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Alternativa para conflitos empresariais

3 de agosto de 2020

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Foto: Rafael Cautella

A avassaladora crise econômica causada pelo covid-19 acarretará, em breve, uma nova onda de recuperações judiciais, supostamente a maior desde 2016, ano recorde com 1.863 pedidos. Especialistas estimam que 2020 termine com um volume que pode variar de duas mil a cinco mil ocorrências.

Até meados de junho, o alto grau de incerteza quanto às expectativas de retomada da economia tem forçado credores, especialmente os financeiros, a darem suas cotas de sacrifício, refreando execuções e prorrogando pagamentos. A grande maioria dos bancos do País abre concessões e busca acordos, sob pena de deteriorar camadas relevantes de suas carteiras de clientes e, em última análise, suas próprias operações. Devedores, por sua vez, ocupam-se apagando incêndios, priorizando o estritamente essencial à manutenção de suas atividades, sem poderem contar com o mínimo de previsibilidade para proporem um plano de pagamento de seus débitos. Mesmo porque, de pouco adiantaria fechar a contagem dos mortos antes de terminar a guerra.

Ninguém ainda consegue calcular o tamanho do buraco, pois muitas obrigações ainda serão acumuladas e, portanto, terão que ser reestruturadas. Uma recuperação judicial ajuizada prematuramente deixaria essas novas dívidas futuras de fora do procedimento. Além disso, os prazos processuais permaneceram suspensos por mais de um mês e o funcionamento de cartórios e Tribunais de Justiça segue remotamente.

Essa política excepcional de trabalho adotada pelo Judiciário na quarentena gera insegurança em devedores que temem que seus pedidos de recuperação fiquem parados, carentes de apreciação. Isso faria com que a pretensa recuperanda desse publicidade de sua decisão pela Recuperação, sem que usufruísse de seus benefícios, o que poderia tornar sua situação ainda mais crítica. Uma última razão que explica a desjudicialização nos acordos firmados até aqui é a expectativa do mercado em torno do Projeto de Lei que reforma a legislação de insolvência brasileira. Essa proposta, que traz flexibilizações importantes na Lei nº 11.101/2005, no sentido de favorecer o devedor, vigoraria até o fim do período de calamidade pública.

Logo, espera-se que essa nova onda de recuperações, que já começa a se formar a partir de julho, com o afrouxamento das medidas de distanciamento social e a reabertura da economia, Atinja seu àpice e quebre-se até o final de 2020 ou mesmo no início de 2021. Assim como a pandemia do coronavírus ameaça colapsar o sistema de saúde pública, essa enxurrada de demandas empresariais poderá fazer o mesmo com o Judiciário, o que tornaria a via judicial como solução para a recuperação de empresas ainda mais morosa, dispendiosa e ineficiente. Isso provocaria o óbito de centenas de empresas que, embora viáveis, sucumbiriam ao tentarem se valer do remédio legal da Recuperação, por falta de um atendimento judicial adequado.

Contudo, há consenso tanto entre os especialistas em reestruturação de empresas, como também entre os operadores do Direito, quanto à urgência de se desenvolver e viabilizar métodos alternativos de solução de conflitos entre devedores e credores, objetivando achatar a temerosa curva de judicialização.

Um projeto significativo com esse propósito já vem sendo implementando por quatro Tribunais de Justiça da Federação: Paraná, São Paulo, Santa Catarina e Rio de Janeiro. Trata-se do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) da Recuperação Empresarial, em etapa pré-processual. Embora apresente algumas diferenças de estado para estado, o procedimento, na essência, permite ao devedor em crise requerer audiência conciliatória para negociar com seus credores, contando com o auxílio de mediadores e conciliadores. As audiências podem ocorrer em ambiente virtual, enquanto durar o trabalho remoto, e presencial, após o término da quarentena. A medida dispensa a representação por advogados e, após a resolução do conflito, o acordo é homologado pelo juiz responsável.

Embora a concepção desses Cejuscs possua grande potencial de contribuir para a desjudicialização dos acordos, existem algumas questões de ordem técnica e operacional que precisam ser dirimidas para que atinja seu resultado útil. Atualmente, 99% das empresas brasileiras são micro e pequenas (MPEs), que respondem por 50% dos empregos e 30% do PIB, segundo o Sebrae. Essa proporção do número de MPEs não se reflete nas estatísticas da Recuperação Judicial. De acordo com dados divulgados pelo Serasa Experian, do total de pedidos de recuperação ajuizados entre 2005 e 2019, apenas 54,5% foram das micro e pequenas, 28,5% das médias e 17% das grandes. Isso se dá basicamente por duas razões: (i) a Recuperação Judicial é um processo caro e pouco vantajoso para empresas pequenas e com baixo endividamento e (ii) o procedimento especial criado para a recuperação das MPEs, apesar de mais barato que o convencional, é engessado e pouco eficiente, em muito similar à antiga concordata (Decreto Lei nº 7.661/1945).

Sendo assim, considerando a legislação em vigor, os Cejuscs empresariais representam uma boa alternativa para que MPEs renegociem suas dívidas fora da via judicial, mas com segurança jurídica. Em um cenário de endividamento baixo, com poucos credores, a operacionalização da audiência de conciliação não ofereceria grandes desafios. O próprio empreendedor poderia negociar com seus credores, quando muito auxiliado pelo seu contador, com o intuito de demonstrar as causas da crise, a impossibilidade de cumprir suas obrigações e fundamentar uma proposta de pagamento. Agora, como serão tratados aqueles credores que não comparecerem à audiência? Seria suficiente reestruturar apenas parte do endividamento? Ou ainda, os credores presentes na audiência estariam dispostos a ceder na negociação e a abrir mão de seus direitos, mesmo sabendo que os ausentes poderão não aderir ao acordo?

O não comparecimento de parte dos credores listados pelo devedor à audiência conciliatória causaria problemas para muitas MPEs, a maioria das médias e a grande maioria das grandes, comprometendo o resultado pretendido pelo sistema pré-processual – evitar a judicialização do conflito. Mas não é só. Dificilmente se chegará a um acordo em uma única audiência. Negociações costumam durar meses, em alguns casos mais de ano. Não serão algumas horas de conversa, na presença de um juiz, um mediador ou conciliador, o bastante para que se alcance um alto índice de sucesso nos acordos.

E é nesse contexto que o trabalho dos assessores jurídicos e financeiros, especializados em insolvência e gestão de crise, se mostra fundamental. É evidente que a contratação de assessores encareceria o procedimento para o devedor, mas é precisamente a atuação desses profissionais que viabilizará o funcionamento do projeto e o cumprimento do propósito de achatar a curva de judicialização. Uma boa assessoria jurídico-financeira especializada saberá utilizar, com eficiência, a ferramenta pré-processual concebida pelos tribunais.

Como recomendação de estratégia a ser adotada para a viabilização do procedimento, os assessores do devedor preparariam o pedido de designação de audiência de conciliação, com a formação de um litisconsórcio passivo, listando todos os credores detentores de créditos que precisam ser reestruturados. As maiores dívidas, via de regra, são para com bancos, detentores de garantias reais ou fiduciárias, algumas sem garantias. Fornecedores, que se recusassem a negociar de maneira bilateral, também seriam incluídos nessa lista. Por uma questão de competência, não seria possível incluir credores trabalhistas e tributários. Para estas obrigações, o empreendedor terá que buscar outros meios, como acordos com os sindicatos e programas de parcelamentos fiscais, respectivamente.

Na primeira audiência de conciliação, os assessores apresentariam ao juiz responsável, mediador designado e credores presentes tanto o nexo causal da crise enfrentada pela empresa com a pandemia do covid-19, como números que demostrassem a queda na geração de caixa e a impossibilidade de honrar suas obrigações. É responsabilidade do assessor financeiro demonstrar que a empresa está fazendo o seu dever de casa para a superação da crise, apresentar um plano de reestruturação para o caso, incluindo a forma como pretende captar dinheiro novo para financiar a retomada das atividades. Ou ainda justificar a ausência de previsibilidade, dada a atipicidade do momento.

Uma matéria negocial que deve ser tratada pelos assessores são as implicações de uma eventual Recuperação Judicial do devedor. Os credores têm de estar cientes das perdas que um processo judicial traria, como custos bem mais altos, maior morosidade, ordens de prioridade a serem respeitadas nos recebimentos, possibilidade de descontos superiores nos créditos, maior dificuldade de dinheiro novo, dentre outras. Enfim, da mesma forma que as negociações em uma Recuperação Judicial sopesam as implicações de uma eventual convolação em falência, que não raro torna as chances de recebimento muito menores, as negociações pré-prossessuais devem considerar as consequências de uma Recuperação Judicial, tanto para os credores, quanto para a empresa que tenta o seu soerguimento. Os assessores devem simular possíveis cenários tomando como premissas a concursalidade, classificação e representatividade de cada credor conforme o regramento da Lei de Recuperação. E precisam saber dirigir as negociações com discernimento, prevendo tratamentos diferentes aos desiguais.

Após responder prováveis questionamentos dos credores, os assessores pleitearão ao juízo um stay period, ou ainda yellow flag, medidas que guardam os princípios que nortearam o Projeto de Lei Emergencial nº 1.397/2020, advindos do Direito francês. O requerimento é fundamentado também nos princípios da boa-fé objetiva, contidos no Código Civil brasileiro, nos deveres de cooperar, mitigar danos, informar e renegociar. Essa suspensão das ações e execuções contra o devedor submeteria todos os credores do litisconsórcio passivo constituído e teria o objetivo de proporcionar ao devedor tempo e condições adequadas de negociação. Em tempos de pandemia, esse período ainda serviria para que o devedor tivesse alguma previsão no tocante ao cenário de retomada, e com isso pudesse elaborar projeções financeiras e apresentar um plano de pagamento aos credores.

O juiz, auxiliado pelo mediador, deverá definir, com base na exposição dos assessores, se o devedor faz jus a algum período de stay. Em caso positivo, definirá o prazo de suspensão, apoiado no caso concreto, considerando variáveis, como número de credores, complexidade das estruturas de garantias e instrumentos de dívida. Daí a necessidade do mediador ser um profissional ou empresa especializada em insolvência. Propõe-se, portanto, que administradores judiciais com competência em mediação, atuantes neste ou naquele tribunal, exerçam essa função. Muitos defendem que o mediador não deva possuir conhecimento técnico em insolvência, a fim de conferir maior imparcialidade à mediação. Ao contrário, a atuação de um mediador especializado só tem a somar, com a formulação de questões mais assertivas e auxílio aos juízes, que em sua esmagadora maioria não são especializados, no que diz respeito aos pontos técnicos dos pleitos e acordos.

Concluídas as negociações, os assessores requerem uma segunda audiência conciliatória, a fim de apresentarem os resultados e obterem a homologação do acordo. Imprescindível que o assessor financeiro demonstre, com clareza, a viabilidade de seu cumprimento. É possível supor alguns possíveis cenários de desfecho das negociações: (i) acordo com todos os credores listados e dívida reestruturada na sua totalidade, o que seria o cenário ideal; (ii) acordo com parte dos credores, sem que os demais se sujeitem a ele, mas ainda assim satisfatório à reestruturação da empresa fora da via judicial; (iii) acordo com parte dos credores, insatisfatório à recuperação da empresa, mas com quórum de recuperação extrajudicial (aprovado por três quintos de todos os créditos de cada espécie por ele abrangidos); e (iv) acordo insatisfatório e sem quórum de recuperação extrajudicial.

Nas hipóteses (i) e (ii), o conflito estaria resolvido ainda em etapa pré-processual e o objetivo de desjudicialização das demandas empresariais seria atingido pelo Cejusc pré-processual. Na hipótese (iii), o acordo poderia se converter em Recuperação Extrajudicial, submetendo a ele os créditos detidos pelos credores que não fecharam a negociação. Por fim, na hipótese (iv), o devedor teria que avaliar a possibilidade de uma Recuperação Judicial, podendo incluir as dívidas trabalhistas, ou na pior das hipóteses, encerrar suas atividades. Na opção pela Recuperação Judicial, o mediador que atuou nas audiências conciliatórias ficaria impedido de exercer a função de administrador judicial. Isso também seria válido no caso de Recuperação Extrajudicial, que embora não exija a nomeação de um administrador judicial, muitos magistrados, dependo do caso, designam um administrador para realizar a verificação dos créditos submetidos ao acordo homologado.

Os Cejuscs empresariais pré-processuais, se bem implementados pelos Tribunais, indubitavelmente podem ser determinantes no cumprimento do propósito de achatamento da curva de judicialização, para a solução de conflitos entre devedores e credores. A formação de mediadores, preferencialmente administradores judiciais, e a devida orientação aos demais atores do processo (devedores, credores, advogados, assessores financeiros) são essenciais para o êxito do procedimento. Para as médias e grandes empresas, desde que bem assessoradas, sobretudo nesta crise sem precedentes, milhares de acordos seriam concluídos nas hipóteses (i) e (ii), servindo como um funil de ingresso às vias judiciais. Pelas razões já mencionadas, o instrumento estaria acessível à uma enormidade de MPEs, as mais atingidas e prejudicadas pela pandemia, e que não encontram viabilidade de reestruturação nas esferas judiciais.

Os Cejuscs empresariais podem vir a representar um excelente veículo de aproximação entre o setor público e o privado no combate à crise econômica gerada pelo coronavírus, com probabilidade de viabilizar uma alternativa de baixo custo, célere e juridicamente segura para a solução de conflitos entre devedores e credores, capaz de se estabelecer como um mecanismo eficiente e eficaz para a preservação de empresas e, portanto, fundamental à retomada da economia brasileira no pós covid-19.