade da convivência familiar, entendendo-se aí família como algo que vai muito além dos vínculos biológicos, muitas vezes prescindindo deles.
Por esta razão, a meu ver, procedeu bem o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ao julgar improcedente a apelação interposta pelo Ministério Público. Agindo de outra forma, privilegiaria aspectos meramente secundários ou formais e camuflaria os reais interesses das crianças, em descuido dos pontos mais essenciais do seu viver cotidiano. Tal atitude conduziria, portanto, a graves danos para as crianças, pois seria uma afronta a vários de seus direitos fundamentais, tais como o da própria dignidade humana.
Em verdade, resta cada vez mais claro que, se a opção é dar sempre prioridade aos interesses superiores da criança, não pode haver uma regra que dê primazia incontestável à família biológica, privilegiando a genética em detrimento da afetividade, dos hábitos e interesses do menor e, consequentemente, do seu melhor interesse.

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