Aposentadoria do Ministro Francisco Peçanha Martins

28 de fevereiro de 2008

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Pediram-me palavras; não me escusei, jamais me escusaria tratando-se de Peçanha Martins: que colega de trabalho diário entre livros e processos (fadiga de afazeres sob o sol)! Que amigo de todas as horas! Amigo não é coisa que se despreze, escreveu Machado, acolhe-se como presente dos deuses.
Tempo, ó! tempo, aquele que foi, aquele que é: o tempo de antes, o tempo de após. Foi o Federal de Recursos, é o Superior Tribunal, sem que este tenha sucedido aquele, mas daquele recebeu a inicial composição, e os aposentados do Federal tornaram-se aposentados do Superior. Houve e há, entre os dois Tribunais, união: “Geração-que-vai e geração-que-vem / e a terra durando para sempre”. De eternidade à eternidade, esse tem sido o destino de todos os homens, foi sempre assim, e foi assim que, um dia – vão-se alguns anos – o grande José Cândido (também baiano, ainda que por adoção), falando sobre Peçanha, o velho, escreveu:

“O Tribunal Federal de Recursos passou a ser motivo da sua própria existência. Enamorou-se perdidamente pela nova Capital. Quem o ouvia nas suas repetidas manifestações de estima por Brasília, e até em seus protestos contra a sua volta à terra natal, haveria de pensar que ele perdera o amor pelas coisas da Bahia. Não chegava a tanto…
(…)
Ruy Barbosa foi a outra grande fonte de inspiração de liberdade.
(…)
É, assim, nosso homenageado: um homem em luta permanente pela reafirmação de suas origens de democrata e liberal.”

Creio, e foi nisso que me pus a pensar quando escrevia estas palavras, que muito se regozijaria o Peçanha pai, que tanta história fez, em assistir a este momento, a meu ver, de missão cumprida. Do pai havendo herdado o nome, o caráter e os prodígios, o filho seguiria a mesma trajetória. Fiquei até a imaginar se essa paixão pela Justiça e pelo Direito, também pelo excelso Ruy e por aquela plantinha tenra que se denomina Democracia, estaria no sangue ou, usando eu palavras cheias de religiosidade, teria sido transferida como se sacerdócio fosse. Seja lá o que for, um coisa é certa: filho de pai que foi poderoso juiz, não poderia ser diferente − tal pai, tal filho.
Senhoras e Senhores, hoje quem nos deixa, deixando amanhã o Superior Tribunal, é o Peçanha filho, e, nesta despedida, não é intento meu referir as obras pretéritas do amigo nem de sua carreira as etapas. Haverá oportunidade para isso brevemente. Quero apenas expressar − o que entendo seja por unanimidade (vejam o semblante dos colegas e dos amigos) − o reconhecimento de todos nós pelo trabalho sério e profícuo que, ao longo dos últimos dezessete anos, desenvolveu no Superior Tribunal – valioso serviço prestado à Justiça e em defesa do jurisdicionado, a quem gostaria de dar voz em meu texto.
Que diria o jurisdicionado? Não foi Peçanha um eterno inconformado com as alterações do Código de Processo Civil, entre elas, a que transformou o ato judicial, aquele coletivo, em ato unipessoal? Reforma inconstitucional, no seu dizer, da qual resultou mudança − tal sempre foi a sua convicção − que, ao invés de beneficiar os litigantes, poderia prejudicar-lhes o direito. Sua, também, a preocupação com o crime de hermenêutica − seria o juiz responsável penalmente, à conta das rebeldias da sua consciência? Questões tais e tantas e tantas outras sempre lhe instigaram o zelo pela proteção das liberdades individuais. Todos bem conhecemos a seriedade com que, de maneira intangível, Peçanha, dia após dia, interpretou a lei e, aqui no Superior Tribunal, aplicou o Direito.
Agora vai a outras jornadas, e a outros afazeres, e a outros combates; ficamos com sua judicatura, com suas idéias e reflexões, tudo de um magistrado – perdoem-me o modo de dizer – fora de série, de um juiz perfeito,  por que não dizer mais que perfeito? Pensando fico eu com meus botões e logo me surgem algumas perguntas: se pudesse voltar aos tempos de infância − àqueles em que brincava nas ruas, de sonhos, de descobertas − e viver outra vez os anos de sua vida até aqui, que escolhas Peçanha faria? Tentaria ser menos perfeito? Trataria de cometer erros que nele desconhecemos? Será que levaria menos coisas a sério? Viajaria mais? Tomaria mais sorvete? Começaria a andar descalço no começo da primavera e assim continuaria até o fim do outono?
E, aí, Peçanha, o que você faria? Nem precisa responder: conhecendo bem sua coerência interior, seu senso de justiça e expressivo amor pelo trabalho, sei que algumas coisas não seriam diferentes, sobretudo porque o que sempre o empolgou foi a tranqüilidade de consciência. A mim me parece, pois, que distância alguma haveria entre o Peçanha que é e aquele que poderia ser. Sei que a vida vai, ela não volta, porque vivemos para adiante… E nossa história vai tomando contornos outros em papéis novos, mas a verdade é uma só: nunca deixaremos de ser quem realmente fomos e somos, ainda que tendo mais tempo para sorvetes, e para aquele peixe naquele restaurante simples à beira-mar, e caminhadas, e primaveras, e outonos… Porque, se não sabem, disso também é feita a vida!
Seja, como sempre o foi, feliz, muito feliz, Peçanha!