As dores do crescimento da arbitragem

8 de setembro de 2019

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Congresso Internacional reúne principais atores da arbitragem para debater como enfrentar problemas que surgem com a expansão da prática no Brasil

O IV Congresso Internacional de Arbitragem do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA), realizado em agosto no icônico Museu do Amanhã, no Centro do Rio de Janeiro, apresentou amplo panorama dos principais obstáculos e possibilidades para o crescimento da prática arbitral no País. Com o tema “Diálogo entre os vários stakeholders. What is not in the rules?”, o evento proporcionou saudável discussão de relacionamento entre advogados, árbitros, administradores de câmaras arbitrais, acadêmicos e magistrados.

Todos parecem concordar que a arbitragem cresce com a vocação de se tornar uma das principais formas de resolução extrajudicial de conflitos no Brasil, mas os arbitralistas também dizem sentir as dores desse crescimento. Alguns apontam que, sem a devida qualificação, a arbitragem poderá deixar de cumprir suas promessas, sobretudo a celeridade dos processos e a profundidade técnica das decisões. Pois cresce o número de reclamações por morosidade e falta de fundamentação das sentenças, acompanhadas de alarmante aumento do número de ações anulatórias de sentenças arbitrais nos tribunais.

“Os árbitros no Brasil têm um número de causas muito maior do que no exterior. É nosso estilo, nosso modelo, aqui é diferente. A pergunta é até quando isso vai? (…) Temos visto decisões não fundamentadas com muita frequência, muito por conta desse excesso de processos que todos vivemos”, alertou, ainda no painel de abertura, o arbitralista José Roberto de Castro Neves, membro do conselho consultivo do CBMA.

Para Castro Neves, a superação dos obstáculos passa pela abertura do mercado e por sua qualificação: “É um convite que temos que fazer a nós mesmos. Vamos estudar Direito, vamos estudar a causa que é colocada para nossa atuação enquanto advogados, árbitros e câmaras, para prestar o melhor serviço possível. No Brasil, a arbitragem está vocacionada para ser a grande forma de solução de conflitos. O que vai direcionar isso é a atuação de quem está nessa sala”.

Pesquisa internacional sobre arbitragem

No mesmo painel, o britânico Alex Wilbraham, que trabalha com procedimentos envolvendo partes brasileiras desde 1996, tomou por base dados de 2018 da pesquisa internacional sobre arbitragem da Queen Mary Universidade de Londres para falar sobre as expectativas dos stakeholders estrangeiros em relação ao Brasil. As preferências destes usuários para a escolha de países enquanto sedes arbitrais, segundo ele, continuam a ser definidas por percepções sobre a neutralidade e imparcialidade do sistema jurídico dos países, a qualidade de suas leis arbitrais e o “track record” de suas execuções de cláusulas compromissórias e laudos arbitrais.

Neste sentido, após o reconhecimento da constitucionalidade da Lei de Arbitragem pelo Supremo Tribunal Federal, em 2001, e a ratificação do Brasil à Convenção de Nova Iorque, em 2002, haveria confiança crescente no País enquanto sede arbitral. Se antes o conselho que dava aos clientes era optar por Londres ou Paris na redação da cláusula compromissória, Wilbraham disse que, com o passar do tempo, os escritórios e seus clientes ficaram mais confortáveis com a perspectiva do Rio, São Paulo ou qualquer outra sede de arbitragem em cidades do Brasil. “Por várias razões, tanto pela confiança na Lei de Arbitragem, que vem se mostrando firme e forte, quanto pela atuação do próprio Judiciário brasileiro, que demonstrou não ser contrário à arbitragem”, disse.

Para as “dores do crescimento” diagnosticadas na arbitragem brasileira, Wilbraham disse que os remédios à disposição são as diretrizes internacionais, como as Regras de Praga, criadas no ano passado para aumentar a eficiência da arbitragem internacional. Contra as partes e patronos que tentam protelar os procedimentos, ele defendeu a aplicação de sanções financeiras. Os obstáculos serão superados com o tempo, para o conterrâneo de Shakespeare, que citou Lady Macbeth: “Já estamos até o pescoço com sangue, voltar atrás será pior do que avançar e a arbitragem tem que avançar. O Brasil tem conquistado muito, o caminho é para frente, os problemas são todos superáveis e serão superados”.

Critérios e custos – O painel seguinte apresentou visões das empresas sobre os critérios para a escolha de câmaras, advogados e árbitros. Em geral, os representantes das empresas reforçaram os pontos positivos da arbitragem. Contudo, os custos ainda são apontados como muito altos na comparação com o processo judicial. Nesse ponto, o financiador de arbitragens Leonardo Viveiros de Castro – coordenador científico do Congresso ao lado do presidente do CBMA, Gustavo Schmidt, e do arbitralista alemão Peter Sester – argumentou que no Poder Judiciário os custos são menores justamente porque são subsidiados pelo Estado.

“Gosto do mínimo custo com o máximo retorno, mas sei que esses investimentos são muitas vezes necessários. A estrutura da câmara de arbitragem é diferente do cartório de vara cível. Precisamos de mais segurança no tratamento das informações, que são confidenciais, de árbitros e de peritos cada vez mais capacitados. (…) A arbitragem é um método mais sofisticado para causas mais sofisticadas. Esse custo se traduz em um investimento necessário para que sua disputa seja melhor julgada”, comentou Viveiros de Castro.

Choque cultural – Outro painel discutiu nuances de cultura e estilo que distinguem várias sedes internacionais da arbitragem como, por exemplo, no exame de questões técnicas pelos árbitros. O árbitro britânico e professor na Universidade de Cambridge, Duncan Speller, levantou a questão do iura novit curiae, invocada com mais frequência nos países da common law, que é a necessidade do árbitro alertar às partes sobre qual será a legislação aplicada para a resolução de determinado conflito, de forma a evitar surpresas e garantir o contraditório.  

No mesmo sentido, o árbitro da Câmara de Comércio Internacional e professor da Universidade de St. Gallen, Marco Stacher, defendeu a abordagem dos árbitros suíços, que geralmente proferem opiniões preliminares durante o procedimento. O que, segundo ele, tem por objetivo aumentar a previsibilidade, permitir o ajuste das estratégias das partes e, em última instância, facilitar a construção de acordos, o que, nesses casos, aproxima a arbitragem da mediação.

Rever conceitos – Vários outros painéis trataram de temas específicos da arbitragem, como, por exemplo, as modalidades de perícia, os critérios para admissibilidade de provas, as situações em que a arbitragem se depara com sanções econômicas entre países, ou os casos de arbitragem coletivas contra companhias abertas. Um dos debates que despertou mais interesse foi sobre o uso de novas tecnologias na arbitragem. Apesar do otimismo com o aumento da celeridade e eficiência dos procedimentos, os participantes falaram sobre as preocupações com a “garantia do devido processo legal” e também com o futuro da atividade profissional de advogados e árbitros.

“Em Hamburgo, advogados da Siemens mostraram o sistema que redige as cláusulas compromissórias em contratos envolvendo a companhia. (…) O que torna a atividade do advogado extremamente obsoleta. Logo mais, nas faculdades, vamos começar a formar bacharéis não só em Direito, mas em Tecnologia da Informação. Esse sujeito é quem vai alimentar o programa, quem vai responder as perguntas que o programa vai formular, mas não mais vai colocar a mão na massa”, observou em sua participação o professor de Direito Processual Carlos Alberto Carmona, um dos árbitros mais experientes do País.

Após citar vários outros programas e sistemas que hoje já substituem advogados, peritos e pareceristas, Carmona disse acreditar que, muito em breve, será inevitável que se comece a utilizar inteligência artificial nos julgamentos arbitrais. “Não estou falando de ficção científica, mas de coisas que já acontecem. (…) Na hora em que houver um órgão arbitral de vanguarda, ele vai criar esse mecanismo e, portanto, vamos ter isso mais cedo ou mais tarde”.

Arbitragem e Judiciário – Outro destaque do Congresso foi participação do Ministro do Superior Tribunal de Justiça Luis Felipe Salomão, que falou sobre a arbitragem na jurisprudência da Corte. Membro da Seção de Direito Privado e também do Órgão Especial, que julga em grau de recurso as matérias relacionadas à arbitragem internacional, Salomão avaliou que “os juízes enxergam as soluções extrajudiciais não como um crescimento à sombra do insucesso ou não da jurisdição, mas, efetivamente, como um parceiro no avanço do processo civilizatório”.

Ele contou que tem conversado bastante com os colegas sobre o que os constitucionalistas chamam de crescente integração transnacional. “Esse Congresso é uma prova disso quando traz sistemas jurídicos tão diferentes para conversar em uma linguagem só, que é a linguagem da arbitragem. (…) São demandas que desafiam ordens jurídicas e políticas para além do Estado. A fórmula de composição estatal dos conflitos não sofre só pela sobrecarga de trabalho, sofre também por essa nova ordem mundial, formada a partir dos atores privados com suas práticas contratuais. Cada vez mais se fala em governança no lugar de governo, e em práticas, ordens espontâneas de corporações e sociedades que resolvem seus conflitos”, pontuou Salomão, que usou como exemplos as criptomoedas, os sistemas de compliance das empresas, as câmaras de justiça desportiva, e as câmaras de arbitragem e mediação.

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À procura do árbitro perfeito

Os trabalhos do Congresso começaram com um coquetel promovido na sede do CBMA pelo Comitê de Jovens Arbitralistas (CJA) e pelo Young Arbitrators Forum (YAF). Para além do networking, houve debate prévio de vários temas com representantes de importantes câmaras internacionais de arbitragem. Destaque para a participação da árbitra portuguesa Ana Serra e Moura, representante da Câmara de Comércio Internacional (CCI), que falou sobre diversos aspectos do procedimento arbitral para uma plateia de jovens advogados e aspirantes a árbitro. Dentre outros assuntos, ela comentou os critérios para escolha do árbitro mais adequado a cada procedimento, o que passa pela afinidade com a matéria, pela disponibilidade e pelo histórico das arbitragens já conduzidas pelo profissional. Outras questões consideradas pelos centros para indicar árbitros quando as partes não chegam ao consenso, segundo Moura, são a ausência de conflitos de interesses e a tentativa de proporcionar diversidade de gênero, raça, grau de experiência e origem regional/nacional.

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A arbitragem no Brics

No primeiro dia, o Congresso contou com a inesperada presença do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Convidado a fazer rápida saudação, após ser ovacionado pelos presentes, ele aproveitou para anunciar que a OAB vai receber em outubro, no Rio de Janeiro, a VI Conferência do Fórum Legal do Brics, e que o presidente do CBMA, Gustavo Schmidt, foi nomeado presidente da comissão especial que vai implantar a câmara de arbitragem dos Brics no Brasil (Saiba mais na entrevista). “Lembro que há o Banco de Desenvolvimento do Brics, com US$ 52 bilhões de dólares, US$ 652 milhões já carimbados para o Brasil investir em desenvolvimento. É muito importante que a comunidade da arbitragem brasileira possa participar desse movimento, porque essa é a intenção das associações de advogados dos demais países do bloco”, informou o bâtonnier. 

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O Brasil é um dos países mais favoráveis à arbitragem
Entrevista com o presidente do CBMA, Gustavo Schmidt 

Qual é sua avaliação sobre o Congresso? Cumpriu o objetivo de realizar uma grande discussão de relacionamento?

Foi o maior que já fizemos, o mais impressionante em vários aspectos. Não só pela qualidade dos palestrantes, mas também dos temas que foram debatidos. Procuramos manter em relação aos eventos anteriores o enfoque prático. Isso é muito perceptível nos eventos do CBMA, temos a preocupação de fazer com que os diversos atores da arbitragem consigam sair do Congresso com um aprendizado prático relevante para o futuro. 

A arbitragem continua em crescimento acelerado, o que também traz problemas. O que as câmaras estão fazendo para enfrentá-los?

Já nos primeiros painéis surgiu essa preocupação importante para as câmaras de arbitragem e os diversos atores do segmento, que é a demora nos procedimentos arbitrais. Historicamente, essa demora não tinha sido muito ventilada, possivelmente porque não tínhamos um volume significativo de arbitragens no Brasil. O que tínhamos em termo de comparação era o Judiciário, que é infinitamente mais lento. (…) Os árbitros mais respeitados do Brasil não têm mais de 40 arbitragens para conduzir durante o ano inteiro, já os juízes recebem dois mil novos processos por mês. Evidentemente, os árbitros têm condições de oferecer respostas mais rápidas e mais qualificadas, porque têm mais tempo para se dedicar aos casos. No evento surgiu a reclamação, que me chamou muito a atenção, de que alguns árbitros estão com processos demais.

São dores do crescimento, que vão ajudar as câmaras, árbitros e advogados a repensar suas atuações para melhorar daqui para frente?

É um desafio. Maior câmara de arbitragem do mundo, a CCI tem tomado algumas medidas nesse sentido. Eles têm fiscalizado o número de arbitragens de cada árbitro e têm questionado ao árbitro se ele tem condições efetivas de responder com a celeridade necessária. Surge ali também a novidade de penalizar o árbitro pela demora, os honorários dele são reduzidos proporcionalmente ao tempo que demora para entregar a sentença arbitral a partir de determinado momento. Ele mesmo, no compromisso que assina, reconhece que se não entregar a sentença no prazo estipulado, terá uma redução proporcional de acordo com o decurso do tempo. É uma forma de, primeiro, gerenciar e dizer para os árbitros ‹se você está com muitas causas, não pegue mais nesse momento›; segundo, ‹se você ainda assim pegar essa causa, saiba que seus honorários serão reduzidos se você demorar para entregar a sentença arbitral›. São iniciativas que estão sendo ventiladas internacionalmente, que um Congresso como esse permite que possam ser debatidas pela comunidade arbitral nacional e incorporadas em nossas câmaras de arbitragem. 

O senhor foi nomeado presidente da comissão especial da OAB que vai implantar a câmara de arbitragem dos Brics no Brasil. Quais são os planos?

O Brics Legal Forum é um órgão oficial que tomou a decisão de que, para melhorar o ambiente de negócios entre os países do bloco e dar segurança jurídica aos investimentos que serão feitos de parte a parte, é importante uniformizar entendimentos e princípios da arbitragem. Isso é para assegurar que um chinês tenha conforto em uma arbitragem conduzida no Brasil, ou que um brasileiro atue na Rússia com a tranquilidade necessária. Esse órgão, composto pelos presidentes das associações de advogados dos países membros, decidiu que o Brasil será o primeiro a criar uma dessas câmaras de arbitragem. No meu diálogo com o Felipe Santa Cruz decidimos que, apesar de se chamar assim, não vai ser propriamente uma câmara de arbitragem. Será um órgão regulador, para uniformizar os entendimentos dos países dos Brics e assegurar que as grandes câmaras brasileiras atendam às demandas de arbitragem da África do Sul, da Rússia, da Índia e da China. A tendência é termos um crescimento significativo de arbitragens entre empresas brasileiras e chinesas. Mais do que isso, a tendência é de que todos os contratos de investimentos do New Development Bank, o novo banco de desenvolvimento dos Brics, tenham cláusulas compromissórias.  O Brasil precisa estar preparado para receber esses conflitos. Não adianta querermos impor nossa cultura de arbitragem, ignorando as desses diversos países, porque eles não vão aceitar o Brasil como fórum de arbitragem. É fundamental que consigamos harmonizar nossas culturas arbitrais.

Há data prevista para o início da obrigatoriedade dessa cláusula compromissória?

Vou falar em primeira mão para a revista Justiça & Cidadania. Minha nomeação como presidente aconteceu no último mês. O que fiz nas últimas semanas foi conversar com os principais atores de arbitragem no Brasil para compor essa comissão especial do Conselho Federal da OAB. Já temos a Selma Lemes e o Carlos Alberto Carmona (coautores do anteprojeto da Lei da Arbitragem), o José Emílio Pinto, a presidente da câmara de arbitragem da Câmara de Comércio Brasil Canadá (CAM-CCBC), Eleonora Coelho, e o presidente da Câmara de Arbitragem Empresarial Brasil (Camarb), Augusto Tolentino. Todos aceitaram integrar a comissão. Temos um processo de construção de regulamento que vai servir de parâmetro para todas as câmaras, exatamente com objetivo de contemplar princípios fundamentais para que todos os países se sintam confortáveis em litigar na arbitragem do Brasil.

Participantes estrangeiros falaram de “crescente confiança” no Brasil enquanto sede de arbitragem. O que falta para essa confiança crescer mais?  

Falta eles terem conhecimento da realidade arbitral brasileira. O Brasil é um dos países mais favoráveis do mundo à arbitragem. O STJ tem dado sucessivas decisões reafirmando a importância da arbitragem, a validade do procedimento arbitral, e reconhecendo um princípio fundamental para a arbitragem que é o da competência-competência, um princípio que diz que quem deve decidir sobre a sua competência é o próprio árbitro da causa. Ele é que tem a primeira palavra quanto a sua competência e não o Judiciário. Lá atrás, quando a arbitragem começou a ganhar força no Brasil, depois de 1996, começou a acontecer de partes insatisfeitas ingressarem no Judiciário com ações anulatórias de sentença arbitral ou para interromper a arbitragem no início. O STJ veio dizendo no curso do tempo que a arbitragem não pode ser interrompida logo no início porque quem deve definir sua própria competência é o árbitro, e no final é muito, mas muito difícil mesmo, que os tribunais anulem uma sentença arbitral. Isso é fruto do trabalho do STJ e se revela também na presença do Ministro Luis Felipe Salomão, que ofereceu uma das palestras magnas do evento. Ele foi o presidente da comissão do Senado Federal que elaborou a reforma da Lei de Arbitragem, foi o coordenador da Jornada Extrajudicial de Solução de Litígios, realizada pelo Conselho da Justiça Federal no STJ, e é o grande fiador da arbitragem no Brasil. A gente costuma falar mal do país, há aquele nosso complexo de vira-lata, mas no campo da arbitragem estamos muito à frente da grande maioria dos países desenvolvidos.