Edição 98
Atitudes diante da Constituição Federal de 1988
30 de setembro de 2008
Ney Prado Membro do Conselho Editorial e Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia
Qualquer obra humana, individual ou coletiva, é passível de imperfeições. Seria mera idealização imaginar que os nossos constituintes pudessem acertar e tornar a Constituição uma obra perfeita e acabada. Mas o lamentável é que erraram tanto, a ponto de torná-la quase imprestável.
Nas sábias e oportunas palavras do insigne constitucionalista Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “os constituintes de 1988 enveredaram pela contramão da história. Legaram-nos
uma carta política longa, casuística e incompletamente negociada através de pequenos compromissos recíprocos, fruto de uma generosa dose de utopismo; de uma demagogia auto-intitulada de progressista; de um corporativismo militante dos grupos mais organizados; de um bem intencionado socialismo dos que ainda criam ser possível lograr distribuir riquezas sem produzi-las; do estatismo saudosista dos que não vêem como a sociedade possa prescindir da tutela do Estado; do paternalismo dos que têm o Governo como o munífico provedor de todas as necessidades; do assistencialismo dos que acreditam que a letra da lei converte-se automaticamente em benefícios; do fiscalismo dos despreocupados com as conseqüências desmotivadoras e recessivas das sobrecargas tributárias e, por fim, da xenofobia de tantos que, mesmo por eles fascinados, ainda temem os estrangeiros”.
A esta altura, com vinte anos de existência, nossa Constituição já recebeu abundantes apreciações de vários segmentos da sociedade brasileira, dando-nos um panorama razoavelmente diversificado de seus aspectos positivos e negativos.
Diante da nova realidade constitucional, registram-se as mais diversas reações prospectivas; do otimismo ao pessimismo, da prudência ao radicalismo, da expectativa ao ativismo. Dificilmente essas circunstâncias deixarão impassíveis os que as estão vivendo, seja como políticos, seja como cidadãos.
Numa esquematização simplificadora, poderemos identificar, basicamente, sete tipos de atitudes em relação à nossa Constituição, conforme a linha de solução preconizada: a da solução participativa, a da aceitação passiva, a da desobediência civil, a da solução judiciária, a da solução executiva, a da solução parlamentar e a da rebeldia armada.
A solução participativa, aberta pela própria Constituição, nasce da confiança crescente do povo no seu próprio poder de influir. Se a Carta de 1988 padece de defeitos de legitimidade, ninguém mais intitulado que o próprio povo para corrigi-los.
A aceitação passiva consiste na opção de cumprir, a todo risco, o texto constitucional. Não importam as conseqüências, nem mesmo do cumprimento de seus mais controvertidos e até absurdos preceitos. Trata-se de um documento produzido por representantes eleitos pelo povo e, por isso mesmo, só o seu rigoroso cumprimento, com todo radicalismo que possa significar, seria uma atitude democraticamente justificável.
A desobediência civil seria a solução diametralmente oposta. Confrontados com as conseqüências inevitáveis e desastrosas, como lhes parecem, esses segmentos radicalizantes pregam o descumprimento aberto, do tipo “não cumpro porque não posso”.
A solução judiciária parte da crença nos juízes. A eles caberá, calcados na ciência e prudência, no dia-a-dia da interpretação da nova Constituição, a tarefa de contornar os absurdos e de minimizar os conflitos. De sua ação, cautelosa e firme, dependeria a estabilidade constitucional.
A solução executiva se estriba na confiança da autoridade do Presidente da República, tradicionalmente exercida em momentos de crise no País. Dele se esperaria uma ação catalítica, uma aplicação moderada e uma iniciativa prudente, dando ao texto condições de ser paulatinamente adequado à realidade dentro de um clima de ordem, ainda que não rigorosamente constitucional.
A solução parlamentar parte da confiança nos legisladores. Seriam eles capazes de contornar os problemas através de emendas, de leis complementares e de leis ordinárias, e da revisão, à medida em que se torne necessário desbastar as arestas e manter íntegra a ordem Constitucional.
Finalmente, last but not the least, a rebeldia armada. O golpe, de recorrente presença em nossa história política, seria a última ratio. Rasgar-se-ia a Constituição em favor de um suposto interesse nacional, ainda que isso signifique vulnerar a democracia e regredir politicamente.
A conclusão desse exercício analítico, embora complexas as premissas, é muito simples: nenhuma das soluções apresentadas, tomada isoladamente, oferece uma solução satisfatória aos problemas suscitados pela nova Carta.
A resposta, desde logo, não pode estar nas posições radicais, ou seja, na aceitação passiva, na desobediência civil, nem, muito menos, na rebeldia armada. Parece-nos que ela deve resultar da conjugação das soluções morigeradas, confiando aos três Poderes do Estado e, sobretudo, à própria Sociedade, a responsabilidade de tornar: possível o utópico; moderado o extremado; gradual o abrupto; e, sobretudo, legítimo o ilegítimo.
A única atitude sensata só pode ser a que parta da assunção de responsabilidades por aqueles que detém uma parcela do poder de interpretar, aplicar e mudar. O Legislativo é necessário para rever, emendar e integrar a Carta, adequando-a às reais necessidades e possibilidades do País. Ao Executivo caberá a importante tarefa de aplicá-las de forma realista, segura e definida, sem sucumbir aos acenos da popularidade fácil. O Judiciário é fundamental para interpretar prudentemente os textos preconceituosos e radicalizantes, dando à letra da lei a vivificação que a torne norma legítima. Mas estará, sobretudo, nas mãos da própria sociedade, pela onímoda participação que a própria Constituição possibilita, a responsabilidade de pugnar pela verdadeira legitimação que lhe falta.
É chegado o momento de haurir ao máximo a experiência vivida desta Constituição, a fim de que possamos escoimar seus erros e preservar seus acertos, resgatando o País para a modernidade.