Advocacia, essencial para virtualização da Justiça

31 de maio de 2021

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Desde março de 2020, todo o sistema de Justiça do Brasil vem sendo testado em seu limite. De um lado, restrições de locomoção e aglomeração sendo decretadas em todo País, acarretando o fechamento dos prédios do Poder Judiciário. De outro, a crescente e premente necessidade de pacificação social, seja em lides antigas e anteriores à pandemia, seja em novos litígios, em especial aqueles que exigem imediata atuação judicial para a melhor condução das políticas públicas relacionadas à atividade de saúde.

O Tribunal de Justiça de Mato Grosso, ainda em 3 de abril de 2020, informou que nos primeiros 15 dias de trabalho remoto foram publicadas quase 22 mil decisões. Já em abril de 2021, estatísticas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indicam que o Tribunal mato-grossense registrou quase 26 milhões de atos processuais.

Nas cortes superiores, o Superior Tribunal de Justiça, desde o início do teletrabalho até a data de 25 de abril de 2021, proferiu 748.772 decisões, sendo 567.744 terminativas.

Em seu discurso de abertura do ano judiciário de 2021, o Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Luiz Fux, afirmou que o cidadão brasileiro terá um Poder Judiciário reformulado ao citar o programa Juízo 100% Digital. Louvou ainda o fato de que o STF poderá ser a primeira corte constitucional totalmente digital do planeta “com perfeito alinhamento entre a inteligência humana e artificial para oferecimento online da integralidade dos seus serviços jurisdicionais”.

Por certo, os números não deixam dúvidas. A digitalização da Justiça brasileira, processo iniciado e capitaneado pelo CNJ, colheu seus frutos antecipadamente durante a pandemia, promovendo a continuidade de boa parte dos trabalhos judiciários.

Contudo, ainda que a digitalização do judiciário se demonstre importante ferramenta para consecução dos trabalhos ordinários, não é possível ignorar que, segundo a Folha de São Paulo, 70 milhões de brasileiros têm acesso precário à Internet durante a pandemia. A Agência Brasil (EBC), reproduzindo resultado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação (PNAD Contínua TIC) de 2018, informou que um em cada quatro brasileiros não têm acesso à Internet.

Em janeiro de 2020, o Correio Braziliense indicou que a Internet brasileira é a 58ª mais cara do mundo, com custo médio mensal de R$114,15, ou cerca de 11% do salário mínimo. O alto valor do serviço de Internet não é o único obstáculo ao acesso. O Centro Regional de Estudos para Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC), traçou o perfil do usuário de Internet brasileiro: urbano, escolaridade média ou superior, idade entre 10 e 45 anos e, majoritariamente, integrante das classes mais altas, A e B. Quando analisamos o grau de instrução, apenas 23% da população analfabeta ou que frequente o ensino infantil têm acesso à Internet. O estudo indica ainda que, em geral, apenas 39% dos domicílios brasileiros contam com um computador. Nas palavras de Ranchordas (2021), a desigualdade digital é a materialização da exclusão eletrônica, ou seja, a lacuna entre aqueles que participam da era digital e aqueles que não participam.

E a desigualdade digital, ao contrário do senso comum, não se restringe a inviabilizar a vida virtual, mas afeta direta e negativamente diversos aspectos da vida civil e social. Exemplo contemporâneo a este artigo é a notória dificuldade dos idosos em agendar a vacinação naqueles municípios que aderiram a sistemas eletrônicos – nem sempre muito estáveis e confiáveis – para marcação da data de vacinação. Outros exemplos exsurgem de todos os lados: relacionamento com bancos, serviços governamentais, educação, etc. Kofi Annan, então Secretário-geral da Organização das Nações Unidas, ainda em 1999, alertou-nos que as pessoas são privadas de trabalho, abrigo, alimento, saúde e água potável, mas hoje, estar excluído de meios básicos de telecomunicações é tão grave quanto ser privado do resto, afinal, a exclusão digital reduz as chances de remediar as privações.

Esta introdução tem por finalidade demonstrar que a rápida digitalização do Judiciário é um caminho sem volta e nos proporciona inúmeras vantagens e avanços na prestação jurisdicional, porém, não pode ser tomada como finalidade e muito menos restar alçado como objetivo máximo das cortes de Justiça.

Inclusive, em recente artigo veiculado por Luciana Yuki Sorrentino e Raimundo Silvino da Costa Neto, juízes de direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, considerando o hiato digital, a “(…) continuidade da prestação jurisdicional não justifica a aplicação uniforme da solução digital para todos os casos, sob pena de se gerar situações ainda mais injustas e aumentar o abismo que existe entre o Poder Judiciário e a parte mais vulnerável da sociedade (…)”.

É neste ponto que reside a preocupação da Ordem dos Advogados do Brasil. Ainda que a tecnologia supra diversas dificuldades no oferecimento dos serviços judiciais o fato é que lidamos com uma ciência humana e social. O advogado e a advogada, investidos em seu papel de essencial para administração da Justiça, funcionam como porta de entrada do cidadão para o sistema jurídico brasileiro e, recentemente, tem lhes cabido o papel de acolhimento, antes compartilhado com os serventuários e magistrados do Poder Judiciário.

Videoconferências, por mais vívidas, límpidas e reais que sejam, não substituem o contato olho a olho de uma sustentação oral. A presença física do advogado e advogada na tribuna é imprescindível. As sutilezas das audiências de instrução não são visíveis pelo meio digital. A pacificação social alcançada em uma sessão de mediação muitas vezes não poderá ser replicada através de uma simples tela.

A agonia de um pleito urgente que envolva liberdade ou o sagrado direito à vida exige que o Poder Judiciário, como instrumento de pacificação social e de salvaguarda aos mais vulneráveis, esteja presente em todos os rincões do País.

Inclusive, o CNJ, defronte às restrições que inviabilizaram o julgamento de crimes dolosos contra a vida de competência de tribunais do júri, criou protocolos para que, em sendo vedada a migração de tal modalidade para o ambiente virtual, o ato fosse realizado com segurança e observando os respectivos protocolos sanitários.

Nestas iniciativas, a advocacia é parceira do Poder Judiciário e potente instrumento de disseminação de novas práticas e procedimentos, contudo, nunca tergiversando um milímetro sequer das prerrogativas profissionais dos advogados, verdadeiros corolários do Estado Democrático de Direito e das garantias constitucionais.

Do contrário, relegar o acesso à Justiça e a atividade jurisdicional apenas de forma digital, além de ofender preceitos constitucionais, vai de encontro ao que consta dos itens 10.2, 10.3 e 16.3, dentre outros, do 10º e 16º Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), que buscam reduzir a desigualdade dentro dos países e promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à Justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas a todos os níveis.

Em sendo preceitos basilares de nossa sociedade e elementos norteadores da Agenda 2030 no Brasil, é necessário e imprescindível que todas as válidas e úteis iniciativas tecnológicas observem à risca o que consta do Estatuto da Advocacia, sob pena de tolher os mais relevantes direitos dos cidadãos e contribuir para o aumento da mencionada exclusão e hiato digital, nos afastando da construção de uma sociedade mais inclusiva, pacífica, igualitária e de uma Justiça eficiente na utilização de recursos e na solução de conflitos.

Todo avanço, evolução e melhoria é salutar para a administração da Justiça, contudo, não se pode admitir – sob qualquer pretexto – prejuízo e vilipêndio às prerrogativas profissionais que, em verdade, concretizam as garantias fundamentais daqueles que outorgaram poderes aos advogados e advogadas. No conflito entre informatização e garantias fundamentais, a balança deve sempre pender para a proteção dos vulneráveis e pleno acesso à Justiça.

É bom frisar que a Ordem dos Advogados do Brasil, em sua função de stakeholder e de guardiã da democracia e direitos fundamentais, ainda que em desagrado de muitos, não se afastará de sua missão constitucional e institucional de garantir a todos os cidadãos acesso à Justiça de forma igualitária e, além do simples acesso, a efetivação e concretização da paz social que todos almejamos e da qual a advocacia é protagonista.