Edição 285
Alterações tecnológicas e impactos nas políticas públicas trabalhistas
3 de maio de 2024
Alexandre Agra Belmonte Membro do Conselho Editorial / Ministro do Tribunal Superior do Trabalho
Longe de ser estranha ao Direito do Trabalho, as novidades tecnológicas dos séculos XVIII e XIX causaram a primeira disrupção nas relações de trabalho e foram exatamente o motivo da implantação de normas protetivas da precarização.
Considerando a então essencialidade ou dependência do trabalho humano em qualquer lugar do planeta, foi possível, em 1919, universalizar e praticamente uniformizar o Direito do Trabalho. Idealizada no Tratado de Versalhes como um dos pontos capazes de garantir a paz interna e externa, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), como organismo mundial de composição tripartite (envolvendo em assembleias anuais Estados membros, empresários e trabalhadores e tendo como ponto de partida de sua Constituição a humanização das relações de trabalho), cumpriu e atualmente ainda cumpre, e bem, esse papel.
Nos primórdios da proteção, as condições de trabalho, amplificadas pela mecanização, eram a grande culpada da precarização. Insalubridade, insegurança, excesso de jornadas, remuneração indigna e utilização indiscriminada de mulheres e de menores nas fábricas e em outros ambientes laborais, a exemplo das minas de subsolo, eram o alvo de combate da OIT.
Nessa época, o trabalho era prestado física ou presencialmente dentro do estabelecimento do empregador. E nesse ambiente, em que era reunida toda a cadeia produtiva, para cada tipo de serviço os trabalhadores eram agrupados em equipes para desempenhá-los. Vem daí, por exemplo, a noção de equiparação salarial, oriunda da divisão do mesmo tipo de trabalho. Atualmente, a multiplicidade de unidades de estabelecimento, a descentralização da produção e do local de trabalho, bem como a terceirização e o trabalho remoto cada vez mais dilui a possibilidade ou a evidência de igualação do trabalho.
Todavia, no passado a junção de trabalhadores num mesmo espaço de fábrica, reunindo toda a cadeia produtiva, propiciava a coalizão sindical de outrora, capaz de causar paralisações que ensejaram, pela repetição e pela força, a concessão progressiva de normas protetivas. Nascida em 1943, praticamente no pós segunda guerra durante um Estado de Bem Estar Social que tensionava a industrialização, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) chama essa reunião de trabalhadores num mesmo ambiente de categoria profissional, resultante da similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em comum.
O tempo passou, a mecanização evoluiu para a robotização e a automação tornou-se gênero que passou a englobar como espécies diversas novas tecnologias, a exemplo da computação, do chip e das novas formas de comunicação. E com o auxílio da ciência, por meio inclusive da globalização, terminou por diminuir etapas, distância e o número ou até mesmo a necessidade de trabalhadores nos diversos setores de trabalho e na cadeia produtiva. Esse quadro, cuja origem e necessidade empresarial de busca de novas formas de produção foi a crise do petróleo, recebeu a denominação de Indústria 3.0, causando uma segunda disrupção nas relações de trabalho e o fenômeno da flexibilização. Novas modalidades de contratos por prazo determinado, banco de horas, suspensão contratual decorrente de lay off e extinção da estabilidade por tempo de serviço foram apenas algumas das alterações verificadas na época.
Pulando para a Indústria 4.0, em que a internet interna e externamente conectou os países do globo terrestre em tempo real e a Indústria 5.0 passou a utilizar o algoritmo e a inteligência artificial, verifica-se que o avanço da tecnologia descentralizou, virtualizou, racionalizou, nuvelizou e avatou a produção, globalizando de vez o mundo e produzindo aplicativos de documentação, de aquisições, de procura e de relacionamento social e bancário acessados até por smartphones. Esses aplicativos, embora facilitem as tarefas cotidianas a ponto de se tornarem universais e indispensáveis à vida contemporânea, terminaram por fragmentar ou dispensar o trabalho humano em diversos setores da produção.
Enfim, se no passado os efeitos precarizantes da aceleração da produção pela mecanização eram a grande preocupação, a precarização decorrente da automação é a dor de cabeça dos dias atuais. Ou seja, a preocupação com a máquina, com o robô, com o computador, com a rede, com os aplicativos. Falamos de um novo mundo em que o trabalho humano pode não ser mais necessário em grande parte das tarefas; em que o trabalhador pode laborar exclusivamente de forma remota e de qualquer parte do mundo; em que o empregador pode não ter estabelecimento físico, com as despesas e preocupações ambientais do trabalho presencial; em que a cadeia produtiva está fragmentada ou terceirizada, fragilizando a percepção de trabalho igual e a coalização sindical; em que os países estão nas mãos de megainvestidores e conglomerados multinacionais, que em nome do lucro impedem ou dificultam a implantação de políticas sociais. Por isso, o Presidente dos Estados Unidos da América, Joe Biden, disse ao Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, que é preciso empoderar os trabalhadores. Falo isso porque já se percebe que nem com a intervenção dos governos há equilíbrio de forças. É desse novo mundo que estamos falando.
Se a coalizão de trabalhadores pela prestação de serviços num mesmo ambiente não mais existe, percebe-se a razão pela qual o individualismo retorna com força nas relações de trabalho. Se o individualismo predomina, verifica-se porque, na atualidade, o sindicato não fala com o trabalhador a mesma língua e não o representa, mormente na unicidade, em que não há concorrência pela prestação de uma melhor atuação sindical.
Nesta quadra da humanidade em que estamos situados, a pergunta que precisa ser feita é se a legislação e as políticas públicas acompanharam essa evolução e como conciliar os direitos sociais com a precarização decorrente não apenas das novas formas de trabalho, mas também das novas formas de trabalhar ou de relacionamento com as empresas.
Apesar do avanço da força atribuída aos acordos e convenções coletivas, a Reforma Trabalhista de 2017 fechou os olhos para a tecnologia, ao restringir a regulamentação da automação ao teletrabalho, à CTPS digital e outras aplicações relacionadas à burocracia, como o cadastramento. No particular da proteção à automação, a Constituição Federal permanece descumprida desde 1988.
O legislador sequer regulou a proteção específica de tratamento de dados do trabalhador, que desde 2009 constava do Código do Trabalho de Portugal. Por sorte, embora de forma genérica, em 2020 a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) o fez.
A proteção à automação a que se refere a Constituição Federal requer ações que afastem a precarização. Inclui a prevenção de doenças relacionadas à aceleração da quantidade e ritmo de trabalho em razão da automação; a obrigatoriedade das média e das grande empresas manterem programas empresariais de requalificação ou recolocação de trabalhadores substituídos pelas novas tecnologias; a criação de cadastro nacional de trabalhadores substituídos ou não pelas novas tecnologias para reinclusão no mercado de trabalho; e normas específicas direcionadas à proteção e à precarização decorrente das novas tecnologias de utilização de mão de obra, entre outras inúmeras providências exógenas, ligadas à educação, ao crescimento econômico e a novas formas de aproveitamento de mão de obra.
Nesse mundo em transformação, surgiram ao longo do tempo fatores que no conjunto terminaram por colocar em xeque a jurisprudência consolidada e a tradicional concepção social e empresarial das relações de trabalho. Cito alguns:
a organização do trabalho gerenciada por meio de um modelo de negócios realizado por aplicativos ou plataformas digitais;
a tributação em índices bem menores para o trabalho do empresário individual em relação ao trabalhador subordinado;
o especial interesse, num mundo globalizado, pela otimização dos custos e resultados da intervenção legislativa, administrativa e judicial nas relações, no que se convencionou chamar de Teoria Econômica do Direito; e
a atual resistência de grande parcela de trabalhadores quanto a estar permanentemente à disposição do empregador e submisso a ordens e regramentos internos.
Quanto ao item 1, a atividade organizada por meio de aplicativos criados com o auxílio das novas tecnologias da informação e da comunicação para conectar passageiros com motoristas e consumidores com entregadores caracteriza uma nova forma de intermediação da mão de obra, em que os veículos utilizados pelos motoristas, motociclistas e ciclistas, próprios ou alugados, viabilizam o serviço. Os controladores dessas plataformas digitais cobram do consumidor o preço da intermediação e repassam ao intermediário prestador do serviço parte do valor auferido.
A hipossuficiência deste tipo de trabalhador é revelada pela impossibilidade de acesso ou controle dos meios produtivos; da possibilidade unilateral de exclusão de seu nome da plataforma; e do fato de que a clientela é formada para o organizador e não pelo ou para o motorista ou entregador, que não interfere no preço cobrado e no modo de realização do serviço. Sem falar que ainda assume todas as despesas do veículo utilizado, incluindo o seguro. É preciso pensar numa forma de proteção que caracterize e proteja as circunstâncias dessa forma de trabalho.
Quanto ao item 2, a tributação em índices bem menores para o trabalho do empresário individual é injusta em relação ao trabalhador empregado, que termina seduzido pela possibilidade de pagar menos como MEI, embora, na prática, se trate de evidente fraude à legislação trabalhista quando presente a subordinação e a pessoalidade.
Quanto ao item 3, está calcado no artigo 20 da LINDB, relacionado ao pragmatismo jurídico, que obriga os poderes e instâncias administrativas à análise prévia propiciadora de uma providência satisfatória que se revele de menor impacto social e econômico. Não obstante, demanda a percepção de que embora os custos trabalhistas devam ser compensatórios para a atividade empresarial, é preciso reconhecer que os direitos sociais são necessários à dignidade da pessoa humana e à valorização do trabalho, razão pela qual as relações de trabalho exigem um olhar diferenciado.
Quanto ao item 4, há uma parcela significativa de trabalhadores que não quer mais se obrigar à subordinação, à pessoalidade e à exclusividade. Esses trabalhadores pugnam por uma certa liberdade de atuação, que a legislação trabalhista não prevê. Mas, por outro lado, ficam sem qualquer proteção.
Se assim é, o que se deve buscar é a efetiva proteção, exógena e endógena, que se compatibilize e proteja o ser humano trabalhador, subordinado ou não, da automação, fragmentação, precarização e instabilidade, não importando a forma de trabalho. O artigo 7o da Constituição Federal não regula os direitos fundamentais dos empregados. Regula os direitos fundamentais dos trabalhadores. Cabe ao legislador infraconstitucional distribuir esses direitos de acordo com a forma (empregatícia, avulsa, temporária, eventual ou biscateira, autônoma economicamente dependente), de prestação pessoal de serviços.
A proteção concentrada num único tipo de trabalhador, com desproteção dos demais não atende ao mercado e não é socialmente justa. O mundo do trabalho não é feito apenas de empregados; é feito de uma grande massa de trabalhadores de diversas espécies que trabalham pessoalmente ou de forma empresarial, cada uma delas ensejando um tipo específico de regulação.
O que está em questão é encontrar soluções novas para um mundo novo do trabalho, porque se são essas as tecnologias que a sociedade utiliza e se são essas as formas de inserção trabalhista no mercado, a regulação deve ser compatível. É preciso que o Parlamento, os governos e o Judiciário consigam dar à sociedade, e com agilidade, as respostas de que ela necessita. E essa resposta não está, penso, na regulação pelo mercado e muito menos na determinação de utilização de Justiças diferentes para cada tipo de trabalho (público, privado, subordinado, liberal autônomo, autônomo economicamente dependente etc). A resposta está em soluções inclusivas que valorizem o trabalho prestado, dignifiquem a pessoa do trabalhador e diminuam a desigualdade social.
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