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Algumas considerações sobre a fundamentação jurídica e seus rumos

30 de setembro de 2006

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É indubitável a transição por que passa o sistema jurisdicional de nossos tempos, pois, de uma análise lógico-formal que balizava as decisões judiciais, vimos mergulhando numa perspectiva ético-social de interpretação e aplicação normativa.

O presente trabalho apresenta a evolução das teorias mais importantes e, ao final, relaciona as principais contribuições dos modelos estudados.

De acordo com os historiadores, os debates filosóficos deitam suas origens na antiga Grécia, tendo-se notícia de que ali existiam dois grupos filosóficos antagônicos debatedores: sofistas e socráticos, os quais utilizavam-se de estratégias persuasivas e poder de oratória, objetivando determinado tema. No grupo socrático vamos encontrar Platão e Aristóteles.

Os sofistas foram os primeiros a tratar da retórica, como técnica de persuasão, através dos lógoi ou argumentos opinativos, baseados na aparência do objeto sobre o qual se discutia. Esta, como arte discursiva, objetivava formar grandes oradores e políticos ensinando-lhes técnicas argumentativas.

Aristóteles

Aristóteles, a despeito de ser discípulo de Platão dele divergia quando introduziu suas regras de argumentação persuasiva, aproximando-se, assim, dos sofistas, os quais não vislumbravam qualquer possibilidade de uma cognição da verdade absoluta. Segundo ele, a retórica deveria ser corretamente assimilada como fator democratizante e que se definem por três características básicas:

1. Argumento da autoridade, onde se tem em conta o poder do orador;

2. A empatia com o auditório, privilegiando-se as opiniões do auditório;

3. Plausibilidade argumentativa, argumentos fortes, alicerçados em técnica persuasiva.

Introduz o silogismo como comprovação da vinculação de dois termos criando uma proposição.  Cada complexo de afirmações seria dividido em afirmações menores que deveriam ser cientificamente testadas através do silogismo, premissa maior, premissa menor e conclusão, onde a premissa maior seria igual à menor e que deveria, também, ser igual à conclusão.

Em seguida temos o método sistemático-cartesiano, formulado por Kelsen que, buscando esquadrinhar uma ciência pura do direito, isolou do seu conteúdo a questão da justiça como valor.

A lógica formal da dogmática jurídica tradicional não respondia eficazmente à razoabilidade exigida nas soluções dos problemas jurídicos. Volta-se ao debate de valores, corrigindo a visão do normativismo que oportunizava uma enorme discricionariedade.

Kelsen

Kelsen procurou demonstrar que a sentença, enquanto ato de vontade do julgador, não deixa de ser norma concreta, pois decide o litígio entre as partes, desde que não perdendo o foco da lei.

Segundo Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, in “Interpretação como ato de conhecimento e interpretação como ato de vontade: a tese kelseniana da interpretação autêntica”, a síntese das teses de Kelsen estabelece que a interpretação é necessária tanto para a aplicação como para a observância das normas jurídicas; o ato de aplicação é ato, ao mesmo tempo, determinado e indeterminado; a indeterminação pode tanto referir-se ao fato condicionante quanto à conseqüência condicionada juridicamente, podendo ser gerada intencionalmente ou não pela autoridade que estabeleceu a norma a ser aplicada; a indeterminação pode ter origem na ambigüidade das palavras constantes da norma, ou na suposição de ambigüidade entre a palavra da norma e a vontade do legislador ou, por fim, por duas normas pretenderem valer simultaneamente. Nos casos de indeterminação há várias possibilidades de aplicação: o ato jurídico pode tender a um dos significados das palavras, desde que corresponda à vontade do legislador ou à expressão por ele escolhida de forma a se encaixar em uma das normas que se contradizem ou considerar que duas normas em contradição se anulam mutuamente, sendo entretanto definitivo que todo o ato se mantenha dentro da moldura estabelecida. Nesse sentido, o resultado da interpretação é a fixação da moldura como o direito a interpretar ou, ao menos, o conhecimento das possibilidades existentes dentro da moldura.

A partir de 1960, admitem-se também as possibilidades fora de moldura; todos os métodos podem conduzir apenas a interpretações possíveis, que só existem se as normas deixam possibilidades em aberto, sendo esta questão de política do direito. A interpretação autêntica é aquela realizada pelos órgãos jurídicos autorizados, escolhendo entre as possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva, produzindo-se norma de escalão inferior e a não-autêntica realizada pelos indivíduos, sendo que esta não vincula os órgãos aplicadores do direito e, pela ciência do direito, que é pura cognição do direito.

Calamandrei e Saussure

Calamandrei, em sua obra, destaca a importância da fundamentação, reconhecendo ser ela uma grande garantia da justiça, pois mostra o itinerário lógico percorrido pelo decididor, para chegar a sua conclusão, permitindo, inclusive a detecção do momento em que o magistrado se desviou da decisão correta.

Saussure introduz o estudo do signo lingüístico demonstrando que a língua aparece como uma herança da época precedente, sendo um sistema complexo que se desenvolve com as contribuições das falas diferenciadas, aparecendo como fator de conservação.

Na antiga tradição, o termo “decisão” está ligado aos processos deliberativos, aparecendo como um ato final em que uma possibilidade é escolhida e as outras abandonadas.

Modernamente, o conceito de decisão tem sido visto como um processo mais complexo que, em sentido amplo, pode ser chamado de aprendizado. Esse processo tem motivação (conjunto de expectativas, exigindo resposta), reação (resposta) e recompensa (relação definitiva).

Nesse quadro, a decisão é um procedimento cujo momento culminante é a resposta, cuja justificação constitui a questão de sua legitimidade e onde podemos pretender satisfação imediata para o conflito, sendo uma forma de subordinação que pode ser denominada compromisso, conforme surjam as incompatibilidades: equivalentemente convincentes, não equivalentemente convincentes sem recompensa viável, não equivalentemente convincente com previsão das recompensas.

Há possibilidade, também, de se obter satisfação imediata no processo decisório, enfrentando, entretanto, incompatibilidades de segundo grau relativas à própria satisfação imediata: expectativas grupais e sociais, políticas e econômicas, jurídicas stricto sensu. Trata-se de um processo dentro de um processo.

Bobbio

Norberto Bobbio, in “Teoria do Ordenamento Jurídico”, estuda o conjunto de normas que o constituem, as inúmeras relações e conseqüências da sistematização das leis, assumindo que estas não existem isoladamente, mas em contexto que as relacionam entre si.

Estabelece critérios para a definição de direito, como sistema normativo: formal, material, do sujeito que põe a norma e do sujeito ao qual é ela destinada, dividindo as normas que compõem o sistema: permissivas, proibitivas e obrigacionais.

Ressalta os principais problemas conexos com a existência de um ordenamento: se as normas constituem uma unidade, antinomias, completude (lacunas) e relação entre os diversos ordenamentos, que podem ser simples e complexos, mas que não toleram as antinomias. Conclui que só acontecem as antinomias se as normas pertencerem ao mesmo ordenamento e que tenham o mesmo âmbito de validade.

Apresenta critérios para a solução das antinomias: cronológico, hierárquico e da especialidade, embora entendendo a insuficiência desses critérios, relegando-se ao intérprete um autêntico poder discricionário, que resolverá o conflito segundo a oportunidade.

No que concerne à completude, salienta que não é uma característica onde o intérprete tem resposta para tudo, pois seria um sistema casuístico, mas que o juiz deve aplicar seu conhecimento para suprir qualquer lacuna existente.

Bobbio, conclui em “A era dos direitos”, que os direitos dos homens pertencem a uma categoria heterogênea, que, no seu conjunto, passou a conter direitos incompatíveis entre si, restringindo-se uns aos outros, pois uma sociedade é a um tempo mais livre e menos justa e a outra mais justa e menos livre.

Alexy e Ferraz Junior

Robert Alexy tem por objetivo o estabelecimento de um princípio universalista, estabelecendo-se um código padrão de entendimento. Refere-se, também, à teoria da inércia, segundo a qual para se modificar um entendimento, devem-se apresentar razões fortes para tal fim.

Estabelece as regras para o discurso prático geral e as do discurso jurídico, que em suma, dispõem que toda fundamentação de decisão jurídica deve apresentar ao menos uma norma universal e ser seguida de outra. Sempre que houver dúvida deverá ser estabelecida regra para decidir a questão. Deve-se seguir em etapas, no maior número possível, formulando expressões cuja aplicação não permita discussão.

Por fim, estabelecendo regras para esclarecer o papel dos cânones, Alexy distingue alguns pontos: amplo campo de aplicabilidade; esquema de argumentação caracterizando a estrutura do ordenamento jurídico, evitando a elaboração de uma gramática jurídica; saturação de toda forma de argumento que houver entre os cânones da interpretação;  formas cumprindo função semântica, genética, histórica, comparativa, sistemática e teleológica; com o objetivo de evitar resultados diferentes nas formas, ocorreram tentativas de hierarquização, sem entretanto, se chegar a uma proposta totalmente aceita; a teoria do discurso, embora não apresente um catálogo hierárquico, oferece contribuição para solucionar o problema, demonstrando como usar as diferentes formas de argumento: 1- levar em conta a dimensão pragmática da discussão e 2- não utilizar critérios que levem a resultado único; os argumentos vinculados ao teor literal da lei e a vontade do legislador histórico devem prevalecer; com a utilização de regras de ponderação para a determinação do peso dos diversos argumentos; todos os argumentos devem ser considerados.

Ferraz Junior, entretanto, faz considerações sobre uma comunicação pragmática, onde se localiza o discurso jurídico, tendo em conta aspectos diversos daqueles expostos por Robert Alexy. Efetua uma revisão de modelos clássicos e propõe o estudo do discurso de duas formas: dialógico (“discussão com” e “discussão contra”) e monológico. Com o modelo proposto parte para uma análise do discurso jurídico, dividindo-o em discurso judicial (valor e ideologia) e o discurso da Ciência do direito (discussão científica).

Segundo sua teoria dogmática da argumentação jurídica,  não se recebeu nenhuma forma de acabamento, ao contrário dos sistemas analíticos e interpretativos, possui, tão somente, análises parciais.

No Brasil, o Código de Processo Civil, em seu artigo 131, alicerçado por previsão constitucional, dispõe que é dever do juiz “indicar na sentença os motivos que lhe formaram o convencimento”.

Conclusões

Ressaltamos a contribuição de cada pensador para a teoria da argumentação, sendo importante, como diz Saussure, situar a norma no seu contexto histórico de tal forma a entender o sinal lingüístico da norma no seu próprio contexto histórico.

Kelsen, embora enfatize a necessidade de uma visão depurada do direito, sem elementos estranhos à sua natureza essencialmente jurídica, silencia quanto ao fato de que a aplicação do direito sem a abrangência do meio social e da possibilidade de interpretação fundamentada, limita a esfera de atuação do magistrado, propiciando, assim, a dominação do poder estatal.

Bobbio, conforme ressalta Wilson Madeira, in “Teoria da Motivação da Decisão Jurídica”, tem por preocupação científica criar “um marco teórico que consiga abranger toda uma verdadeira lingüística pragmática sincrônica”,  fornecendo um painel estruturalista capaz de “tomar o ordenamento jurídico enquanto comunicação dogmática”.

Alexy substitui o comando legal pela necessidade prática de se realizar alguma coisa, estabelecendo, sob o ponto de vista formal uma correlação entre as premissas maiores e subsidiárias, devendo estas últimas restar comprovadas. Nesse sentido estaria estabelecendo um polissilogismo a partir da verdade universal de, por exemplo, um princípio, cuja conclusão seria aferida no caso concreto.

Enfim, o uso dos cânones por este estabelecidos, embora não garanta a correção do resultado, também não legitima as decisões, auxiliando o cumprimento da pretensa correção que se afirma existir na argumentação jurídica.

Cotejando o modelo de Ferraz Junior e o de Robert Alexy, verifica-se que o primeiro imprime uma visão mais clara dos aspectos relativos a uma teoria da recepção comunicativa e o segundo se encaixa mais para uma “teoria pura”, mas ambos exigem um domínio pragmático de falas diferenciadas.

Ressalte-se que Ferraz Junior apresenta em sua teoria uma maior concentração de aspectos práticos, premissas mediatas e imediatas do discurso e Alexy ao situar o argumento jurídico como um dos componentes do discurso racional prático, demonstra que sua tese central  pode auxiliar o procedimento, quanto aos ideais de racionalidade, em razão de ser o direito uma comunicação dotada de delimitação semântica.

Por fim, resta claro, que todos os autores aqui declinados, contribuem, de uma maneira ou de outra, na tentativa de que se possa obter um discurso jurídico racional, utilizando-se essa ou aquela metodologia, mas sempre procurando emprestar um cunho científico à argumentação jurídica das decisões, especialmente as jurisdicionais, objetivando a clareza e transparência do percurso do magistrado, na busca da solução para os conflitos sociais.
BIBLIOGRAFIA ________________________________

Bobbio, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus.

Bobbio, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 7ª. ed. Tradução Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: UNB, 1996, 184p..

Capelletti, Mauro, Proceso, ideologías, sociedad. Buenos Aires: Jurídicas Europa América, 1974.

Chauí, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, v. 1. 2ª. ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Ferraz Junior, Tercio Sampaio, Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. – 4ª. ed. – São Paulo: Atlas, 2003.

Madeira Filho, Wilson. Teoria da motivação da decisão jurídica: aspectos introdutórios – lógica e lingüística aplicadas ao direito.

Montesquieu, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das Leis. Tradução Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1996 (Coleção “Os pensadores”).

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