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Aplicação da Lei dos Juizados Especiais às contravenções penais praticadas no âmbito da Lei Maria da Penha

16 de fevereiro de 2017

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“Doutora, por favor, não prende ele não, eu queria só que vocês dessem um susto nele pra ele não fazer mais isso. Sem ele em casa a família vai passar necessidade, como é que eu vou fazer pra sustentar meus filhos sozinha?”

Relatos como estes são ouvidos com frequência na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Contagem/MG e demonstram que o rigor punitivo trazido pela Lei Maria da Penha precisa ser repensado. O relato como o em epígrafe, que evidencia o medo da mulher agredida de que o companheiro ou marido seja preso, desestimula as mulheres a denunciarem seus agressores e registrarem as ocorrências, o que acaba por aumentar a impunidade.

O histórico da Lei no 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, tem origem em um fato criminoso ocorrido em 29 de maio de 1983, envolvendo a Sra. Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica após ser atingida por um tiro de espingarda desferido por seu então marido, enquanto ela dormia.

Somente em setembro de 2002, transcorridos mais de 19 anos da prática do crime, o marido da Sra. Maria da Penha, após o trânsito em julgado da condenação judicial, foi preso. Fora condenado ao cumprimento de pena privativa de liberdade pelo período de 10 anos e seis meses, tendo cumprido, entretanto, apenas dois anos da pena total aplicada em regime fechado.

Em razão da morosidade do processo e de punição adequada, o fato foi levado ao conhecimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), que solicitou informações sobre o caso ao Estado Brasileiro; porém, o Governo do Brasil não prestou os esclarecimentos solicitados pela Comissão.

Diante da ausência de resposta por parte do Governo Brasileiro, a CIDH, valendo-se do artigo 39 do seu Regulamento, presumiu verdadeiros os fatos alegados pela Sra. Maria da Penha. Ato contínuo, elaborou o Relatório no 54/2001, em que realizava profunda análise do fato denunciado e fazia um diagnóstico da violência contra as mulheres em nosso país, ao tempo em que apontava diversas falhas cometidas pelo Estado brasileiro no cumprimento de Tratados Internacionais relacionados ao tema, todos eles ratificados pelo Brasil, e recomendava medidas que coibissem a violência doméstica e familiar contra as mulheres no País.

O Relatório no 54/2001 culminou na criação da Lei no 11.340/2006( Lei Maria da Penha), a qual, em seu artigo 41, estabelece que aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher não se aplica a Lei dos Juizados Especiais (Lei no 9.009/1995).

Observe-se que, apesar de o artigo 41 da Lei Maria da Penha mencionar apenas a palavra “crimes”, a jurisprudência dos Tribunais Superiores (STF e STJ) adota o entendimento de que, à luz da finalidade da norma, a vedação de aplicação da Lei dos Juizados Especiais também incide sobre as“contravenções” praticadas no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Data vênia, o art. 41 menciona apenas a palavra “crimes”, conceito que não se confunde com o de contravenções, visto que a legislação brasileira adota a classificação bipartida ou dicotômica das infrações penais, segundo a qual as condutas puníveis dividem-se em crimes e contravenções, que são as espécies do gênero infrações penais, previstas, inclusive, em estatutos legais distintos.

As contravenções, conhecidas como infrações de ínfimo potencial ofensivo, tipificam condutas de menor gravidade, apenadas com pena de multa ou de prisão simples, cumpridas sem rigor penitenciário, em regime aberto ou semiaberto, não lhes sendo aplicável o regime fechado, como ocorre com as hipóteses de crimes, estes sim punidos com pena de reclusão ou detenção.

A título de exemplo, cabe lembrar que existem situações conflituosas, que acontecem no âmbito doméstico e familiar, em que a vítima sofre puxões de cabelo, é empurrada, sacudida, mas não chega a sofrer uma agressão capaz de configurar o crime de lesão corporal; no entanto, não se pode enquadrar a conduta do agressor no tipo contravenção. Na hipótese, se admitida a contravenção, a pena prevista seria a multa ou prisão simples de quinze dias a três meses; não admitida a contravenção, a conduta configura o crime de lesão corporal, que prevê a aplicação de pena de detenção que pode durar até três anos.

Verifica-se que enquadrar como crime a conduta de ínfimo potencial ofensivo mostra-se uma medida desproporcional, não condizente com a menor gravidade da infração. Fosse o agressor responsabilizado criminalmente perante o Juizado Especial Criminal, como contraventor, seria lavrado pela Autoridade Policial um Termo Circunstanciado de Ocorrência. Após a assinatura desse Termo, se o autor do fato assumisse o compromisso de comparecer em uma audiência no Juizado, não seria preso em flagrante, nem mesmo se lhe exigiria fiança.

Nesta audiência perante o Juizado poder-se-ia admitir transação penal, a composição civil dos danos e a suspensão condicional do processo, medidas que visam solucionar o conflito de maneira menos drástica, o que é recomendável nestes casos de infrações que envolvem conflitos entre marido e mulher, mãe e filho, pai e filha, genro e sogra, etc., nos quais muitas vezes o que as partes mais querem é recuperar a família e restabelecer a paz no ambiente familiar.

Nos acordos feitos no Juizado o contraventor poderia ser condenado e obrigado a frequentar programas de recuperação de agressores ou a se submeter a tratamento médico, psicológico ou de desintoxicação contra o uso abusivo de álcool e drogas, sendo que este tipo de penalização tem um viés muito mais educativo e ressocializante que a condenação a uma pena de prisão de curta duração, cumprida em regime aberto, sobretudo nos casos em que o agressor volta a ter contato com a vítima.

Assim, conclui-se que, por mais louváveis que sejam os objetivos da Lei Maria da Penha, não se pode perder de vista que esta Lei, assim como qualquer outra, deve ser aplicada sob as luzes da prudência e com vistas a não converter a pena em algo mais gravoso à sociedade que próprio delito.

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Parte de dissertação de mestrado escrita sob a orientação de Luís Carlos Balbino Gambogi, Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.