“As mulheres falam, os homens escutam”, por Mary del Priore

10 de maio de 2020

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Enquanto você estiver lendo esse texto, uma mulher terá sido assassinada a cada duas horas. Hoje mesmo, quantas terão sido seguidas, interpeladas verbalmente, insultadas, agredidas… Quantas no seu círculo de amigas ou parentes? Em toda a parte, mulheres vivem em alerta. Prestam atenção ao que vestir, como falar, como responder, sorrir ou andar, que atitude tomar, que mensagem enviar. Acelerar o passo, fingir que fala ao celular, não fazer contato com os olhos, gritar, não gritar, são preocupações que revelam o temor de ver a vida mudar em uma rua, dentro de um carro, em um escritório vazio ou em um elevador.

Mulheres gastam uma energia infinda para se autodefender. Usam técnicas marciais para as quais não há medalha ou troféu. É exatamente isso que faz a vida seguir como se nada fossem os elogios “pesados”, a mão que bolina no transporte público, o chefe agressivo ou a discussão com o namorado. Reclamações? Puritanismo ou “coitadismo”, dizem. Afinal, tais fatos só concernem “as vítimas da violência”: uma classe envergonhada, marcada com o selo da baixa estima, da impotência e sujeita a uma série de provas policiais e jurídicas para passar de vítimas à sobreviventes.

O gesto é velho como o mundo: a mão se ergue e, com força, o punho se abate onde alcançar. Nas costas, no ventre, no rosto. O punho é dele. O corpo é dela. As modalidades de suplício se expressam pela satisfação de um desejo irrepreensível do lado dele. E dos limites de tolerância à dor, do lado dela. Ele representa o “sexo forte” e ela o “sexo frágil”. A guerra entre os sexos tem história, assim como a evolução dos códigos sociais que tentam coibi-la ou os signos de atenção que lhe são dados. Em sua representação, podemos ler a configuração das relações sociais, os papéis dos diferentes sexos, a acumulação das frustrações, a natureza dos medos. A banalização de tal violência é uma das características estruturais de nossa sociedade.

Há quem a explique pelo patriarcalismo e machismo de uma sociedade que vê nas mulheres algo que pertence ao pai, ao marido, ao patrão ou ao dono. Ela é um “bem pessoal”. Outros debitam às mulheres um tipo de comportamento que incita à violência: “mulher gosta de apanhar”, ironizava o dramaturgo Nélson Rodrigues. Alcoolismo, dependência química, desemprego, miséria social são fatores invocados quando se deseja interpretar o abuso da força, a intimidação, a brutalidade sobre o sexo feminino. Segundo historiadores, no passado, a escravidão que fazia de qualquer mulher, mas, sobretudo das negras e mulatas, escravas sexuais e domésticas, teria aprofundado o fosso nas relações entre homens e mulheres. Misoginia e racismo foram os temperos das relações pluriétnicas, diz o historiador Ronaldo Vainfas.

Vivemos uma época de transição. Se desejamos abandonar o patriarcado, sentimos as consequências de nossos atos. Enquanto nossa sociedade tenta promover a igualdade entre homens e mulheres, graças à evolução do Direito e o surgimento de medidas antidiscriminatórias, prosseguem as desigualdades na esfera pública e privada. A “igualdade desigual”, esse hiato entre discurso e prática social e cultural, acaba por alimentar as tensões em que estamos mergulhadas. Mas, compreender as raízes do problema é fundamental para resolvê-lo. Para isso, é essencial recuperar através da História a voz e as marcas de testemunhas. Testemunhas que nos permitam ouvir e enxergar o passado no presente.

Desde o Século XVIII, o patriarcado moderno substituiu a justificativa religiosa tradicional da subordinação das mulheres por argumentos biológicos e médicos: a diferença sexual seria a justificativa “natural” de uma complementaridade e de uma assimetria entre o “homem” ativo e a mulher, “passiva”. Estas mesmas causas desculpam os abusos sexuais masculinos e a homofobia, pois a homossexualidade é considerada “contra a natureza”. Essa naturalização dos papéis de gênero terá suas primeiras críticas nas pioneiras feministas que vão opor ao patriarcado moderno o princípio universal da igualdade. Esta contradição entre patriarcado e modernidade irá conduzir ao questionamento e ao enfraquecimento do patriarcado. Apesar da permanência de desigualdades, violência e discriminação, o princípio de igualdade será, sem dúvida, um ponto de apoio para ações transformadoras.

Há, aí, uma palavra que merece ser mais bem discutida: patriarcado. No Ocidente cristão, as relações entre homens e mulheres foram, durante séculos, geridas pela instituição do matrimônio. Isso quer dizer que elas foram administradas não pela norma heterossexual, mas por uma transação entre homens. Pais davam suas filhas em casamento em troca de compensações financeiras ou alianças políticas. Ao se submeter ao ato sexual, marido e mulher sabiam que estavam se curvando às mesmas obrigações, mas não estavam vivendo a mesma experiência. Ela submissa ao poder dele e ele exercendo, desta maneira, seu poder sobre ela. Com a emergência de movimentos feministas, assistiu-se ao começo do fim dessa ordem patriarcal, assim como da moral que a acompanhava.

Em uma visão histórica é importante afirmar que tantas brasileiras souberam, ao longo dos séculos, resistir. Resistir, significando manter acesa a chama frágil e efêmera da existência: aguentar, sobreviver. Resistir, cuja etimologia, stare, significa: ficar de pé. Resistimos como respiramos, por reflexo. Resistimos para defender nossas vidas, mas também nossos valores, sem os quais elas não têm sentido. O bom é que, ao longo dos tempos, a matéria de que somos feitas, ou seja, nossa cultura mestiça, resiste cada vez mais e melhor às pressões. Longe de esconder os conflitos, os levamos para a praça pública a fim de encontrar soluções. Soluções verdadeiras para a violência e para a desigualdade. Soluções em que o grito seja substituído pelo diálogo e a concorrência pela colaboração.

Mulheres de todas as condições, idades e cores sempre souberam descortinar brechas, reinventar-se, apostar na criatividade para seguir em frente. Elas enfrentaram o patriarcalismo, acharam degraus para subir na vida, fizeram sua história. Tantas vezes apresentadas como vítimas de eventos dramáticos ou de um destino que as mergulhou no sofrimento, ao contrário, elas souberam vencer as armadilhas do acaso. Longe de se deixar levar sem saber aonde, nossas irmãs do passado foram protagonistas de seu tempo. Tempos em que dificuldades e violência estiveram presentes, mas não só. É preciso mostrar outros momentos. Momentos em que ouvimos suas vozes dizerem alto e claro: eu existo, eu faço, eu quero. Vozes que nos contam de sua presença enfrentando a complexidade da vida, mas também encarando a sua simplicidade, que pode ser igualmente complexa.

Porque a História nos ajuda a compreender que, contra a engrenagem da repetição, contra o retorno da adversidade, há o desejo de autonomia e igualdade. Há a vontade de rejeitar a vitimização generalizada. Há o desejo de dizer sim, contra um mundo que diz não. Assistimos a mudança de uma ordem tão velha quanto o mundo: a dos sexos. A História está mudando sob nossos olhos. E na de hoje, as mulheres falam, os homens escutam.