ADPF 165: A política monetária versus o direito de propriedade

9 de junho de 2014

Compartilhe:

1. Considerações iniciais
Algumas considerações preliminares fazem-se necessárias sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no165, em tramitação no Supremo Tribunal Federal. A primeira, diz respeito à política monetária e ao Poder do Estado de fixar padrões monetários e alterá-los.

São, a moeda e o crédito, instrumentos fundamentais para que a economia possa fluir, assim como o sistema financeiro é a alavanca necessária para o desenvolvimento dos povos, mormente após ter sido aperfeiçoado pelo talento dos holandeses em criar regras mais estáveis para sua sistematização.

É bem verdade que, com o humor cáustico com que revestia seus trabalhos, Galbraith afirmava que o sistema financeiro trabalha com o dinheiro de terceiros, que desconhecem, na sua grande maioria, como agem os bancos, porque, se conhecessem, teriam dúvidas e receios em neles aplicar suas economias. Exatamente por desconhecerem os métodos da administração financeira, todos ganham, inclusive a economia real.

É que a moeda representa, simultaneamente, reserva de valor, instrumento de troca e meio de pagamento, servindo, na sua acumulação, como instrumento de detenção de riqueza e promoção do desenvolvimento.

Não sem razão, a evolução dos sistemas financeiros, através da história, levou a uma interferência cada vez maior do Estado, não só na função que sempre teve de produzir moeda, mas na de controlar aqueles que eram os “trocadores de moeda”, ou seja, os banqueiros da época.

Não se discute mais, nos tempos modernos, que a política monetária é instrumento de governo, como o é a política tributária, com a diferença de que, pela política tributária pode o governo, na criação de tributos, apropriar-se da renda e patrimônio dos cidadãos, e, pela política monetária, apenas ofertar padrões capazes de assegurar reservas e propiciar investimentos, pelos meios de pagamentos disponibilizados e pela instrumentalização das trocas.

Ao contrário da política tributária, não é função da política monetária a apropriação, o confisco, a tomada de ativos financeiros daqueles que os possuem, sob a falsa alegação de que tal “apropriação indébita” decorre da mudança de padrões monetários. Alterar padrão monetário é um direito de todos os governos. Apropriar-se de ativos financeiros, jamais, a não ser que o fizesse por política tributária – jamais monetária – permitida pela lei suprema.

A primeira consideração, portanto, é que o governo brasileiro tem o direito de alterar quantas vezes desejar seus padrões monetários. Mas não tem autorização constitucional para apropriar-se de bens e recursos de seus cidadãos, a pretexto de que o direito de alterar padrões implicaria o direito de apropriação de ativos de terceiros, por redução do endividamento público, trazendo como efeito colateral o benefício ilegítimo de uns em relação a outros, quando o relacionamento financeiro se der entre particulares. Nenhum artigo da lei suprema admite tal apropriação de ativos financeiros, a título de política monetária, não havendo um único dispositivo que assegure tal inexistente direito.

2. A ADPF
O que cabe realçar, em todos os dispositivos que servem de base a ADPF proposta, objetivando assegurar um poder monetário ilimitado, é de que nem neles, nem em quaisquer outros está assegurado esse poder ilimitado, de confiscar ou de apropriar-se indebitamente de valores, pois tudo isso levaria ao ferimento claro e inequívoco do direito de propriedade dos detentores de valores mobiliários.

Em nenhum momento, a título de mudança de padrões monetários, pode o governo arvorar-se no poder de apropriação de parte dos valores pertencentes à sociedade, mediante a desfiguração de índices reais para transformá-los em índices fictícios. A eliminação de índices de realidade, ou seja, realmente vinculados à inflação, para metamorfoseá-los em outros, manipulados, a seu arbítrio e conveniência para reduzir a dívida pública e beneficiar as instituições financeiras, é manifestamente inconstitucional. É de se lembrar que, no Brasil, ocorra a crise que ocorrer, o setor bancário sempre demonstrou saúde financeira superior  à de qualquer outro segmento.

Cabe-me reiterar, portanto, que não há nenhum dispositivo constitucional que outorgue ao estado o poder de confiscar mencionado na ADPF,  a título de reformar padrões monetários, mediante manipulação de índices inflacionários. ao contrário da Carta da República, resulta claro que toda a política monetária há de ser feita com respeito aos direitos consagrados na Constituição, entre os quais a inviolabilidade do direito de propriedade.

Concluindo, pois, esta parte entendo que:

a)     nenhum dos dispositivos mencionados na inicial é preceito fundamental;
b)    nenhum é cláusula pétrea;
c)     quem tem o direito de definir padrões monetários ou política monetária, não tem o poder constitucional de se apropriar de ativos mobiliários, confiscando-os por mera manipulação de índices;
d)    o direito à propriedade consagrado na Constituição é inviolável e só pode ser atingido, nas expressas hipóteses constitucionais (desapropriações com justa e prévia indenizações, por exemplo), entre as quais não está o do confisco monetário.

Na inicial da ADPF, redigida por eminentes juristas pátrios, consideraram seus proponentes que a insegurança jurídica decorrerá da não alteração da remansosa jurisprudência a favor dos poupadores, que tiveram seus ativos confiscados e repostos por força de decisões de todos os tribunais, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça, que, em matéria de legalidade, é a corte máxima do País.

Alegando matéria de fato, prejuízos das instituições financeiras, cujos balanços demonstram o contrário, e entendendo que a segurança jurídica só se obterá se toda a jurisprudência favorável até o presente, nestes últimos nove anos, for modificada, pretendem seus eminentes autores que seja assegurado ao Poder Público o poder absoluto de manipulação de índices. Pedem, ainda, que todos os planos econômicos, mais especialmente o Plano Verão, sirvam de base para que, legitimando o poder de manipulação, possam os ativos financeiros de poupadores ou investidores ser desfeitos ou desfigurados por qualquer medida do Poder Público.

Creio que aqui o princípio da segurança jurídica mais está contra os proponentes do que a seu favor. Que insegurança jurídica seria maior do que declarar que todos os nove anos de decisões a favor dos poupadores devam ser esquecidos e os pronunciamentos judiciários modificados, obrigando as pessoas a devolver às instituições financeiras aqueles “expurgos inflacionários”, aos quais o seu direito foi reconhecido?!

Um caos absoluto haveria no sistema judiciário, inclusive com o entulhamento de ações dos bancos para retomarem o que já tivessem pago!!! O que traz mais segurança: manter os nove anos de jurisprudência pacífica, cujos valores já pagos pelas instituições comprovadamente em nada afetaram seus exuberantes lucros, ou mudar a mansa orientação do Poder Judiciário, propiciando a renovação das ações, tendo agora os bancos como proponentes, objetivando reaver o que já devolveram?!

Em outras palavras, segurança jurídica, preceito fundamental, cláusula pétrea, está em preservar a mansa e pacífica jurisprudência do todos os tribunais do País.

3. Conclusão
Carece a ADPF 165 de embasamento legal. A lei 9882/99 não poderia ser utilizada para dar guarida à pretensão da autora. Como procurei demonstrar no corpo do parecer, de um lado, nenhum dos dispositivos elencados pela entidade proponente é preceito fundamental; de outro, a divergência jurisprudencial ou controvérsia sobre a matéria de há muito já foi pacificada por todos os tribunais do País, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça.

Na minha inteligência, como um dos membros da comissão nomeada pelo presidente Fernando Henrique, entendo que o inciso I do parágrafo único do artigo 1o da lei prevê o cabimento somente se um preceito fundamental da Constituição for violado, no âmbito das três entidades federativas, havendo controvérsia atual sobre sua violação. À falta de demonstração de descumprimento de algum preceito fundamental, a ação não poderia ter sido proposta, configurando-se a situação processual de carência.

Por outro lado, mesmo que se adotasse o entendimento da desnecessidade de descumprimento de preceito fundamental, considerando suficiente a existência de controvérsia jurisprudencial relevante – inteligência exegética que não adoto – no caso, tampouco a ação poderia ter sido proposta, à falta de controvérsia atual. A controvérsia passada, no curso destes nove anos, já foi amplamente superada.

Por fim, o preceito fundamental da segurança jurídica seria afetado, se procedente a ação, pois todas as decisões, de todos os tribunais que pacificaram a matéria, seriam incineradas, num só momento, gerando entulhamento de ações rescisórias, pelo fato de a matéria em jogo, no entender das autoras (ADPF 165), ser constitucional. Criar-se-ia densa e absoluta insegurança jurídica, atingindo um grande número de jurisdicionados (poupadores) beneficiados por decisões pacificadas, que seriam desconsideradas em prol das poucas instituições financeiras. Considero, pois, que a ADPF 165 não preenche os requisitos exigidos pelo artigo 1o da Lei 9882/99.

Mister se faz deixar claro que ninguém tem direito adquirido a um padrão monetário. Todos, todavia, têm direito adquirido à propriedade de seus ativos financeiros. Se a mudança de padrão monetário não atingir a propriedade destes ativos, como ocorreu no Plano Real, a questão não se trata de direito adquirido, mas de respeito ao direito de propriedade. Se, todavia, o padrão monetário implicar em “apropriação” de parte destes ativos financeiros – como ocorreu em todos os planos anteriores em que a inflação vinculada aos ativos financeiros foi parcialmente “incinerada” em plena mudança – o que resta maculado é o direito de propriedade dos titulares desses ativos.

A resposta, portanto, é que o direito atingido é o de propriedade, desconsiderado na mudança dos planos econômicos mencionados, com eliminação da inflação real e existente, pela manipulação de índices, gerando confisco de tais valores em benefício do governo, em seu endividamento interno e, como efeito colateral, de ter beneficiado terceiros fora do Poder Público, inclusive as instituições financeiras.

Em outras palavras, se fosse considerada procedente a ação, muito embora caiba ao STF dar a interpretação definitiva, o direito à propriedade teria sido, na prática, absolutamente fragilizado e a insegurança jurídica na detenção de ativos financeiros, definitivamente, instalada.

Tenho para mim que a ADPF não deveria ser conhecida e, se conhecida, deveria ser considerada improcedente, pois não há nem preceito fundamental, nem divergência jurisprudencial em jogo.

Admitindo, por absurdo, que seja conhecida e considerada procedente, para assegurar a segurança jurídica possível, dentro da insegurança jurídica gerada por decisão desse teor, poderia ser adotada a modulação de efeitos, não permitindo a propositura de novas ações, mas assegurando aquelas em andamento a elas estendidas as decisões favoráveis, que ficariam então mantidas.