Apologia aos embargos infringentes

31 de agosto de 2010

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“A reflexão centrada estritamente no jurídico é sempre estéril. O Direito marcha na direção em que a sociedade caminha e anda com ela e não à frente dela.”
J. J. Calmon de Passos

Renda-se justa homenagem à comissão de juristas, encarregada da elaboração do Anteprojeto, em tramite perante o Congresso nacional, que tem por objeto a reforma do Código de Processo Civil. Os ilustres processualistas forjaram proposta inovadora, criteriosa e consistente. A iniciativa merece aplausos em vários aspectos, que modernizam o processo e proporcionam a sua maior efetividade, em beneficio dos juízes, advogados e, sobretudo, dos jurisdicionados e de toda a sociedade, destinatários finais do exercício do poder jurisdicional, que a Constituição Federal atribui ao Poder Judiciário.
Algumas reflexões, entretanto, se fazem impositivas. Ninguém ousará afirmar que a redução do número de recursos, que o Código de Processo Civil de 1973 prevê, não seria medida salutar, em benefício da celeridade do processo, que a sociedade almeja e os estudiosos do direito processual esmeram-se em buscar. Como já dizia Alfredo Buzaid, autor do Código de Processo Civil em vigor, “o direito brasileiro se ressente, entre outros, de dois defeitos fundamentais: a) sob o aspecto terminológico, o emprego de uma expressão única para designar institutos diferentes; b) sob o aspecto sistemático, uma quantidade excessiva de meios de impugnar decisões.” (Anteprojeto de Código de Processo Civil, item 5 da Exposição de Motivos).
Mas a busca louvável pelo processo rápido deve ser temperada pela necessidade, ainda mais premente e de maior relevância social, de se alcançar a decisão mais adequada e mais justa à composição da lide submetida à apreciação do Estado.
Nessa perspectiva, não se justifica a extinção de recurso que proporciona o aperfeiçoamento da decisão colegiada de mérito, não unânime, proferida em segundo grau de jurisdição: os embargos infringentes.
Os embargos infringentes são recurso peculiar do direito luso-brasileiro. No direito português, os embargos surgiram como recurso oponível apenas à execução da sentença, como os atuais embargos de devedor. Posteriormente, passam a ser, também, recurso a ser oposto contra decisões judiciais ainda não transitadas em julgado. Essas duas modalidades de embargos passaram a coexistir e foram acolhidas pelo direito brasileiro.
O Código de Processo Civil de 1939 contemplava os embargos infringentes, como recurso cabível contra decisões colegiadas, proferidas por maioria de votos. Já o Anteprojeto Buzaid só previa os embargos infringentes como recurso cabível contra decisões proferidas em “causas de alçada” (art. 561). No projeto definitivo, entretanto, o recurso reapareceu, com feições semelhantes a que ostentava no código anterior.
A Lei nº 10.352, de 26.12.01, por sua vez, restringiu o cabimento dos embargos infringentes, ao atribuir nova redação, ainda em vigor, ao art. 530 do Código de Processo Civil. A partir de sua vigência, o cabimento dos embargos infringentes ficou restrito à impugnação ao acórdão não unânime, que houver reformado, em grau de apelação, a sentença de mérito, ou houver julgado procedente ação rescisória. E segundo o dispositivo legal, “se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto da divergência.”
Restringiu-se, pois, em deferência à ânsia de reduzir o número de recursos e proporcionar maior celeridade à conclusão do processo, o âmbito da impugnação recursal, a ser realizada através dos embargos infringentes. Com essas novas feições, os embargos infringentes, de cabimento restrito e excepcional, têm prestado relevante serviço. A decisão de segundo grau de jurisdição, não unânime, que reforma sentença de mérito, é submetida a novo julgamento, no qual os fundamentos que ensejaram o voto vencido são reexaminados.
Justifica-se o recurso, pela relevância do pronunciamento que o legislador admitiu ser, novamente, enfrentado através dele. Prestigia-se, na atualidade a decisão monocrática do juiz, porque é perante ele que as provas são produzidas e é ele que mantém maior proximidade com aspectos relevantes da lide a ser julgada. Ao reformar a sentença de mérito do juiz, o tribunal, que decidiu em contexto de divergência, certamente proferirá uma decisão mais amadurecida e estudada, se for instado, através dos embargos infringentes, a enfrentar os argumentos invocados no voto vencido. Perde-se tempo, mas se ganha qualidade e aprofundamento na apreciação da matéria litigiosa. E tudo isso em proveito do que é mais caro no processo judicial: a salvaguarda dos direitos invocados pelos jurisdicionados.
O mesmo fenômeno ocorre no julgamento de ações rescisórias. A procedência de ação rescisória, não é ocioso salientar, traz consequências relevantes à esfera jurídica. Através dela, como é de conhecimento geral, desconstitui-se decisão definitiva, transitada em julgado. Se a decisão nela proferida não foi unânime, é profícuo que, através de embargos infringentes, novo julgamento, no âmbito restrito da divergência, seja proferido.
Em todos os tribunais do País, não se vislumbra, nas estatísticas forenses, volume expressivo de julgamentos de embargos infringentes. Ao contrário, de cabimento restrito, essa modalidade recursal é infrequente e a ela não pode ser atribuído o notório acúmulo de serviços, que impacta os órgãos de segundo grau. Não são eles, em outras palavras, os vilões da morosidade dos processos judiciais.
E mais: os embargos infringentes prestam relevante contribuição para que a matéria em litígio seja enfrentada, de forma mais profunda pelo tribunal de segundo grau, o que evita a imediata e prematura interposição de eventuais recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça e recurso extraordinário ao Supremo tribunal Federal. Melhor julgada, a causa certamente estará em mais propícias condições de ser reapreciada, no seu limitado âmbito recursal, pelos tribunais superiores.
A manutenção, no ordenamento, dos embargos infringentes também prestigia o princípio da segurança jurídica, de cariz constitucional. A mais ampla apreciação da lide, sem dúvida, contribui para o aperfeiçoamento do julgado e confere maior solidez à decisão de segundo grau de jurisdição, última instância para a qual as matérias litigiosas são integralmente devolvidas.
O processo não é fim em si mesmo. Visa a alcançar um objetivo, de grande relevância social, que é, primordialmente, o de proporcionar a solução mais adequada e justa ao conflito de interesses que através dele será dirimido. E a sua celeridade, embora seja de grande relevância, não pode se sobrepor ao seu mais grandioso propósito, não pode justificar a sumarização de ritos, em desproveito do direito fundamental do jurisdicionado de ver o seu litígio bem julgado. E não se poderá argumentar que, reapreciada a matéria controvertida, ainda que no âmbito restrito do voto vencido, o tema em litígio será melhor enfrentado, do que o foi pela decisão não unânime.
Muitos estudiosos do processo civil já chegaram a clamar pela extinção dos embargos infringentes. Celso Agricola Barbi, em seu “Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. V, 7. ed., Editora Forense, chega a reconhecer que, nas três primeiras edições de seu clássico, pronunciou-se contra a sobrevivência dos embargos infringentes. Mas o consagrado processualista, norteado pelo incomum bom senso e pela vasta experiência judicante, atenuou a sua posição, nos seguintes termos: “De lege ferenda, manteríamos o recurso, mas lhe restringiríamos o cabimento, excluindo-o em alguns casos, como o de divergência no julgamento de preliminar, ou em apelação interposta contra sentença meramente terminativa, e também o de haver o tribunal confirmado (embora por maioria de votos) a sentença apelada (…)”. E as prudentes ponderações do mestre já foram acatadas pelo legislador, na redação que a Lei nº 10.352, de 26.12.01, atribuiu ao art. 530 do Código de Processo Civil.
O recurso de embargos de infringentes é um valioso instrumento à adequada prestação jurisdicional. E as digressões teóricas, que recomendam a sua exclusão do ordenamento, devem se curvar à realidade da vida. O processo ideal deve se curvar ao processo possível, ao processo razoável, que atenda às necessidades e expectativas de toda a sociedade.
Nesse contexto, embora louve o minucioso trabalho realizado pela comissão encarregada da reforma do Código de Processo Civil, que merece admiração e entusiásticos elogios, confio em que o Congresso Nacional não suprimirá da legislação processual os embargos infringentes, relevante instrumento, que auxilia os tribunais na sua mais elevada função, que é a de distribuir a tão desejada justiça.