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Aspectos controvertidos dos seguros agrícolas

12 de julho de 2023

Da Redação

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A partir da esquerda, a professora Ana Frazão, o Presidente da Comissão do Direito Agrário  e do Agronegócio da OAB, Antonio Augusto Coelho, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, o Editor-Executivo da Revista JC, Tiago Santos Salles e o professor Thiago Junqueira

Estudos indicam que as áreas rurais que possuem seguro agrícola têm maior rentabilidade, acesso ao crédito e estímulo ao uso de novas tecnologias, além de contribuírem num aspecto mais amplo para a exportação de commodities e para a segurança alimentar. O seguro agrícola é um mercado de grande potencial no Brasil, que cresceu mais de 30% em 2022 e totalizou R$ 6,3 bilhões em prêmios pagos pelos segurados. Porém, o pagamento recorde de R$ 8,8 bilhões em indenizações no ano passado acendeu a luz de alerta nas seguradoras e resseguradoras que operam no País.

“É um momento de inflexão nessa atividade fundamental dos seguros agrícolas no Brasil, diante de fenômenos recentes, de grandes quebras de safra no Sul e no Centro-Oeste do País, além de uma judicialização muito intensa de segurados em busca de indenizações. Procurando entender esse fenômeno é que esse seminário foi organizado, já que há indícios de um desequilíbrio muito grande no setor, que pode comprometer a própria sustentabilidade do agronegócio no Brasil”, explicou o Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Ricardo Villas Bôas Cueva, coordenador científico do seminário “Aspectos controvertidos dos seguros agrícolas”, realizado em 15/6, na sede do STJ, em Brasília (DF).

A nova edição do programa Conversa com o Judiciário, da Revista Justiça & Cidadania, foi realizada em parceria com o STJ e com a Comissão do Direito Agrário e do Agronegócio da Ordem dos Advogados do Brasil (CDAA/OAB). O evento foi dedicado à memória do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, que conforme registrou o Ministro Cueva, “como grande civilista que era, participou de inúmeros eventos sobre seguros e era voz importante na formação de precedentes que nos orientam a todos na interpretação da legislação securitária”.

Predeterminação dos riscos – O primeiro painel, moderado pelo Presidente da CDAA, Antonio Augusto Coelho, teve como tema a predeterminação dos riscos e os deveres contratuais das partes nos contratos de seguros agrícolas. Debate que contou com a participação do Ministro Ricardo Cueva, da professora Ana Frazão, catedrática de Direito Civil, Comercial e Econômico na Universidade de Brasília (UnB), e do professor Thiago Junqueira, titular da cadeira de Direito dos Seguros na FGV Direito Rio.

Sobre a predeterminação dos riscos nas diversas modalidades de seguro agrícola, segundo o Ministro Cueva, na maioria dos casos essa avaliação não é feita adequadamente pela ausência de perícias para avaliar com mais precisão os riscos cobertos. O ministro reconheceu, porém, que a realização de milhares de perícias para atender cada uma das contratações de seguros agrícolas poderia acabar por inviabilizar a própria atividade securitária, pelo aumento dos custos envolvidos na contratação de pessoal especializado.

Sobre isso, pontuou o Presidente da CDAA, Antonio Augusto Coelho, que o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) e a Confederação da Agricultura e da Pecuária no Brasil (CNA) possuem um grande contingente de engenheiros agrônomos altamente capacitados, além de empresas especializadas, que poderiam prestar serviços de perícia para as seguradoras.

“Há uma necessidade (desses profissionais) não apenas em seguros, mas também para a emissão de cédulas de produto rural. (…) Não dá para falar em insuficiência para o acompanhamento da situação de fato. Hoje, quando se emite uma cédula de produto rural e o banco vai conceder um financiamento, há um monitoramento full time e em real time daquele talhão onde é produzido. É uma realidade, o mercado é muito dinâmico e a tecnologia é muito avançada. Não só o produtor, como também a seguradora e o banco têm condições de acompanhamento tecnológico em tempo real”.

“Talvez se tenha que avançar um pouco, tanto do ponto de vista tecnológico, com técnicas mais preditivas da variação climática, quanto com técnicas de cobertura de risco por meio de subsídios ou fundos estatais”, disse por fim sobre o assunto o Ministro Cueva.

Equação complexa – Outro problema que segundo o ministro ajuda a explicar a crescente judicialização dos seguros agrícolas é a assimetria de informações entre as partes, pela falta de clareza sobre o que exatamente é contratado em cada apólice. “É claro que o segurado não pode ser tratado uniformemente como hipossuficiente, um pequeno produtor, pessoa física que vai se defrontar com uma seguradora sofisticada. Muitas vezes e crescentemente é um grande produtor, sofisticado, que tem condições precisas de negociar as condições de contratação e de entender exatamente o que está sendo contratado. Ainda assim, é um ponto bastante delicado”, avaliou o magistrado.

Sobre o papel do Poder Judiciário na equação dos seguros agrícolas, a professora Ana Frazão acrescentou que os julgadores precisam ter consciência de que a intervenção judicial vai transcender o caso concreto em julgamento. Motivo pelo qual é importante que os juízes conheçam melhor o modelo de negócios e todas as pressões econômicas que se projetam sobre ele, incluindo a cadeia de crédito, as mudanças climáticas e a função social da terra.

“Os componentes dessa equação costumam ser muito difíceis de serem apreendidos sob a perspectiva macro e holística até mesmo por grandes especialistas, até mesmo pelo regulador. (…) Essas dificuldades são ainda maiores quando colocadas para o juiz, que diante de um problema contratual concreto muitas vezes é premido a dar uma solução sem conhecer toda a complexidade desse sistema e como esses pilares interagem entre si”.

A professora Ana Frazão também listou outros fatores que contribuem para o desequilíbrio no mercado de seguros agrícolas, como possíveis déficits legislativos e regulatórios, baixa qualidade das negociações contratuais e o eventual “oportunismo excessivo” dos segurados. “Quando analisamos muitos dos problemas que são trazidos ao Judiciário, percebemos claramente uma má qualidade dos contratos, cláusulas que não são adequadas, comportamentos das partes que não são adequados, mesmo a partir de padrões de boa-fé objetiva que já estão de certa forma assentados na jurisprudência”, comentou.

“Talvez com uma legislação, com uma regulação ou com contratos mais bem desenhados e equilibrados esse tipo de problema pudesse ser resolvido de outras maneiras, sem a necessidade de sobrecarregar o Poder Judiciário”, concluiu Ana Frazão.

Boa-fé objetiva – Quanto aos deveres contratuais das partes, a questão mais delicada segundo o Ministro Cueva é a declaração precisa do segurado. Ele concorda, porém, que já existe uma jurisprudência conceitualmente bem estabelecida em relação ao dever de boa-fé, que implica “uma mutualidade de deveres” que se compensam e se ajustam.

Ao reconhecer que a boa-fé objetiva tem sido reiteradamente aplicada nas questões sobre seguros agrícolas que chegam à Justiça, a professora Ana Frazão ponderou, contudo, que se trata de uma cláusula geral que não indica a solução do caso concreto. “Gera para o juiz um ônus muito grande na construção da solução do caso concreto, principalmente quando ele não tem todos os elementos dessa equação. (…) Daí a preocupação de estarmos depositando excessiva confiança na boa-fé objetiva e se não teríamos que pensar em que medida um aprimoramento da legislação, deixando esses deveres mais claros, uma melhor difusão da regulação e uma série de outras estratégias poderiam traduzir em alguns aspectos esses deveres de uma forma mais concreta”, argumentou a professora.

Em relação à interpretação legal dos contratos de seguros, o professor Thiago Junqueira comentou que em paralelo à prevalência do conceito da boa-fé objetiva, deve ser considerado também o art. 421-A da Lei da Liberdade Econômica (Lei no 13.874/2019), que afirma que a alocação de riscos definidos pelas partes deve ser respeitada e observada.

“É necessário o amadurecimento do mercado e da cultura dos seguros agrícolas, a evolução da jurisprudência, principalmente nos juízos de primeira e segunda instância, a conscientização das partes contratantes em relação aos direitos e deveres. Isso tudo vai causar maior segurança jurídica e menores custos de transação, gerando resultados positivos para toda a sociedade”, acrescentou Tiago Junqueira.

Compreensões recíprocas – O segundo painel, presidido pelo Ministro Antonio Carlos Ferreira, teve como tema “Mutualismo, precificação dos seguros agrícolas e o Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR)”. Debate que contou com a participação da Presidente do Instituto Brasileiro de Atuária (IBA), Raquel Marimon, do Diretor do Departamento de Gestão de Risco do Mapa, Jônatas Pulquério, do professor da FGV Direito SP Luciano Benetti Timm e do consultor da CNA, o ex-deputado Nilson Leitão.

Sobre a questão da assimetria informacional abordada no painel anterior, o Ministro Antonio Carlos Ferreira acrescentou que ela também se aplica aos juízes: “Fui diretor da Caixa por oito anos e uma das questões que se identificava é que não se levava as peculiaridades e sutilezas de determinado segmento ao juiz, que não é eclético e entende de tudo. Faz falta uma explicação mais simplificada das repercussões no mercado. Do mesmo modo, os princípios gerais, tais como a função social do contrato e a boa-fé, não podem servir como curinga para dispensar esforço de argumentação nas decisões judiciais e no mercado. Há uma ausência de compreensões recíprocas.”

Para o especialista em dogmática jurídica e Análise Econômica do Direito Luciano Timm, o seguro agrícola tem muito a contribuir para o desenvolvimento agrário e do agronegócio, mas é preciso fazer uma opção clara entre os modelos público ou privado: “Se quisermos apostar no setor privado, vale a lógica do Direito Privado. Não podemos querer o melhor dos dois mundos, impor a lógica de Direito Público no campo do Direito Privado. (…) Não dá para misturar, porque vai dar errado querer fazer macro justiça no campo privado”.

Subvenção – O representante do Mapa, Jônatas Pulquério, apresentou um panorama detalhado do Programa de Subvenção ao Prêmio de Seguro Rural (PSR), criado em 2004, pelo Governo Federal, no modelo público-privado. Ele explicou que o PSR é gerido por um conselho formado por Mapa, Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Ministério do Planejamento, Secretaria de Política Agrícola, Ministério da Fazenda, Secretaria do Tesouro Nacional e Superintendência de Seguros Privados. Anunciou ainda que em setembro será criada uma câmara temática de gestão de risco no âmbito do PSR.

Segundo Pulquério, o perfil dos beneficiários do PSR, conforme dados de 2022, mostra que 69% tem apólices de até R$ 335 mil, que 83% da área segurada é de até 100 hectares e que o valor da subvenção em 53% dos casos é de até R$ 10 mil, o que demostra que o Programa tem grande procura pelos pequenos e médios produtores rurais.

Ao apresentar números do PSR nos últimos dois anos, mostrou que os orçamentos foram quase iguais em 2021 (R$ 1,181 bilhão) e 2022 (R$ 1,109 bilhão), porém o número de apólices diminui de 213 mil para 125 mil, com queda de 120 mil para 78 mil produtores atendidos no mesmo período, além da redução da área segurada, de 14 para 7,5 milhões de hectares, e do valor segurado, de R$ 68 bilhões para R$ 43 bilhões. As projeções para 2023, segundo Jônatas Pulquério, são de que o PSR vai atingir um orçamento de R$ 2 bilhões e voltar a atender 14 milhões de hectares.

Atuária e resseguros – “Sem o resseguro, a seguradora não permanece no mercado”, sintetizou a Presidente do IBA, Raquel Marimon, ao detalhar a importância das companhias de resseguro no setor rural. Ela explicou que o aumento do número de sinistros, em função dos eventos climáticos, combinado com o efeito de decisões judiciais que divergem da cobertura contratada, faz com que as seguradoras gastem mais e elevem o prêmio dos seguros. Sem repassar custos aos contratantes, aumentando seu próprio risco, as seguradoras podem acabar até mesmo perdendo acesso às garantias oferecidas pelas resseguradoras internacionais.

Segundo ela, em 2022 a maior parte das seguradoras corrigiu os prêmios e passou a vender mais caro seus seguros agrícolas, diante dos efeitos da intensa seca registrada em 2021 – e por isso fecharam apenas metade dos negócios que tinham conseguido no ano anterior. “Aquelas seguradoras que não ajustaram o preço são aquelas que perderam o acesso ao resseguro e hoje não estão mais operando. É uma matemática que se concretiza e que em alguns anos acaba se evidenciando. Em essência, temos como desfecho menos contratantes de seguro e menos pessoas cobertas”, comentou Raquel Marimon.

Quanto à questão das perícias prévias discutida no painel anterior, a presidente do IBA calculou que se fossem feitas perícias para todos os pedidos de cotação, o seguro agrícola seria 31% mais caro. “É muita coisa. Se com o aumento que tivemos de um ano para o outro só metade das pessoas puderam bancar o seguro, o que aconteceria se passássemos a exigir perícia prévia em todos os seguros? Não seria viável”, afirmou.

Bons frutos – Nilson Leitão, consultor da CNA, contextualizou a importância do seguro agrícola por meio de dados sobre a população rural no país. “O Brasil tem 5,5 milhões de propriedades rurais, mas 4,5 milhões vivem na linha da pobreza, entre o auxílio do governo e uma renda máxima de R$ 2 mil. (…) O debate sobre evoluir essa classe média, tirar essa população da pobreza na área rural, conflita justamente com a falta de ousadia e de políticas de governo para dizer quem vai bancar caso dê errado”.

Para ele, os pequenos e médios produtores rurais só poderão sobreviver “sem depender de auxílios”, quando conseguirem produzir com a garantia de crédito e de seguros suficientes para “poder enfiar a cara sem medo de errar”.

No encerramento, comentou o Ministro Antonio Carlos Ferreira: “Eventos como esse proporcionam um debate franco e leal entre os diversos agentes do mercado e da magistratura, visando o alinhamento de ideias, um diálogo com diversas visões sobre o tema, que contribui para o aprimoramento da qualidade da regulação, dos contratos e da jurisprudência, porque são as decisões judiciais, principalmente dos tribunais superiores, que indicam para a sociedade e o mercado o modelo seguro de comportamento, conferindo segurança jurídica. São sementes que vão resultar em bons frutos”.