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Biodiversidade, transgênicos, biossegurança e o princípio da precaução

5 de junho de 2004

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A Tutela Constitucional, que impõe ao Poder Público e a toda coletividade o dever de defender e preservar, para as presentes e futuras gerações, o meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, como direito difuso e fundamental, feito bem de uso comum do povo (CF, art. 225, caput), já instrumentaliza, em seus comandos normativos, o princípio da prevenção (pois uma vez que se possa prever que uma certa atividade possa ser danosa, ela deve ser evitada) e a conseqüente precaução (quando houver dúvida sobre o potencial deletério de uma determinada ação sobre o ambiente, toma-se a decisão mais conservadora, evitando-se a ação), exigindo-se, assim, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade (CF, art. 225, §1º, IV).

Essa tutela cautelar do Meio Ambiente, constitucionalmente estabelecida (CF, art. 225, caput) viabiliza a garantia fundamental e difusa do direito à vida, à liberdade e à segurança de todos (CF, art. 1º, caput) na instrumentalidade do fenômeno jurídico da Biossegurança, caracterizada pelo conjunto de normas legais e regulamentares, que estabelecem critérios e técnicas para a manipulação genética, com a finalidade de evitar danos ao Meio Ambiente e à saúde humana, no contexto amplo da diversidade biológica.

A Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, no Brasil (Lei nº 6.938, de 31/08/81) inseriu como objetivos essenciais dessa política pública “a compatibilização do desenvolvimento econômico e social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico” e “a preservação e restauração dos recursos ambientais com vistas à sua utilização racional e disponibilidade permanente, concorrendo para a manutenção do equilíbrio ecológico propício à vida” (art. 4º, incisos I e VI).

Dentre os instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente, exigem-se “a avaliação de impactos ambientais” e “o licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras” (art.9º, III e IV), estabelecendo-se, ainda, que “a construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidoras, bem como os capazes sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento de órgão estadual competente e do IBAMA, no caso de atividades e obras com significativo impacto ambiental, de âmbito nacional ou regional” (art.10 e respectivo parágrafo 4º, com a redação dada pela Lei nº 7.804, de 18/07/89).

De ver-se, ainda, que a Lei nº 10.165, de 27/12/2000 acrescentou o anexo VIII à Lei nº 6.938, de 31/08/81, transpondo para o foro da legalidade formal a matéria relativa ao “uso de recursos naturais”, já constante do Anexo I da Resolução nº 237 – CONAMA, de 19/12/97, que submete ao Licenciamento Ambiental, considerando, como atividades potencialmente poluidoras, a utilização do patrimônio genético natural, a introdução de espécies exóticas ou geneticamente modificadas e o uso da diversidade biológica pela biotecnologia.

O recente Projeto de Lei nº 2.401, de 2003, oriundo do Poder Executivo Federal e já aprovado na Câmara dos Deputados, com trâmite, agora, no Senado Federal, ao estabelecer normas de segurança e mecanismos de fiscalização da construção, cultivo, produção, manipulação, transporte, transferência, comercialização, importação, exportação, armazenamento, pesquisa, consumo, liberação e descarte dos organismos geneticamente modificados – OGMs e seus derivados, visando proteger a vida e a saúde humana, dos animais e das plantas, bem como o meio ambiente (art.1º), manda aplicar a essas atividades, potencialmente causadoras de degradação ambiental, as disposições da Lei nº 6.938/81 (que normatiza a Política Nacional do Meio Ambiente) e seus regulamentos, como forma efetiva de prevenção e mitigação de ameaça à saúde humana e da degradação ambiental, observando-se o principio da precaução.

Esse princípio, na verdade, fora alçado à categoria de regra de direito internacional, ao ser incluído na Declaração do Rio, como resultado da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento- Rio/92, como determina o seu Princípio 15, nestas letras: “- Com a finalidade de proteger o meio ambiente, os Estados devem aplicar amplamente o critério da precaução, conforme suas capacidades. Quando houver perigo de dano grave ou irreversível, a falta de uma certeza absoluta não deverá ser utilizada para postergar-se a adoção de medidas eficazes para prevenir a degradação ambiental.”

Entre os considerandos dessa Convenção da Diversidade Biológica, assinada no Rio de Janeiro, em 05/06/92, e ratificada pelo Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº 2, de 03.02.94, tendo entrado em vigor, no Brasil, em 29/05/94, ordenou-se o seguinte: “Observando também que, quando existir ameaça de sensível redução ou perda de diversidade biológica, a falta de plena certeza cientifica não deve ser usada como razão para postergar medidas para evitar ou minimizar essa ameaça…”

Observe-se, ainda, que a Convenção da Diversidade Biológica (Rio/92) determina às partes, como medida para conservação in situ dos recursos naturais, que estabeleçam ou mantenham os meios para regulamentar, administrar ou controlar os riscos associados à utilização e à liberação de organismos vivos modificados, resultantes da biotecnologia que, provavelmente, provoquem impacto ambiental negativo, a ponto de afetar a conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica, levando também em conta os riscos para a saúde humana (art.8º, alínea g).

Esclareça-se, de logo, que a Biodiversidade ou diversidade biológica é “a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte, compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas” (art.2º, III, da Lei nº 9.985/2000).

A biodiversidade é constituída por um grande número de microorganismos conhecidos e desconhecidos, existentes na biosfera. A sua importância é fundamental para a sobrevivência das pessoas e dos seres vivos, no planeta.

Nesta visão, a tutela constitucional do meio ambiente ordena-nos “preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas” (CF, art. 225, § 1º,I); “preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético” (CF, art.225,§1º,II); “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente” (CF, art.225,§1º,V) e “promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente” (CF, art.225,§1º,VI).

Nesse contexto, o Juízo Federal da Sexta Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal proferiu sentença mandamental, de minha lavra, em agosto de 1999, determinando às empresas Monsanto do Brasil Ltda e Monsoy Ltda. que apresentassem prévio Estudo de Impacto Ambiental, como condição indispensável para o plantio, em escala comercial, da soja Round up ready, ficando impedidas de comercializarem as sementes de soja transgênica, até que sejam regulamentadas e definidas pelo Poder Público competente as normas de Biossegurança e de rotulagem de OGMs (Processo Cautelar nº 98.34.00.027681-8/DF). Essa decisão foi confirmada, integralmente, por Acórdão da colenda Segunda Turma do TRF/1ª Região, proferido em agosto de 2000, de que foi Relatora a Desembargadora Federal Assusete Magalhães.

Já em junho de 2000, proferi sentença de mérito, julgando procedente a ação civil pública, promovida pelo IDEC e condenei, ali, a União Federal, a exigir a realização de prévio Estudo de Impacto Ambiental da Monsanto do Brasil Ltda, para liberação de espécies geneticamente modificadas e de todos os outros pedidos formulados à CTNBio, nesse sentido, declarando, em conseqüência, a inconstitucionalidade do inciso XIV do art. 2º do Decreto nº 1.752/95, bem assim a das Instruções Normativas nº 03 e 10 – CTNBio, no que possibilitam a dispensa do EIA/RIMA, na espécie dos autos (Proc. nº 1998.34.00.027682-0).

Essa última sentença encontra-se pendente de julgamento das apelações interpostas pela União Federal e pela Monsanto do Brasil Ltda, na colenda 5ª Turma do TRF/1ª Região, sendo recebidas aquelas apelações somente no efeito devolutivo, em face da antecipação da tutela cautelar ter sido confirmada, integralmente, pelos teores das sentenças referidas (CPC, art. 520, VII), mantendo, assim, até o momento, sua eficácia plena, a exigir seu total cumprimento, na força determinante do interesse difuso, ali, protegido.

Tais decisões, com eficácia mandamental-inibitória, têm força de lei entre as partes (CPC, art. 468), já com a autoridade de ato jurídico perfeito e de coisa julgada formal (CP, art. 5º, XXXVI), não devendo ser afrontadas como o foram por medidas provisórias ou leis formais (Medida Provisória nº 113, de 25/03/2003, convertida na Lei nº 10.688, de 13/06/2003, e Medida Provisória nº 131, de 25/09/2003, convertida na Lei nº 10.814, de 15/12/2003) que não se prestam a funcionar, validamente, no plano normativo, como instrumentos reformadores de decisões judiciais, sob pena de seus agressores responderem, em tese, por crime de responsabilidade perante o Senado Federal (CF, arts. 52, I e II, e 85, VII) e de prevaricação, junto ao Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, inciso I, alíneas b e c), sem prejuízo das sanções pecuniárias, ali, previstas.

Na força determinante desses julgados, o principio da precaução foi incorporado, com ênfase, ao Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, firmado em Montreal, Canadá, em 28 de janeiro de 2000, dentro da Convenção sobre Diversidade Biológica. Esse protocolo representa um avanço significativo na tentativa de se fixarem normas-padrão de biossegurança, servindo como referência internacional para a proteção da diversidade biológica e da saúde humana, em relação a eventuais danos que possam advir da liberação de OGMs, no meio ambiente, ou doconsumo de produtos ou alimentos transgênicos.

Observa, assim, com inegável acerto, o ilustre Procurador Regional da República, Dr. Aurélio Virgílio Veiga Rios, “que todos os pressupostos jurídicos apontados pelo Ministério Público Federal – e expressamente afirmados na sentença de lavra do eminente juiz Dr. Antônio Souza Prudente – foram posteriormente incorporados ao Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, a saber: a) obrigatoriedade de Estudos de Impacto Ambiental ou Estudos de Avaliação de Riscos como condição à liberação de OGMs no meio ambiente; b) identificação e rotulagem de organismos transgênicos; e c) respeito ao direito dos Estados soberanos (como é o caso do Brasil) de fixarem normas ambientais de prevenção de riscos mais rígidas do que aquelas admitidas no Protocolo”1.

Dispõe, ainda, finalmente, a Resolução nº 305-CONAMA, de 12/06/2002, considerando as diretrizes ambientais, estabelecidas nos artigos 225, 170, incisos VI, e 186, inciso II, da Constituição Federal, o disposto na Lei nº 6.938, de 1981, e nas demais normas de proteção do meio ambiente, as normas do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), os princípios da participação pública, da publicidade e da garantia de acesso à informação, bem assim, o princípio da precaução, cristalizado no Princípio 15 da Declaração do Rio, reafirmado pela Convenção sobre Diversidade Biológica e pelo Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança (Montreal, em janeiro de 2000), sobre a necessidade imperiosa do processo de licenciamento prévio, para a liberação de Organismos Geneticamente Modificados, tanto em caráter experimental quanto para as finalidades comerciais, exigindo a realização do EIA/RIMA, como instrumento material da precaução, para que sejam permitidas quaisquer sementes ou produtos transgênicos, no meio ambiente.

A simples rotulagem, informando o consumidor sobre a natureza transgênica do produto (Decreto nº 4.680, de 24/04/2003), não dispensa a realização prévia do EIA/RIMA, na fase própria, como direito do consumidor a uma informação completa e segura, nos termos da lei nº 8.078/90 (CDC).

Verifica-se, portanto, que o princípio da precaução é imperativo constitucional, que materializa a tutela cautelar do meio ambiente, através de indispensável estudo prévio de impacto ambiental, a ser realizado por competente e imparcial equipe multidisciplinar, para o plantio e a comercialização da soja transgênica (Round up ready), bem assim, para liberação de qualquer organismo geneticamente modificado, nas vertentes do meio ambiente, como garantia fundamental das presentes e futuras gerações.

Notas __________________________________________________________________

1 RIOS, Aurélio Virgílio Veiga, in “Princípio da Precaução”

Obra Coletiva, organizada por Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau

Editora Del Rey, Belo Horizonte, 2004, p. 382.