Edição 104
Aspectos do realismo jurídico
31 de março de 2009
André Fontes Desembargador Federal do TRF-2ª Região e Membro do Conselho Editorial
O Realismo Jurídico orienta-se para um objeto de compreensão, como qualquer outra Escola que estuda o Direito. As experiências na Escandinávia, na Inglaterra e nos Estados Unidos da América evidenciam essa assertiva. O objeto é contemplado na Escola Realista, sob duas perspectivas diversas: como realidade social e, também, como estrutura de variadas formas, marcada por distinções peculiares.
O Realismo estadunidense estuda o Direito, não como expressão humana e ideológica, mas, sim, como uma realidade, produto de experiências e de realizações de uma sociedade. Essas vivências destinam-se ao controle dos conflitos de interesses e, não obstante suas origens sociais, também, são forjadas por decisões judiciais, de acordo com a teoria em concreto. Essas realidades inspiram e esculpem as regras que fazem ou produzem uma determinada conduta ou resultado na sociedade.
O Realismo dos Estados Unidos da América identifica o Direito como preceito, isto é, com os seus ideais e finalidades e, também, com critérios e orientações que deverão ser aplicados aos casos concretos. Esses preceitos referem-se a regras, como expressões prescritivas que devem ser aplicadas pelo juiz. Em outras palavras, orientam como devem decidir os magistrados, de acordo com o conceito de Direito. Afigura-se, entretanto, garantia relativa e restrita, devido à subjetividade de sua formulação verbal.
A inserção de regras no reino da ação tem consequências nos fatos da vida. A necessidade de impor a solução de conflitos por meio de coação e de tê-la em conta, no atuar do Direito, permite o conhecimento objetivo do homem de que todo comportamento social, produzido judicialmente, constitui a razão essencial do surgimento e da função de controle do Direito, da qual é dependente toda classe de liberdades e a própria realidade social.
A associação desses fenômenos representa um controle, especificamente, porque o Direito significa, em uma maior amplitude, a totalidade de um corpo de elementos opostos, com pessoas e grupos antagônicos. Ao examinar esse movimento, percebe-se uma eterna luta pelo controle do aparato do Direito e pelo seu processo de evolução.
Nessas circunstâncias, o Direito dos Estados Unidos, privado e constitucional, desenvolveu uma espécie de chave técnica de autossaneamento, que abriu suas portas para a sua afirmação e aprimoramento. Ele tem como característica marcante estar, sempre e permanentemente, receptivo às inevitáveis mudanças sociais.
A concatenação que acabamos de esboçar faz com que a ordem jurídica seja um regime de controle social numa sociedade organizada e politicamente desenvolvida. O aperfeiçoamento desse controle ocorre mediante a sua sistemática e ordenada aplicação a uma sociedade em evolução, de acordo com o seu enlevo e crescimento.
Em nossa época, como a natureza do Direito nunca se apresenta como regra, em sentido estrito, os princípios, os conceitos e os critérios jurídicos ou legais padronizados de condutas são pautados pelas circunstâncias e infiltrados por novos fatores de pressão social e por fundamentos ou vias de caráter moral. Essa perspectiva alçou a Teoria dos Interesses ao patamar de norteadora de todo o sistema. Por essa teoria, um Sistema Jurídico alcança as finalidades da ordem jurídica, seja mediante o reconhecimento de certos interesses, individuais, públicos e sociais, seja mediante a definição dos limites, dentro dos quais esses interesses serão juridicamente reconhecidos e gerarão efeitos, através dos preceitos jurídicos. Esse fenômeno se dá mediante o esforço de assegurar a proteção dos interesses assim reconhecidos dentro dos seus limites balizadores. Para empreendê-lo, se torna necessário fazer um inventário, selecionar, fixar os padrões de proteção e considerar os meios pelos quais ele poderá ser exercido; e, daí, partir para a ponderação de princípios de valoração dos interesses.
Ao correlacionarmos os diversos fatores que intervêm na formação da Escola e da técnica estadunidense, encontramos muitas coincidências com a discriciona-riedade da linha de pensamento inglesa. Um exemplo pode sintetizar, com precisão, essa similitude na construção jurisprudencial dos dois países: danos ocasionados, por exemplo, a um consumidor, pela sua exposição a substâncias tóxicas existentes em uma garrafa d’água mineral, são de responsabilidade do fabricante. O fornecedor do produto está submetido ao amplo princípio, segundo o qual, quem explora atividade que, previsivelmente, poderá prejudicar os seus destinatários, responderá pelos danos ocasionados. Afinal, todos devem exercer o seu mister com diligência razoável, para evitar infringir danos àqueles que se destinam os seus produtos.
A Escola escandinava estuda o Direito como norma e como fenômeno jurídico. A norma assinala o sentido do comportamento do juiz e o fenômeno jurídico da sua submissão às regras, o que faz com que seu estudo corresponda, respectivamente, à Ciência Jurídica e à Sociologia Jurídica. Os progressos do Realismo no Direito coincidem com a Teoria Empirista, ou seja, consubstanciam um conhecimento advindo da experiência ou da percepção dos fatos. O Empirismo conduz a uma interpretação negativa, que consiste em rejeitar a especulação metafísica; também, leva a outra interpretação, de natureza positiva, que consiste em centrar nos fatos do ser e propicia, então, que o Direito se defina como certo comportamento de fato. Evita-se, pois, nesse contexto, a incidência do princípio dualista, que gravita entre a validade e a vigência ou eficácia da norma. Daí, o motivo de se afirmar ser empírica a ciência do Direito, que não deve se aventurar na realização do impossível, nem descrever normas de dever ser, como proposições de ser. Uma ciência é empírica, em contraposição à metafísica, se descreve fatos que se sucedem no tempo e no espaço e, também, se expõe o sentido de certos aspectos do comportamento humano.
Nessa perspectiva, a Teoria Pura do Direito confunde normas jurídicas com proposições. As normas jurídicas não devem ser expressas em proposições de Direito, a não ser acerca do Direito propriamente dito. Do contrário, deverão ser formuladas da seguinte forma: uma norma isolada, que prescreve determinada conduta, é direito válido, enquanto o caráter positivo do Direito não está na validade e no justo meio entre ela e a sua eficácia. No sentido de que a eficácia é condição de validade, ela deve vincular-se à criação de um ordenamento jurídico íntegro e uno; deve, também, assegurar que uma norma individual não perca sua validade, porque a validade, como mera palavra, não deve ser utilizada, já que, como fato real, deve ser aceita pelo Direito, o que impõe que se proceda à atividade de interpretar. Daí, conclui-se que a orientação, ditada pela avaliação das normas, define a validade e representa causa de eficácia, como sucede no caso do pagamento da mesma dívida várias vezes. Por isso, para se aferir a eficácia, deve-se subtrair a racionalização de fatos psíquicos.
A aceitação do Realismo Jurídico tradicional, pela confluência das orientações dos EUA e da Escandinávia, decorre de conveniência fundamental em um sistema que se propõe a operar, a partir da noção de realidade social e de seus modos de aplicação. Os problemas da realidade e dos destinos, que a sua relação com o Direito encerra, destoam do Sistema de Direitos Subjetivos, consagrado nos Sistemas Jurídicos Romano-germânicos. Uma consciência dessa última família sempre estabelecerá a ideia de um direito subjetivo, incompatível com o Realismo. Nesse aspecto, é de boa lembrança que o Realismo escandinavo não conheceu o Direito romano, porque a Romanitas não lhe atingiu. Já o Realismo estadunidense, ao contrário, recebeu o legado inglês, na sua versão românica do Common Law.
Para expressar a síntese da Escola comum jurídico-realista, há de se determinar o seu alcance, fundamento e função. O alcance dessa Escola é determinado pela sua evolução, ditada pelo seu desenvolvimento histórico e conceitual. Ao se dizer que o Direito é a prática jurídica, quando se afirma que a vida do Direito não foi lógica, foi a experiência expressada através de fatos, decisões e mudanças que determinou essa conclusão. O Direito é orientador e controlador social, que harmoniza preceitos opostos, os quais se encontram sistematizados em regras, princípios, conceitos, critérios jurídicos, como padrão de organização de interesses. O Direito é concebido como um comportamento de fato, que deve ser visto de acordo com sua consequência coativa. Como todo comportamento social, o Direito produzido judicialmente indica a objetividade jurídica, através de um processo de elaboração razoável de decisões, que combinam princípios, padrões operativos e a sua própria autolimitação, na discricionariedade de decidir.
Os pensadores dessa Escola adotam uma metodologia pragmática, que vai desde o mero empirismo, no estabelecimento e aplicação do Direito, até a adoção de elementos metodológicos de caráter sociológico, de modo a estabelecer sua existência e alcance. A Escola do Realismo Jurídico funda-se na premissa segundo a qual o Direito está estribado em interesses opostos ou, na acepção da Teoria dos Interesses, este seccionado em individuais, públicos e sociais; na determinação dos limites dos interesses reconhecidos e no esforço de assegurá-los e tutelá-los.
A Teoria dos Interesses Opostos constitui o fundamento de controle do Direito, mas não em bases ilimitadas e, sim, por meio da criação de um Sistema Jurídico, de acordo com a realidade social e o senso comum do povo. Prestigiar o costume e a experiência judicial como emanações da própria sociedade — e, não, como meros pronunciamentos dos tribunais ou da legislatura — é a mais relevante das funções dos precedentes judiciais. E esse propósito é alcançado no sistema Common Law, com a reductio ad unum nas decisões judiciais da vontade livre e soberana do povo.